Marcos E Marcas

Além das marcas do tempo, marcas da máscara de um tempo pandêmico… (Bar Leadrini-SCS)

Envelheço na cidade. A referência à canção do Ira! não é aleatória. Eu sou contemporâneo da banda paulistana e, por uma dessas coincidências, era da mesma turma no curso de História da USP de Nasi, seu vocalista. Mas principalmente, vivo e morro em São Paulo, meu berço e provavelmente meu túmulo. Não encaro essas etapas com melancolia, ainda que eu seja basicamente um ser melancólico. Tenho plena consciência do tempo que passa (ou vice-versa), mas não consigo apreendê-lo conscientemente. Como se não existisse. Minha memória é randômica e momentos envoltos nas brumas do passado se intrometem em meu presente aleatoriamente. Talvez por isso, ainda que tenha ficado anos fugindo de registros fotográficos, passei a fazê-lo sempre que podia. Não por vaidade. Apenas. Tem mais a ver com certas circunstâncias ligadas a um episódio crucial o surgimento da Diabetes, que viria a fazer parte da minha rotina a partir daquele Outubro de 2007, aos 46 anos. Um dos meus marcos mais importantes.

Eu estava vivenciando um péssimo estado mental e físico — variação ciclotímica de humor e dos processos orgânicos aumento da irritabilidade e da ansiedade, gradual queda da acuidade visual e perda de peso. Quando entrei no hospital, estava em glicêmica com 715 mg/dL (quando o normal é 100) e uns 10 Kg menos dos 105 Kg de peso corporal ao qual havia atingido um pouco antes. E sentia sede, muita sede. Eram desordens fisiológicas autoalimentadas num ciclo vicioso — efeitos da Diabetes que repercutia já há algum tempo. Após a saída da internação, passei a tomar insulina injetável durante alguns meses. Fiz uma rigorosa dieta com perda consciente do excesso de peso um terço de meu corpo, cerca de 30 Kg. Isso propiciou que deixasse as injeções e passasse apenas a ingerir medicação oral para o controle da glicemia. O que faço até hoje.

Em consequência do advento da Diabetes, senti-me obrigado a refazer a minha trajetória. Isso implicava ter que reformular não apenas a minha dieta alimentar, mas a maneira de encarar a vida em todos as suas facetas. Menos de dois anos após, eu comecei a fazer o curso de Educação Física. O que eventualmente poderia ser uma opção de atividade profissional, encarei mais como uma incursão na compreensão do funcionamento orgânico e no entendimento dos processos fisiológicos. Compreendi que a vida é movimento. No espaço físico e mental. Oxigenação das ideias e dos músculos esqueléticos. E que não há conflito entre uma coisa e outra. Que o corpo apto não faz o cérebro inapto. Ao contrário. Mesmo parado, o corpo está em atividade contínua — o coração bate, o sangue circula, os pulmões trabalham, o peristaltismo atua nos órgãos digestivos, bilhões de seres circulam por nosso ecossistema interno, moléculas e átomos perfazem miniuniversos paralelos aos macros — nossa energia vital a vibrar em consonância com a do entorno e o interno infinitos.

Outro marco, em 2015, dois anos depois de concluir o Bacharelado Em Educação Física, continuava com a minha atividade profissional usual, ao mesmo tempo que começava a atuar na Scenarium Livros Artesanais como escritor, função que assumi como primordial na minha identidade pessoal. Além de ter se tornado a maneira de escapar para além das minhas fronteiras pessoais e me encontrar tão múltiplo em possibilidades de ser como sabia que era. Aparentes contradições se tornaram marcas concretas. A estranheza de não me reconhecer ao espelho que tem perdurado desde a crise diabética, impulsionou a minha reiterada evocação imagética tanto do meu rosto quanto do ambiente em que a luz ou a sua falta são estimulantes para buscar-me exteriormente.

Tem sido interessante envelhecer. As marcas no meu corpo e na minha face se acumulam gradativamente. A queda lenta de meu antes vasto cabelo propiciou que eu a enfrentasse com galhardia. Passei a usar bonés e chapéus para a proteção da pele da cabeça cada vez mais exposta ao sol, no verão e ao frio intenso, no inverno. A barba (branca) passou a fazer parte definitivamente de meu visual. Chegarei à sexta década da minha vida dentro de um mês. Terei vivido mais que o dobro de idade com a qual morreu Janis Joplin (aos 27 anos) pintada na parede atrás de mim. Eram os anos do lema “viva rápido, morra jovem”. O que sei é que a velhice é um estado de espírito. Morrerei jovem, ainda que chegue ao 80.

Com o temporizador da câmera do celular, faço mais um registro de minha face. Como contemporizar o tempo com o corpo e a mente? Como, quando muitas vezes a mente voa para além e o corpo começa a sentir o peso dos anos, retardando o meu passo? Como temporizar a dor, para que saiba o meu tempo e lugar? Como continuar, quando em tantas oportunidades, priorizo o compromisso marcado no tempo para depois apostar no dia em que poderei estar junto de quem amo? Ao final de tudo, creio que haja um temporizador universal que adia o tempo fatal para o meu corpo, enquanto eterniza o meu espírito chama-se Amor.

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Vistas

Ver, rever, visto, revisto. Ser objeto de observação, observar. Ver verdadeiramente ou apenas passar os olhos sem se aprofundar. Vistas, certas imagens, ganham a dimensão de algo mais a depender de quem as vê. Carregadas de referências pessoais, ver algo é como se pudesse vê-lo para além da percepção imediata e restrita a esse algo — uma visão transcendente. Não vejo como possa ser de outra forma.

Bethânia e eu…

Uma coisa que me intriga é a visão dos outros animais em relação aos mesmos objetos e paisagens que vemos e como são interpretados, dentro de suas referências perceptivas. Que não se restringem apenas à visão, mas incorporam o olfato e o ouvido apurados, o que colabora para que apreendam de uma maneira mais completa o que apenas vislumbramos na superfície ou que valoramos por critérios idealizados. Essa riqueza perceptiva, fora de nosso alcance, é como se fosse uma overdose de vida. Todos os momentos são tão intensos em termos sensoriais que não seja de surpreender que durmam tão profundamente quando se sentem abrigados e seguros. (Periferia, em 2021)  

Rua Santa Ephigênia, onde as antigas construções abrigam lojas de equipamentos de ponta em vários setores da tecnologia. É uma festa para os meus olhos, mas não nesse aspecto. Para mim, o que é precioso reside nas edificações… É comum aproveitar a abertura de algum portal do Tempo e viajar para o Passado. São breves instantes de percepção extra-sensorial em que capturo algum momento especial, testemunho a História a acontecer em décimos de milissegundos e volto a caminhar entre carros, pessoas e luzes de LED… (Voltando no Tempo, 2016)

A luz foi engolida por grossas camadas de nuvens escuras, repentinamente. O calor ameno deu lugar ao frio que se projetou por nossas peles desprotegidas. O ser humano vem a perceber, nesses momentos de humor ciclotímico do tempo, que é muito frágil diante do clima, diante da Terra. Será por inveja que queremos destrui-la? (São Caetano do Sul, 2015)

Observo do ponto que estou, no alto de um prédio, que o vento movimenta as nuvens como se fora ondas no mar, enquanto no recife de corais abaixo, pululam seres em suas fainas diárias de nadarem contra a corrente, em busca de alimento. (Comunidade de Paraisópolis, 2014)

Caminhando pelos calçadões do Centrão, costumo me perder em olhares por seus descaminhos confusionais de Tempo e Espaço. Assim como citei acima sobre a Santa Ephigênia, apesar de gostar de me sentir desconfortável por não estar onde estou, vez ou outra me sinto surpreendido por observar essas construções tão velhas quanto eu com um olhar novo. Neste caso, talvez seja pela fluídica árvore nova, a destoar do ambiente concreto. Depois de observar melhor, o edifício ao lado parece ter uma forma alternativa que só poderei confirmar ao voltar a vê-lo. Quanto ao prédio protagonista, é ele que sinto me observar por seus muitíssimos olhos. (Vista desde a vazia Rua Marconi, em 2021).

Duque de Caxias, empunhando o seu sabre, cavalgando eternamente o seu cavalo. Conheci esse monumento ainda bem menino e ele continua por lá, impassível, rumo ao futuro.” escrevi sobre essa imagem, em 2014. O monumento do Duque Caxias está estacionado na Praça Princesa Isabel. Ambos, são nomes de referência do Segundo Império. Enquanto a Redentora está sofrendo um cancelamento por parte do movimento negro, apesar de ter assinado a Abolição da Escravatura, a atuação de Caxias tem sido revisada como senhor da guerra. Guindado à condição de grande nome do Exército, talvez a sua fama de estrategista e honradez tenha sido convenientemente inflada ao logo do tempo para alimentar o herói. A praça em si, está ocupada por desvalidos, moradores de rua, drogados, pessoas que perderam a guerra contra o Sistema, escravizados pelo vício.

Participam:

Lunna Guedes

Mariana Gouveia

Roseli Pedroso

Haroldo*

Registro de Fevereiro de 2011 — apresentação da Orquestra Tupy, do Rio de Janeiro, sob a condução do Maestro Bruno Rodrigues.

“Certa vez, lá pelos idos dos anos 60, na época da televisão ao vivo, fazíamos uma dupla de palhaços, eu e o meu irmão Fran. Montamos um quadro em um programa infantil que custou o nosso emprego. Inventamos de encenar um par de palhaços ‘afetados’, com as devidas vozes, caretas e trejeitos. Fizemos os tipos tão bem que a emissora recebeu uma enxurrada de reclamações de pais indignados, que não houve jeito!…”

“Recentemente, promovi uma Noite do Clube das Mulheres que foi um grande sucesso! O único problema foi o Batman que quase foi, literalmente, devorado pelas boas senhoras que, ensandecidas, queriam agarrar o moço a todo custo. O Batman fugiu para o camarim e eu fui atrás dele, pedindo para voltar. Visivelmente assustado, o herói balançou a capa de um lado para o outro e respondeu: — Não volto, não… Tô com medo!…”

Essas e outras histórias, nos foram contadas, mais ou menos assim, pelo grande Mestre Haroldo. Acrescente-se o seu estilo único, inflexões e voz e nos veria com dor de estômago, de tanto rir! Soubemos, eu e meu irmão, Humberto, dois dias depois de ocorrido, do passamento de Haroldo Rodriguez, promotor de bailes de dança de salão da noite paulistana. Nos últimos anos, o Haroldo promovia os bailes das quintas-feiras e dos domingos no tradicional Clube Piratininga. Há quase vinte anos, o conhecemos promovendo bailes no Clube Atlético Ypiranga, juntamente com o seu sócio, Dida. Fomos apresentados a eles pelo Osvaldo Sandoli, outro promotor e condutor de orquestra, que juntamente com o seu sócio, Décio, nos levaram para trabalhar na S.E. Vila Maria, para a sonorização dos eventos de sábado, durante muitos anos.

Enfim, todos eles foram eminentes figuras da noite que já não estão mais entre nós, encarnados. Configuravam um grupo saudoso de ativistas da alegria, que uniam abnegação e desprendimento para continuar a promover eventos que dependiam de vários fatores externos, muitos, alheios à sua vontade, como bom clima e afluência do público interessado. Cabia a eles, uma boa escolha de bandas e orquestras, bom trabalho de técnicos, eficiente fornecimento de alimentos e bebidas, custo equilibrado da locação do salão, um time bem treinado de auxiliares de confiança e vários outros detalhes para atrair a presença dos dançarinos.

No período de dois anos, perdemos o Francisco, pai e seu irmão, Francisco, filho e, agora, o Haroldo. O último contato que tive com ele se deu através do telefone, há duas semanas. Percebi que ele estava com a voz titubeante. Então, me informou que não estava tão bem, com certos problemas de saúde. Perguntou se estava tudo certo para o baile do dia 18 de agosto (passado), domingo, com a Orquestra Anos Dourados. Respondi que estaríamos lá e que na ocasião poderíamos conversar melhor. Já no Piratininga, soubemos que não viria para apresentar o evento, como fazia costumeiramente.

O Haroldo era um craque da comunicação e conduzia as coisas a tornar tudo mais estimulante, citando o nome de vários dançarinos, contando histórias inventadas composta de retalhos de fatos verdadeiros, que apenas os iniciados conseguiam desvendar. Perguntamos se o Fran faria as vezes de mestre de cerimônia e soubemos que ele havia falecido cinco meses antes. Ficamos chocados e, ao final do baile, o Humberto disse que, sem o Haroldo, não sentia mais tesão para trabalhar nesse tipo de evento, que não nos rendia muito financeiramente, mas que nos dava a satisfação de rever os velhos amigos.

O Haroldo era um artista visionário, que fazia um tipo de palhaço diferente, décadas antes da consagração do tipo pelo Cirque Du Soleil. Que apostava no surgimento de novas tendências, ao mesmo tempo em que prestigiava antigos nomes da música. Com ele, tivemos a oportunidade conhecer e trabalhar com as grandes orquestras — Sílvio Mazzucca, Tabajara, Osmar Milani, Tupy. Com os nomes da velha Jovem GuardaOs Incríveis, Renato & Seus Blue Caps, Golden Boys, Wanderléa. Grandes cantores, como Jamelão, Moacyr Franco, Francisco Petrônio, além dos “anônimos”, uma grande massa de trabalhadores e músicos da noite paulistana, nossos amigos, um universo à parte.

Uma brincadeira recorrente que fazemos neste meio é sobre a possibilidade desse pessoal todo, que está indo à frente, nos chamar para desempenharmos os papéis que desempenhamos aqui na Terra. Agora que o Haroldo atravessou para a outra dimensão, tenho certeza que as coisas ficarão mais interessantes por lá. Em ele chamando, verificaremos a disponibilidade de data e faremos o evento alegremente, quando o grande promotor Deus permitir… Por enquanto, até logo, amigo!

*Texto de 4 de Setembro de 2013.

Os Sapatos

Adeus, amigos!

Eu priorizo o conforto antes de qualquer coisa. No caso de roupas e calçados, muito mais. Conforto tem a ver com vestimentas, chinelos, tênis e sapatos testados e aprovados no uso constante — ou seja, velharias. Camisetas, largas. Camisas, funcionais. Calças, sem apertar na cintura ou nas pernas. Cuecas, acolhedoras. Meias, as adequadas, ainda que ultimamente tenha misturado padrões e cores. Tento não estar tão dissonante em relação ao ambiente que eventualmente venha a frequentar e costumo ficar no limite entre o que é aceitável para mim e o que exige o local frequentado.

Casado, com filhas e esposa vigilantes, tento não as ofender e sempre pergunto se não estou muito fora do contexto quando saímos juntos. Quando vou sozinho para algum compromisso, a depender da circunstância, uso o basicão. No trabalho, que envolve o infalível “preto comendador” é perfeito porque fico invisível, principalmente para fazer os previsíveis “corres” inesperados para solucionar algum problema técnico ou de outra ordem.

No domingo, na montagem do equipamento de som e luz para o evento que interviríamos às 17h, achei que daria tempo para voltar para casa almoçar, mas devido à mudança de horário, tivemos que permanecer no local e eu estava vestido de forma supostamente inadequada por se tratar de um aniversário um tanto mais estiloso. Porém, o anfitrião, descontraído, disse não se importar com o que eu vestia — bermuda social e camiseta preta. Ajudava o fato de a apresentação ser de uma banda de pegada roqueira. Acabado o evento, na desmontagem, o meu tênis (que usava para algumas das minhas caminhadas) não aguentou o tranco e começou a abrir o solado. Seria um prenúncio do que viria a acontecer no dia seguinte?

Na segunda-feira, para ir ao meu compromisso, decidi usar velhos sapatos, confortáveis, bicos largos, conhecedores dos meus pés, afeitos aos seus formatos. Na ida, eu percebi que havia começado a abrir a lateral do esquerdo, mas achei que não seria um problema tão grande quanto o que se tornou com o aumento do rasgo como se fora uma gradual abertura de um portal quântico para o escape do pé da dimensão ao qual estava timidamente recolhido.

Para evitar que o solado não se descolasse, comecei a arrastar o pé esquerdo pela Praça da República, depois de ter saído do Metrô, como se fosse alguém com problema de locomoção. A minha dignidade estava sendo testada, se eu tivesse alguma. Afinal, ali ninguém me conhecia, ainda mais com máscara, e eu era apenas mais uma delas, perna esquerda dura, em meio a tantos desalentados e cambaleantes à minha volta.

Em dado momento, nem esse subterfúgio funcionou e meu pé finalmente atravessou a fronteira final. Tirei do pé o pobre sapato tão despedaçado quanto um coração magoado e caminhei um bom trecho descalço até a loja mais próxima. A meia preta, da cor do sapato, até que conseguiu mascarar para os outros pedestres a falta do “pé” que estava em minha mão. Os meus passos, bem mais regulares, fingiam saber para onde ia. Saí de lá com novos companheiros, firmes e reluzentes.

Um dia, tanto quanto um bom sapato velho, atravessarei o estágio derradeiro do uso funcional de minhas faculdades mentais e físicas e me deixarei ir, estiolado. Estimo que aconteça comigo algo muito mais digno do que ser atirado num cesto para coisas sem uso — um asilo. Ao final, espero receber um adeus tão sentido quanto ao que dei aos meus antigos calçados, deixados na lata do lixo.

Bem-vindos!