BEDA / Scenarium / O Último Texto

O Último Texto
Marley

Neste mesmo momento em que começo a escrever este texto, ouço “Vilarejo”, com Os Tribalistas. Sou fã de Arnaldo Antunes (quase digo Baptista), Carlinhos Brown e Marisa Monte – uma paixão sucedânea a Elis Regina – amor eterno. Acabo de me inscrever no canal da Marisa no Youtube. O que é estranho. Provavelmente por desatenção, deixei de fazê-lo antes. Hoje, dia 21, de Tiradentes, em que venho a moldar o corpo desta mensagem, poderá vir a sofrer acréscimos eventuais até quando vier à publico, no último dia de Abril, diante do fato de estarmos em meio à voragem dos acontecimentos, cada vez mais rápidos-delirantes. Sem nenhuma tentativa de parecer fatalista, eu mesmo poderei não estar presente. Cada dia é um dia…

Deitado a meus pés, Marley, um cachorro “emprestado”. Confia tanto em mim, que chega a roncar seu descanso de estrepolias com seu companheiro de solidão, Fred. Eles “pertencem” à residente fantasma (outra história) da casa da frente. Estamos, os três, na propriedade da família na Praia Grande, no litoral sul de São Paulo. Isolado há três semanas dos humanos, então, na data de 30 de Abril de 2020, tanto poderei estar neste mesmo lugar quanto em casa, na capital. Como é comum na vida de um escritor, falo no presente-passado sobre uma data futura, que ocorre a partir do instante que lanço palavras ao ar no meu blogue – ¡Com Licença Poética! Serial Ser. Para quem estiver lendo este texto em um futuro distante, caso não a tenha vivido, estamos em época de Quarentena por efeito da pandemia da Covid-19.

Atualizando os fatos mais recentes, além da saída do Ministro da Saúde (Mandetta), em meio a uma grave crise de saúde pública, o da Justiça, Moro, um dos pilares de sustentação do governo que propagandeava o combate à corrupção, tendo a Operação Lava-À-Jato como  carro-chefe, saiu do seu comando. O motivo é a interferência direta do “presidentezinho” na Polícia Federal no momento que investigações levadas à efeito estão chegando perto dos filhos-milicianos que acumulam os cargos de assessores-criadores de fake-news oficiais. Com o tempo, perceberemos quais as repercussões dessa saída. Porém, a acusação levada ao ar em rede nacional indica que o capitão miliciano está a adotar o modus-operandi da velha política, mesclado ao crime organizado com sede no Rio de Janeiro. Para demonstrar sua intenção de controlar a PF, nomeou como Diretor Geral seu guarda-costas, cuja credencial maior é o de ser parça de seus filhos.

O que é interessante é que, ainda que estejamos a viver-e-a-ver corpos a cair à esquerda e à direita, ultrapassando o número de mortos da China – “E daí? Lamento, quer que faça o quê? Eu sou Messias, mas eu não faço milagre” –, muitos cidadãos deste País preferem não acreditar que estamos em meio a um surto de proporções globais. As informações que temos hoje a respeito da Covid-19 é que não se trata apenas de uma “gripezinha”, porém de uma doença que além de atacar os pulmões, repercute no sistema linfático e circulatório  que repercutirão pelo resto das suas vidas, caso sobrevivam, incluindo efeitos neurológicos. Na época da endemia de dengue, em 2015, eu a contraí, com todos os efeitos mais pesados. Anos depois, ainda apresento reflexos de sua passagem. De igual forma, a experiência da atual pandemia repercutirá em nosso tecido social por nossa História muito tempo ainda, por mais que a esqueçamos – tendência doentia do brasileiro.

O Último Texto A
Fred

Apesar de documentada anteriormente, a pandemia da Gripe Espanhola, que dizimou populações inteiras entre 1918 e 1920, apresentando o saldo de 50 milhões de vítimas, portanto bem mais mortal, não teve o acompanhamento global em termos de documentação que temos atualmente. Mesmo assim, após a sequência de guerras e mortandades em massa ocorridas em vários níveis – o que talvez nos tenha anestesiado – seguimos a viver como se nada tivesse acontecido ou viesse a acontecer.  De fato, após seu advento, vivemos os loucos Anos 20. Eu chamo a esse evento, particularmente, de “Fenômeno de São Francisco” (a cidade americana). Seus habitantes “sabem” que, a qualquer momento, a bela cidade poderá ser destruída por um grande terremoto, já que se assenta sobre a falha geológica de San Andrés. Contudo, vida que segue, mesmo que todos os dias possam ser o último, os refutadores da atual pandemia assentam suas posições nas mesmas premissas, capitaneada pelo “Cavaleiro do Apocalipse do Planalto Central”. Afinal, segundo suas próprias declarações “todos vão morrer um dia”. Se é assim, que seja um trabalhador de baixa renda ou um idoso aposentado, consumidor de recursos do INSS.

Mirando nos efeitos financeiros danosos para o atual sistema, que eventualmente impeça que ele venha a se reeleger em 2022, começa a arquitetar um Golpe de Estado, lançando balões de ensaio a esmo através de eventos programados. Com declarações dúbias lançadas ao vento, é comum não confirmar na fala seguinte a impressão que deixou no dia anterior. Em meio a claques ensaiadas da “Seita das Carreatas da Morte”, quele que diz que não é coveiro, refuta as ideias que deixou no ar, feito vírus que se espalha entre os desmascarados de plantão. Usar máscara (de proteção), aliás, parece estar associada à oposição às falas do capitão miliciano. Confesso aqui que, por mais que tenha denunciado durante o ano anterior a sua eleição os posicionamentos de viés fascista do sujeito, ver acontecer diante dos meus olhos a gestação do monstro da exceção democrática, ainda que a Democracia já tenha sido aviltada tantas vezes, é triste, decepcionante, tenebroso…

Não é isso que gostaria deixar para as gerações futuras, depois de ter minha vida marcada pela luta insana entre direita e esquerda baseada na ocupação sem opositores, sem argumentação, sem diálogo, sem concerto social democrático quanto ao Poder Central – a ditadura como régua. No presente, as relações entre os poderes estão tensas porque chegou ao poder, após vários erros cometidos pela esquerda brasileira, um ser canhestro, uma pessoa nefasta, representante da direita mais simplória, gestor de uma família igualmente disfuncional, todos, ocupantes do “Gabinete do Ódio”, que infectaram nosso claudicante sistema democrático com o germe da morte, inoculada nos anos de chumbo, mas ainda atuante de forma latente, mesmo depois de tantos anos após a suposta “cura” pela abertura e pelo estabelecimento de eleições livres. Os efeitos funestos da ocupação do poder por militares deixaram um hiato que demorará a ser remediado. Com certeza, não será enquanto eu viver (que poderá ser daqui a pouco). Talvez, nunca…

Beda Scenarium

BEDA / Scenarium / O Vírus Do Amor

Vírus

Moravam no mesmo andar do antigo edifício. Velhos conhecidos por olhares, pouco se falavam. Os jovens, filhos do interior, vieram para São Paulo para estudar. A instauração da Quarentena foi apenas mais um capítulo na marcha de acontecimentos. A súbita decisão governamental pelo isolamento social os encontrou hesitantes entre ficarem ou retornarem às suas famílias. A capital apresentava o maior número de casos e, receosos que pudessem eventualmente infectar pais e avós, decidiram ficar. Tudo isso foi tema da primeira conversa mais longa que tiveram, a voz meio difusa pelo uso das máscaras. Iniciada no elevador, continuou no corredor junto às portas de seus apartamentos, com a distância protocolar.

Surgiu uma conexão imediata entre os dois desgarrados. Estabeleceram o hábito de conversarem postados nas respectivas varandas, em entardeceres ultrajantes de tão belos, espraiados em céus outonais-vanillasky. Certa noite, madrugada silente, ele a ouviu chorar. Tiago chamou por Ana. Não obteve resposta. Bateu na porta da vizinha. Ao abri-la, se derramou em seus olhos avermelhados e inchados. Indo contra os protocolos, dispensadas as palavras, se abraçaram. As bocas se procuraram. As línguas caladas-eloquentes trocaram saliva e sorveram prazer. Desobedientes civis, mergulharam sem máscaras no desejo um do outro. O amor a iluminar a noite, virulento. Sentiram-se eternos.

Revezavam os leitos, alastrando ambos os apartamentos do fogo da paixão e da alegria da entrega. Camas e lençóis, contaminados de seus joviais fluídos, refletiam as primeiras luzes da manhã em composições cada vez mais inauditas de corpos entrelaçados. Apesar do sofrimento coletivo, os dois quase abençoavam a quarentena que os uniu. Planos para o futuro naturalmente surgiam em meio a longas conversas e beijos amiúde. Ainda assim, omitiram das respectivas famílias o encontro proibido. Esperariam tudo passar para que não ficassem aflitos com os jovens amantes. Por isso, os pais de ambos receberam com surpresa a notícia da internação dos filhos como sendo um casal de namorados com insuficiência respiratória.

Os jovens não apresentavam tosse. A febre confundia-se com o calor que geravam na sofreguidão do amor. O mal estar se instalou quase ao mesmo tempo. Preocupados um com o outro, procuraram os postos de saúde. Lotados. Devido ao fato de serem jovens, foram dispensados. Voltaram para casa, cansados e ofegantes. Quando pioraram, pediram ajuda ao porteiro que chamou a ambulância. Permaneceram intubados por alguns dias e vieram a óbito com um intervalo pequeno entre as partidas. Entre tantas mortes, a história dos estudantes apaixonados passou despercebida, a não ser entre os habitantes das pequenas cidades de onde vieram.

O País, enlutado, ainda teria que passar por outras tragédias – resultantes de uma doença incubada dois anos antes.

BEDA / Scenarium / A Pizza E A Forma

Pizza

Em Quarentena, estando isolado na casa da praia, não tenho horários específicos para as refeições. Quase dez horas da noite, decido fazer pizza. Saio, compro os ingredientes necessários e, ao revirar o armário em busca da fôrma, encontro a máquina do tempo, ainda que incompleta, sem as presilhas. Nela, produzo uma boa pizza de atum e cebola com molho de tomate.

A minha mãe adorava novidades em apetrechos para o lar. Logo que foi lançada, Dona Madalena adquiriu uma fôrma que poderia assar pizzas utilizando as bocas do fogão. Economizava o uso do forno, em tempos de escassez, além ser mais prática e rápida. O segredo era saber dosar o volume do fogo para que não queimasse. E foi através daquele utensílio que voltei para mais de quarenta anos antes no tempo.

Vários instrumentos caseiros usados em décadas anteriores vieram para a casa da praia. Volta e meia, me deparo com pratos, xícaras, louças, copos e talheres antigos, além de vários outras coisas-mecanismos que me fazem voltar ao passado. Quase imediatamente, despontam visões da minha mãe a manipulá-los, como se fossem videoaulas de utilidades domésticas.

A pizza ficou boa. Sei fazê-las – as pizzas – assim como outras comidinhas, de maneira que minhas filhas voltam sempre a pedi-las. Nunca busquei aprender anotando ou medindo dosagens de ingredientes. Simplesmente comecei a reproduzi-las quase magicamente. Feijão, arroz, sopas, misturas variadas e outros componentes de refeições ou lanches se materializam concluídas e saborosas. O segredo – eu era ajudante de cozinha de minha mãe. Acho que, ainda que não estivesse atento, a repetição cotidiana foi apreendida de algum modo.

Talvez seja isso ou mamãe se apossa de minhas mãos e por elas revive o prazer de cozinhar para aqueles que ama. O ingrediente secreto, porém, é evidente – aquele que torna os alimentos mais simples em experiências tão saborosamente dolorosas, na verdade, uma junção rica de saudade e amor.

Beda Scenarium

BEDA / Scenarium / Eu Renasci De Óculos

Os Óculos

Corria meados dos Anos 80 e o Rock Nacional adquiria um fôlego inédito desde a época da Jovem Guarda, vinte anos antes. A banda Paralamas do Sucesso havia lançado em 1984, o Álbum Passo do Lui e entre os vários êxitos do disco estava “Óculos”. Para quem se tornou um “quatro olhos” aos doze anos de idade, aquela canção expressou muitas coisas que todos nós, meninos que portamos lentes em armações sentimos: a rejeição das meninas, o uso delas como anteparos da tristeza ou acentuação da alegria ou até a atratividade um tanto duvidosa do “ar de intelectual” que poderia ser confundido com estranheza ou bobeira.

Eu percebi que estava começando a perder a acuidade visual depois dos onze e lancei mão de óculos de meu pai guardados em uma gaveta, que pouco o vi usar. Como em muitas ocasiões antes, o Sr. Ortega estava fora de casa. Quanto aos óculos, as lentes deviam apresentar um grau maior do eu necessitava. Doía meus olhos ao usá-los, além de deformar as imagens diante de mim. Eu os punha e os tirava frequentemente. Até que, acidentalmente, caíram. A armação não impediu que as lentes grandes e pesadas fossem preservadas. Fizeram-se em cacos. Passei a usar o maior caco para poder acompanhar as lições escritas na lousa. Apesar do medo em relatar o ocorrido ao Sr. Ortega, em uma das estadas em casa, tive que abrir o jogo. Achei estranho como aceitou o fato sem me criticar, como quase sempre fazia por qualquer coisa que dissesse ou fizesse. Ele me levou para fazer exame de visão com um oculista para aviar uma receita. Comprou novos óculos e voltou a sumir.

Minha personalidade passou a usar óculos. Quem começa a usá-los, começa a perceber que aquele dispositivo pode ser usado como apoio para quem não precisa de subterfúgios para se expressar. Para mim, foi assim. Acabei um tanto prejudicado no esporte, principalmente no futebol. Sonhador, como tantos garotos, em me tornar jogador profissional, percebi que tinha que reinventar meu estilo. Outros sentidos e possibilidades se sobressaíram. Soube que o Pelé também era míope, a ponto do técnico da Seleção de 70, anterior a Zagallo – João Saldanha – querer colocá-lo no banco. Obviamente, eu não era um Pelé. Mas sabia que não era ruim. Durante um certo período, tentei levar esse projeto adiante. Estava quase para desistir quando o meu irmão gastou uma parte de seu salário na compra de lentes de contato para mim. A minha performance melhorou muito.

Porém, outros projetos ganharam corpo. Eu estava cada vez mais ensimesmado e os óculos passaram a funcionar como escudos. Continuava a jogar futebol, agora como diversão. De tempos em tempos, com o crescimento da miopia, tive que comprar outros óculos. Lentes de contato, apenas para atividade física competitiva. Quando surgiu a operação corretiva, de início não tinha recursos para fazê-la. Depois, mais velho, percebi que os óculos passaram a fazer parte de mim. Atualmente, não cogito deixar de usá-los. Acrescentou-se a hipermetropia e o astigmatismo. Um dia, minha visão será obliterada pelo tempo. Os olhos são os órgãos que, entre todos, refletem mais cabalmente a passagem do tempo, pelo menos, por enquanto. Com o avanço da ciência, talvez encontremos caminhos para enxergarmos prescindindo deles, com conectores artificiais ligados diretamente ao receptor da visão – o cérebro – que verdadeiramente produz as imagens que vemos e interpretamos.

Além dos probleminhas com meus amigos, atualmente tento encontrar um modo de não embaça-los com o uso da máscara de proteção. Para os olhos, já os tenho. Sou tão apegado a eles que, os atuais, rachados por causa das várias quedas, os mantenho unidos em um só corpo atados com fitas isolantes pretas – para não “dar muito na vista”. Infelizmente, brevemente terei que trocá-los. Esses amigos de anos ficarão na reserva. Como o antigo, os guardarei com carinho. Sabedor de muitas histórias vividas comigo, sentirei saudade suas. A morrer e renascer em muitas ocasiões, desde os doze anos renasço com óculos. Ao final de tudo, certamente morrerei com eles.

Beda Scenarium

BEDA / Scenarium / Poeminha De Amor Nos Tempos Do Corona

POEMÍNIMO 2
Semântica do olhar…

A pena da Quarentena a terminar…
A moça, romântica,
daquelas de novela de TV,
depois do isolamento,
sem lamento,
procura pelo amor que crê
ser o ideal –
deleitoso, íntegro, leal…

Ainda que este pareça ser o momento errado.

Pela semântica do olhar,
imagina que com ele cruzará
pelas calçadas que caminhar.
É otimista, mas idealista –
mais que beleza, quer integridade –
descarta a quem dela se aproximar
desmascarado…

Beda Scenarium