A Fábia (Vila Madalena)

Cheguei mais tarde do que gostaria ao Bar do Pereira. Estava lotado, mesmo sendo uma quinta-feira. A atração da noite era a apresentação da cantora Fábia. Cantava o Samba da Benção, de Vinícius e Baden, no momento que eu adentrava ao ambiente recendente a cerveja e bruscetta, especialidade da casa do português Pereira, casado com a italiana Otávia. Talvez por isso, lembrei de um argentino que mora em Roma, mais propriamente no Vaticano, o Papa Francisco, tenha citado um trecho da composição em sua encíclica – a “Fratelli Tutti”. No sexto capítulo do documento, dedicado ao “diálogo” e à “amizade social”, o pontífice mencionou “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. A interpretação de Fábia pontuava com propriedade cada passagem relevante da letra inacabável do Poetinha. Muito parecida com a intepretação de Maria Bethânia, Fábia emprestava a sua graça pessoal ao tema.

Fiquei instalado numa mesa de canto, com um bom ângulo de visão para o pequeno palco onde pude apreciar o repertório variado de MPB. O Carlos era realmente um bom instrumentista. Sua cabeleira e barba desgrenhadas lhe davam um ar rebelde. Eu, o conhecendo mais de perto, sabia que era doce como poucos. Durante a semana conversamos mais uma vez. Prometi que viria ao show de hoje. Eu o agradeci intimamente. Precisava descontrair um pouco mais para além de meus passeios pela cidade em busca de temas para as minhas crônicas. Vila Madalena e suas personagens bem que poderia surgir com capítulos à parte.

No palco, apenas uma luz incidia sobre a cantora. O tecladista, o violonista, Carlos e o baterista se dispunham ao redor da mulher esbelta, de voz clara e timbre grave. Quando cantava, cerrava por vezes os olhos, principalmente nas frases mais profundas de sambas-canções sofridos. Suas expressões comentavam as histórias de amores de Lupiscínio, Chico, Herivelto, Djavan, Antônio Maria e Dolores Duran. Ela era uma daquelas artistas que nunca sabemos da razão não ter sucesso na grande mídia. Caso a indústria da arte musical não fosse adaptada para o consumo em larga escala. Para isso, o gosto médio dos consumidores foi persistente e avassaladoramente estimulado para que se tornasse o menos exigente possível.

De maneira geral, eu percebia uma espécie de uniformização forçada em curso, como se houvesse um plano urdido em algum gabinete duma grande corporação. Ella achava que eu delirava com as minhas elucubrações a respeito de como funcionava o Sistema. Ela sequer acreditava que houvesse algo ou alguém que dirigisse as nossas vidas. Nem Deus. Em seu ateísmo, escapava do fanatismo religioso, mas era presa fácil dos encantadores de serpente. Ao mesmo tempo, eu facilmente era rendido pela beleza, em qualquer idioma artístico – fosse escultura, pintura, música, teatro, dança – ah, dança! Era tão atraído pela dança quanto não sabia me movimentar… A literatura era meu campo de atuação, mas percebia que em mais alguns anos a Inteligência Artificial iria assumir o meu lugar. Quando dizia isso, Ella ria ao mesmo tempo que me olhava com incrédula compaixão. Não é nada sexy sentir pena de alguém…

Os meus pensamentos foram interrompidos com “Faltando Um Pedaço”, de Djavan. Eu cantava (muito mal) essa canção para Ella: “O amor e a agonia / Cerraram fogo no espaço / Brigando horas a fio / O cio vence o cansaço / E o coração de quem ama / Fica faltando um pedaço / Que nem a lua minguando / Que nem o meu nos seus braços…”. A interpretação de Fábia era mais lenta que a original, apenas com o piano “fazendo a cama”. Cada palavra ganhava um quê de eternidade. Fiquei imaginando se Fábia tinha para quem endereçar o seu canto. Se eu tivesse o talento dela, talvez Ella não me deixasse.

A cada final da entrada da banda, Carlos se sentava à minha mesa. Perguntou se estava gostando da apresentação.

– Muito, meu caro! Todos excelentes!

– Não há quem não tenha gravado com os melhores artistas, incluindo a mim.

– E Fábia? Ela é incrível!

– É, não é? Ela trabalha gravando peças publicitárias e fazendo shows nos barzinhos de São Paulo. É uma outsider, como eu. Quando mais nova propuseram que se tornasse uma nova Cássia Eller, logo depois de sua morte. Como amava Cássia, Fábia nunca faria nada que parecesse anedótico ou pastiche de um estilo que pertencia a quem admirava.

– Humm… Bem que percebi certa semelhança no timbre…

A cada parada, Carlos se aproximava para mais um gole de cerveja e entabulava conversas sobre o repertório, ao qual eu sempre aludia à alguma história que conhecia. Sempre me interessei pelo rico acervo do cancioneiro popular, de norte a sul. Por diletantismo, estudei sobre Folclore e estava feliz por poder me expressar sobre um conhecimento que normalmente não tinha com quem compartilhar.

Fiquei até o final do show e fui brindado com a aproximação de Fábia, conduzida por Carlos. Eu sempre fui tímido, mas conseguia disfarçar bem. Acho que não foi o caso…

Chico, esta é Fábia! Fábia, Chico, o meu mais novo melhor amigo de infância!

Balbuciei algo que nem mesmo eu compreendi. Fábia riu como criança, apesar de beirar os seus 35 anos…

– O prazer é meu, Chico!

– Foi isso que eu disse?

– Não sei o que disse, mas recebi como um elogio! – E riu…

– Pois sinta-se elogiada! Eu me emocionei com “Faltando Um Pedaço”! A melhor versão que já ouvi…

Ela é… foi muito importante para mim… A cada vez que a canto, tento matar a lembrança para quem a dediquei.

– Tenho uma história parecida, mas a canção traz para mim os melhores sentimentos, de como eu fui inteiro e amei verdadeiramente. Ainda que para quem a endereçasse não fosse merecedora de tamanho bem querer. Mas, enfim, é mãe do meu maior amor, meu filho, Matheus

Falava com a cabeça baixa, tentando evitar o seu olhar. Quando a ergui, vi dois fios de lágrimas descerem dos olhos de Fábia. Uma luz indireta pousou de passagem em suas írises, fazendo com que refletisse pequenos raios que atingiram os meus olhos. Rapidamente, ela passou as mãos no rosto e enxugou as lágrimas. Pediu licença e se retirou, não sem antes se despedir de Carlos com um breve aceno, nos deixando um rastro perfumado de ausência. Sem mais…

Imagem retirada do acervo da Internet.

BEDA / “Você Me Fez Sofrer…”*

… “Você me fez sofrer, você me fez chorar…” – Teria eu levantado bem mais cedo, quando despertei às 7h da manhã, e poderia ter aberto as minhas janelas, ter sentido o gostoso ar frio matutino e ter ouvido os pássaros retardatários, que ainda não teriam saído para passear de seus galhos hospedeiros, enquanto ainda teria visto as árvores do meu quintal receberem a visita dos vizinhos alados da redondeza. No entanto, voltei a dormir, ainda cansado do trabalho do dia anterior, e acordei com a música urbana, produzida pelos humanos, três horas depois. Os meus vizinhos, em dois ou três pontos, reproduziam as canções de seus gostos. Que eles acreditem que todos ao seu redor também apreciem o que ouvem, é algo que não consigo entender…

Você me fez sofrer, você me fez chorar…”. Mas, sou daqueles que tenta encontrar sempre um propósito em tudo, além de ter a horrível tendência em construir enredos para análises sociológicas em cada movimento dos seres da minha espécie biológica. Ainda garoto, pensava em me tornar um asceta, me refugiar em alguma montanha ou vale esquecido e fugir das pessoas, pois convictamente, me sentia um ET. Atualmente, vivo em um vale, cercado de morros, na Periferia de São Paulo, sei que sou um ser gregário, que estou no Mundo e que apenas na convivência entre nós, poderemos encontrar o meio termo onde reside a paz. É claro que isso em tese, porque há ocasiões que perco facilmente a estribeira. Enfim, estar equilibrado é um exercício permanente. Na guerra de sonoridades, o tema preferido girava em torno de amores mal realizados…

Você me fez sofrer, você me fez chorar…”. Em uma época passada, o Brasil viveu uma fase de letras riquíssimas, mormente espraiadas em sambas-canções de melodias inesquecíveis (“Meu Mundo Caiu”, de Maysa, é uma delas, por exemplo) e até poderíamos dançar ao ouvi-la, acompanhando o seu compasso lento, de rostos e corpos colados, vivenciando a tristeza de uma maneira libertadora. Hoje, se isso acontece, será sempre através de músicas com andamento acelerado, em que as pessoas dançam alegremente com um sorriso no rosto, volteando em piruetas e saracoteios.

Igualmente, no samba, que inaugurou desde os seus primórdios da popularização da música brasileira essa tendência, muitas vezes ouvimos versos destilarem o sofrimento em passos em que os pés respondem com energia e alegria à revolta que sentimos pelo amor que nos feriu. Eu me lembro de que, quando menino, virgem de corpo e alma, adorava sofrer os amores que não havia ainda vivido e Lupicínio e Elis (meu gosto era anacrônico) me faziam companhia. Hoje em dia, as referências são outras, bem menos primorosas… “Você me fez sofrer, você me fez chorar…”.

*Texto de 2016

Foto por Pixabay em Pexels.com

Participam do BEDA: Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Darlene Regina / Lunna Guedes

BEDA / John & Eu

Eu, em 1980, ano em que John nos foi levado…

A montagem acima realizei em 2013, ao completar 52 anos. John Lennon, faria 73, se estivesse encarnado. Eu, até este momento, estou vivo, John, não mais. Alguém preferiu unir o seu destino ao dele, matando-o. Não direi o seu nome, já que era esse mesmo o seu propósito. Ocorreu em 1980. Eu estava com 19, mais ou menos com a idade em que apareço na foto em que me coloco ao lado do Beatle. Alguns preferem chama-lo de ex-Beatle. Não há ex-Beatle! Existiram The Beatles e eles, juntos – John, Paul, George e Ringo – modificaram a história da indústria da música para sempre. Como sabia que nascera na mesma data – 9 de Outubro – até apreciava o fato de usar óculos como o meu ídolo, apesar da miopia me afastar de jogar bola com eficiência e dos olhares das meninas. Eu cria, desde pequeno (não sei por que cargas d’água?), que morreria cedo. Não morri tão cedo, mas morreu John. E, lindamente, não morreu!

Participam do BEDAMariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Darlene Regina Roseli Pedroso

Cauby Peixoto*

Cauby Peixoto, se apresentando no antigo salão social da S.E. Palmeiras, por ocasião do aniversário do clube, em 2005.

Grandioso. Estrela no palco. Protagonista na vida. Voz cristalina, mesmo com o corpo envelhecido e alquebrado. Donde suponho que a sua voz incrível não era daqui. De onde quer que ela tenha vindo, voltou para onde veio… A minha mãe brincava que poderia ter sido o meu pai… Por vários motivos, sabemos que seria impossível…

Mas Deus me deu a oportunidade de estar algumas vezes com ele, ouvindo-o de perto, através do meu trabalho. Uma de suas características era falar bem baixinho quando não cantava, tanto para se comunicar quanto para se fazer ouvir entre as canções. Na ocasião da foto acima, um dos espectadores reclamou que a sua fala estava quase inaudível, ao que respondeu que não era nossa culpa, mas porque ele tinha o costume de preservar a sua voz o máximo que pudesse, a não ser quando cantava. Para ouvi-lo no camarim, tínhamos que nos aproximar bastante devido a essa precaução.

Outro de seus costumes era o de chamar de “professor” a cada um dos colegas de trabalho – incluindo músicos e técnicos – equiparados num título de deferência. Educado e apesar de no final de sua carreira estar perdendo a audição, não saía fora do tom equilibrado. A minha admiração por ele crescia conforme o tempo o debilitava, ainda que mantivesse a excelência no canto. Provavelmente um artista de ouvido absoluto, num projeto do qual participei, observou discrepâncias nos arranjos que estavam sendo montados para os shows. Foi a única ocasião em que o vi se alterar um pouco, ainda que mantivesse a elegância.

Que seja bem recebido de volta às outras estrelas, ao brilho que tentava reproduzir em suas roupas. Obrigado por compartilhar conosco da sua magia, Cauby!

*Texto de 16 de Maio de 2016, por ocasião do passamento de Cauby Peixoto, um dia antes, aos 85 anos.

David E Eu

David Bowie surgiu como tema da mudança da minha foto de perfil porque acho que a sua atuação como figura icônica ajuda a entender como observo essa questão da imagem. Quando garoto, gostava de deixar o cabelo crescer e “ele” decidir a maneira que se desenvolveria. Uma determinada ocasião, fascinado pelo movimento Black Power e a música Black, endureci o meu cabelo com o uso de sabão de coco e passei a usar garfo para penteá-lo. Tempos depois, coloquei brincos, um cada orelha (para desespero de meu pai que achou que pelo uso de um pequeno artefato eu fosse Gay). Mais tarde, tingi o cabelo de amarelo. Por um período, fui chamado de Xuxa no futebol, de Pepeu Gomes por Wilson Simonal num trabalho e, com o ganho de músculos na academia, até de He-Man na rua. Hoje, (bem) mais velho e calvo, é a barba que uso para mudar “la facciata”. Por agora, a retirei. A única mensagem que desejo passar é o de não ser definido pela imagem momentânea. Todos nós somos mais do que estamos fisicamente, apesar da maior parte das impressões que passamos socialmente se darem pela aparência.

Conheci David Bowie através de videoclipes esparsos em programas pioneiros da TV2 Cultura, antes do surgimento da MTV. As músicas não eram tão “fáceis” quanto as mais tocadas, mas me chamavam a atenção. Inicialmente, pelas letras que assimilava aqui e ali nas poucas palavras que pescava em inglês. Porém, o visual Glam foi decisivo para que me me atraísse ao se mostrar ao público para além dos limites de gêneros. Vivia (como vivo) na Periferia e a linguagem estética do Camaleão do Rock me alcançou fortemente. Eu tinha uma feição androginóide, a ponto de causar estranhamento a quem não me conhecesse. A minha postura não era intencional, mas também não fazia questão de desfazer dúvidas que surgissem. O que eu percebi é que era atraente para várias meninas, se bem que nenhum relacionamento foi além da amizade, apesar de me enamorar secretamente por uma ou outra. Cada vez mais tímido, as garotas eram ideais apenas como inspiração de contos e versos de amor. Triste, não?

Na época, entre 13 e 14 anos, eu era um sujeito que estava entre a natural mutação física da adolescência e uma profunda transformação na concepção de mundo. Enquanto jogar futebol se tornava uma paixão cada vez maior, apesar da progressiva miopia, escrever concorria para se tornar uma dependência. A minha percepção se ampliava em múltiplas conexões para outras expressões – artes plásticas, cinema, teatro, dança, música… – e o futebol ocupava esse espaço das artes, além de vôlei, basquete e outros esportes. Chegava a faltar nas aulas para assistir Copas do Mundo e Olimpíadas. Na minha avaliação, uma partida de futebol era como se fosse a apresentação de uma ópera. Não conhecia ainda as histórias futebolísticas de Nelson Rodrigues que conseguiu aliar de forma magistral a arte cinética da bola a de crônicas eternizadas pela escrita.  

Os clipes musicais nos Anos 70 começaram a se tornar cada vez mais elaborados para além das apresentações de artistas ao público até se transformarem em pequenas obras multi-estéticas. As de Bowie ao vivo eram energéticas, expressivas, com roupagem inventiva e, ele mesmo, se mostrava como uma persona teatral-kabuki-bufão-psicodélica-assexuada imponente. Ziggy Stardust / Starman presentes diante de todos, para quem quisesse ver e ouvir.

Quando o mundo começava a se acostumar com a estranheza performática, o inglês buscava novas facetas e personas, linguagens renovadas e repertórios com experimentações sonoras, com diferentes apresentações visuais. Eu, em constante mudança estética-comportamental, me identifiquei com o artista inquieto até na heterocromia, como a que tenho, mas não tão distinta quanto a dele.

Quando assisti “O Homem Que Caiu Na Terra”, a personagem extraterrena se adequou como ninguém ao humano que parecia um ser acima dos parâmetros pequenos com os quais as pessoas de senso comum costumam ordenar como normal. O meu sentimento de inadequação ao mundo encontrou em David Bowie uma versão expressiva. Mudar de visual é somente uma pequena homenagem que presto a ele. De fato, ao longo da minha vida, “vesti” várias identidades – fui cabeludo, gordo, magro demais, raspei a cabeça, deixei a barba crescer, a retirei, perdi o cabelo – e, por um tempo, fui o senhor que colocava a camisa para dentro da calça. Fiz um curso de Educação Física no limite dos 50 anos. Voltei a andar despojadamente como na faze Punk, mas não tão radicalmente quanto na época do movimento no final da década de 70, ao qual Bowie antecipou com Diamond Dogs, álbum de 1974.

Antes de Aceitar a minha identidade de escritor mais recentemente, há menos de dez anos, passei por dois episódios significativos. Sempre fui mais cheinho e quando emagreci dramaticamente na fase vegetariana de 10 anos, desenvolvi um processo de distorção de imagem. Não me via tão magro, mas quando a balança indicou 57Kg, comecei a mudar a minha dieta. Quando tive a crise hiperglicêmica, por mais ou menos um ano não me reconhecia ao espelho. Cheguei a evitá-lo por um bom tempo e me surpreendi com o sujeito que estava do outro lado quando me via.

Como escritor, crio histórias e posso ser quem eu quiser ou transferir para outras personagens ações que não cometeria, além de outras que gostaria de cometer. Aos 60 anos de existência pós-uterina, sinto-me em constante inquietação e com projetos pessoais que passam por caminhos místicos e materiais. Um tanto deslocado, eu me sinto como se fosse um ET que caiu na Terra e o que me resta é aprender a viver entre os seres humanos até o último dos dias com saudade do meu planeta destruído e do meu amor perdido…

David (Robert Jones) Bowie