A Urna

Foto por Obdulio Nuñes Ortega


 

Final de ano. Fiquei a remexer o depósito de bugigangas que se acumularam – caixas com livros, quadros antigos e outras coisas que não sabemos porquê guardamos. Um dos itens: uma urna. Não uma urna qualquer, mas aquela onde, um dia, foram depositadas as cinzas mortuárias de minha mãe em fevereiro de 2010. Eu me lembro da minha contrariedade ao ser deixado de lado por meus irmãos por ocasião da dispersão de suas cinzas junto ao pé de romã que crescia no jardim do quintal da casa onde morávamos. O corpo de Dona Madalena – dedo verde em vida – transformado em pó, não ajudou a plantinha a prosperar. Secou e foi arrancada.

Restou-me a urna. Simples caixa marrom envernizada. Lembro de me surpreender pelo pouco tamanho e preço exagerado do objeto de insólito destino: conter um corpo de consistência mutante, representado essencialmente por salitre e ferro, da mulher que me gerou. O valor simbólico deve ter sido um motivo forte suficiente para encerrá-la no canto de um móvel. Não conseguia distinguir qual fosse. Memorabilia de cunho soturno, deveria dispensá-la. Prefiro lembrá-la de sua energia, viva.

Porém, por não ter uma razão substancial para guardá-la, da mesma forma argumento intimamente que não tenho para jogá-la fora… Ao considerar essa uma desculpa viável, talvez isso denuncie certo apego a algo de simbolismo discutível. A decisão de minha mãe em ser cremada demonstraria o seu desapego ao corpo. Em vida, gostava de acumular coisas, guardar objetos, roupas de seus filhos pequenos, móveis, fotos, joias e bijuterias. Boa parte dessa coleção, para seu íntimo desespero, ficou disperso e se perdeu no período mais grave da enfermidade que a vitimou.

Não me considero materialista, mas sei que minha mãe me acompanha física e mentalmente. Uma assombração genética talvez me conduza, a fazer com que mantenha ao alcance da mão referências físicas de passagens do tempo que o antigo estudante de História poderia considerar objetos de culto, mas que o senhor que me tornei (ou que eu proclamo ser) contesta com veemência, pelo menos oficialmente. No entanto, estou a perceber que estou cada vez menos interessado em explicar as minhas contradições. E mais convencido em vivenciá-las. Arqueólogo de mim mesmo, o quanto conseguirei escavar para chegar ao que sou, só o tempo dirá…