Troca De Estações

“Sou paulistano. E antigo… a ponto de ter visto São Paulo sem Metrô. Quando surgiu o primeiro trecho, em 1974, um dos programas favoritos do morador desta cidade era percorrer a Linha Norte-Sul, como era conhecida (antes de se tornar Linha 1 – Azul), por dentro dos túneis, apenas pelo prazer de saber-se dentro da terra. Tanto quanto assistir as decolagens e aterrissagens dos aviões no Aeroporto de Congonhas.

Trabalhei na primeira unidade do McDonalds da cidade, na Avenida Paulista, em 1980, quando as estações que se estabeleceriam na “mais paulista das avenidas” eram somente sonhos de prancheta. Para voltar para casa, na Zona Norte, saía às 23h30 do edifício perto da Gazeta e caminhava a pé até a Estação São Joaquim, a mais próxima do local, a tempo de chegar antes do fechamento de suas portas, à meia-noite.

A construção da malha metroviária tem sido uma história com manobras complicadas, com atrasos reincidentes e prazos não cumpridos. Alegam-se vários fatores, desde a topografia acidentada, composição do solo, desapropriações contestadas e dificuldade na dotação de verbas, sendo que o principal seja talvez a volubilidade do dinheiro, que insiste em ser mal-educado, para não dizer qualquer outra coisa que não possa não ser provado, apesar de provável.

Ainda que não consiga conhecer todas as linhas e estações, nunca me senti tão desorientado quanto há uma semana quando, por poucos minutos, me perdi na confluência das estações Paulista e Consolação. Antes que possam alegar sinais da chegada da idade, foi um erro de cálculo totalmente razoável, já que devido ao organograma um tanto desajeitado na construção do Metropolitano, a Estação Paulista sai na Rua da Consolação, enquanto a Estação Consolação desemboca na Avenida Paulista.

O estranho é que apenas nessa ocasião percebi essa troca de nomes das estações. Quando nomearam a Estação Consolação, mais antiga, de 1991, foi pela proximidade, quase esquina, com essa rua que, aliás é maior e mais larga que muitas avenidas em boa parte de seu trajeto, com duas pistas e quatro faixas cada. A inauguração da Estação Paulista só se deu em 2010. “Já que uma ocupava o lugar da outra, por que não retribuir a dádiva?” — Deve ter imaginado algum iluminado.

O fato é que deu um tilt (como no antigo fliperama) no HD do véio aqui e lá estava eu a tentar entrar na correnteza humana na contramão em pleno horário do rush. Tentei por duas ou três vezes. Piorou quando quis ajudar uma jovem mãe que carregava o seu neném no colo, ao levá-la ao elevador. Quando vi que nem conseguia apertar o botão, acabei fechado. Fingi que iria para o mesmo caminho, mas esse ato de solidariedade apenas me reconduziu ao ponto onde havia iniciado o meu último mergulho na procissão de corpos a caminhar com destino traçado, o que não era o meu caso. Finalmente, perguntei a dois seguranças que acabaram por me indicar a saída da Estação Paulista. Quando, com a luz do sol à esquerda, dou de cara com o trânsito intenso da Rua da Consolação, a 200 metros da esquina com a Paulista, atrasado para a minha reunião ali perto, mas que se provou ser mais longínquo que imaginei.

Como a pessoa que eu iria encontrar é daquelas que gostam de indicar até quantos passos deveria dar até onde marcamos, designou que, ao sair da Estação Consolação, eu deveria descer 50 metros à esquerda na Haddock Lobo, o que se provou errado quando, nas mensagens seguintes (às quais não li), passou o sentido contrário. De tudo isso, restou uma caminhada acelerada para cima e para baixo, tantas vezes quanto necessária para ativar a minha circulação sanguínea em dia de temperatura amena. Quando finalmente me foi passado o número do local (talvez por pena de minha esbaforida condição) consegui tomar o rumo certo, ainda que tivesse que atravessar a Paulista na faixa de segurança distante 100 metros para além da rua.

Fiquei a imaginar o que um forasteiro deve sofrer quando são fornecidas informações que acabam por atrapalhar mais do que ajudar para se localizar em um novo espaço. Igualmente, me solidarizei imediatamente com todos confusos que não sabem nem onde estão… e não somos poucos…”

O texto acima é de 2017. Naquele ano, assumi definitivamente que o meu senso de direção era falho. Depois de me perder nessa ocasião, outras vezes emergi em confusas incursões por outras vias públicas e estações de Metrô, como a Paraíso e a Santa Cruz, quase perto da China, de tão profunda. Quanto aos nomes, a explicação que me passaram é que são escolhidos de acordo com pontos notáveis pelos quais as linhas cruzam. Como a Estação Consolação fica próxima a essa rua, esse foi a nomeação mais adequada. Isso, antes da ampliação da Linha 2 – Verde. Ao meu ver, para ajudar na melhor identificação de ambas as estações, poderia haver a troca de nomes. Se a justificativa for a possível confusão que causaria, creio que seria apenas no início. Afinal, é comum nossos políticos alterarem pontos toponímicos com a maior facilidade quando querem homenagear a algum ilustre desconhecido ou um poderoso de ocasião.

O Salto

Vivo quase o final da minha quinta década.
Estou, como nunca antes na minha vida,
me sentindo em plenitude.
Não que tenha tanto fôlego quanto antes,
porém nunca tive, como agora,
consciência de minhas limitações.
Além de certeza de minhas possibilidades…
Sei que sou falível.
Por isso, me cuido mais
e cuido mais de quem está a minha volta.
Tento não deixar nada ao acaso.
A não ser quando sinto que é o acaso
que deva comandar a trama.
Como disse alguém deste sertão,
“a felicidade se acha nas horinhas de descuido”…
Então, antes de voltar para a realidade
do sonho,
sem cuidado,
saltei para a precariedade
da vida real.
Só não esperava que o mergulho
nessas águas sem termo
fosse tão profundo,
que talvez não possa retornar…

O Caminhante

Passou por mim um rapaz muito alto que caminhava de fora inusitada. Usava chinelos gastos, talvez pequenos demais para os seus grandes pés, que escorregavam toda a vez que pisava a calçada. Apesar da discrepância de seus passos com o padrão comum, que fazia com que chamasse a atenção para si, somado a alguns risos, percebi certa composição jazzística, uma nota de harmonia assimétrica em seu andamento. Configurava-se como uma dança imprecisa e contundente, que o fazia seguir muito mais rápido do que eu, com o meu andejar regular e simples. Os braços subiam e desciam uniformemente em contraponto ao movimento criativo, propiciando equilíbrio e coesão, como a compor um contratempo na surda canção que parecia ouvir. Eficiente, o rapaz muito alto vencia os metros diante de si com um avanço impiedoso de quem coreografava o seu percurso com um destemor do incomum. Atuava, como caminhante, de forma diferente da maioria. Com um simples ato de andar, destoava da multidão que marchava ao lado. Bailava enquanto se deslocava. Com as suas pernas compridas e seu corpo desproporcionalmente grande para o seu rosto de menino e, muito provavelmente, inconsciente de tal fato, acabava por revolucionar o mecanismo de trasladar o espaço. Rápido, isolou-se à minha vista e ganhou uma distância suficiente para dobrar uma esquina em alguma rua adiante e desaparecer, sem que eu soubesse onde, exatamente. Restou o registro de minha memória e uma foto roubada daquele caminhador. Uma imagem que registra um milésimo de segundo congelado, a demonstrar como a vida pode ser ludibriada por instantes isolados e incompletos da nossa visão.

Sou Palavra Difícil

O meu amor gosta de Bukowski
e eu amo Augusto dos Anjos.
Se Augusto dos Anjos tivesse sido influenciado por Bukowski,
talvez não tivesse existido o poeta como o conheço.
O preto,
se se conformasse em se ater ao seu destino proclamado —
marginal, apesar de ser maioria,
palavra difícil de ser decifrada
em meio a vocábulos fáceis de serem compreendidos,
não chegaria a mim — menino da periferia —
que me encantava com a palavra complexa que feria.

Se abraçasse o enunciado do americano —
bêbado que vomitava durezas de descrente,
leoninamente egoico,
dogmaticamente estoico,
adepto da simplicidade de expressão —
não seria grande além do tempo, o paraibano.
Dos Anjos era palavra quase inacessível.
Fosse fiel às prisões do imediato e do lugar,
se filiaria a obviedade e ao possível.

O americano, necessário, porém perplexo,
o paraibano, imprescindível, contudo sem aparente nexo,
não se confrontam em meu coração, que eu sinta.
Um, eu leio e deixo minha rebeldia extemporânea satisfeita.
Outro, eu leio a mim e me encontro incompleto,
a tentar alcançar lonjuras.
O ébrio, ainda que espalhafatoso, morreu velho.
O professor que era poeta, morreu aos 30.
Não se encontraram a não ser diante dos meus olhos —
os versos de um embriagam e me deixam de porre,
os do outro suplantam meu corpo e dilaceram minh’alma.
Bukowski, brincava com o perigo de existir.
Dos Anjos, fazia de companhia a morte
que não o enlutava, mas celebrava.

Bukowski, foi ele.
Dos Anjos, sou Eu.
Enquanto que o egoísta não quis mostrar a ninguém
o pássaro azul no peito,
o centrado revelou a “frialdade inorgânica da terra”.
Enquanto um soltou crônicas de amor louco
em ereções, ejaculações e exibicionismos,
sendo incensado;
o outro, incompreendido em seu tempo,
renegou a religião como resposta e proclamou
que ninguém doma o coração de um poeta —
sendo amaldiçoado.

Sou palavra difícil.
É compreensível que não possa ser entendido.
Mas acho triste não ser lido ou ouvido
por quem diz me amar.
Começo a duvidar da minha expressão.
Não deveria me derramar?
Deveria ser prosaico ou antes, calado?
Ao me revelar, deverei ser contido?
Deverei reverberar a palavra fácil, complacente?
Erradicar a minha fala de estranha vertente?
Ser Bukowski e seguir a inóspita franqueza?
Ou ser Dos Anjos e violentar meu cotidiano
dos termos óbvios e tiranos?
A única simplicidade a qual me rendo
é dizer que a amo e disso não me arrependo…

Trama

Da ponte, a trama
Da cidade, o drama
Dos campos sem grama
Dos rios de lama
Da vida em programas
Dos corpos em chamas
Da luta pela fama
Do império da grana
Que aos corações inflama.