Noite feita,
quase releguei ao esquecimento
a pintura da tarde…
Crepúsculo recordado,
revejo a nave que não sei se chegava ou partia…
Pinceladas compostas de água e luz
pontuavam o fundo da paisagem ao oeste.
Poeta do poente,
sei que apenas o amor
é combustível poderoso o suficiente
para fazer voar
o mais pesado que o ar…
Mês: Novembro 2021
Sobre Assaltos E Assaltos*
Frequentemente, captamos no ar a perplexidade de brasileiros que se sentem melhor, mais confortáveis fora do país do que nele. É como a situação daquele garoto que se sente mais aceito na casa do vizinho do que na da sua família. A reação que temos com relação aos fatos do cotidiano pode nos levar a querer abandonar o barco, já que a nítida sensação é de que ele esteja afundando.
Com o passar do tempo, e às vezes por conta de características pessoais, alguns tem a tendência de olhar o que nos rodeia de uma forma mais abrangente. Acrescentando de que o nosso país foi “fundado” por colonizadores europeus que fizeram aqui o que em seus países nunca ousariam, observo que criou-se a máxima de que “não existe pecado abaixo da Linha do Equador” para justificar certas ações. A frase, de meados do Século XVII: “Ultra aequinoxialem non peccari”, em 1973 ganhou o gingado de um frevo tendo como autores Chico Buarque e Ruy Guerra, feita para a trilha sonora da peça Calabar – Elogio à Traição.
Somos um país jovem, um pouco mais de 500 anos, em comparação a outros que contam com 2.000, pelo menos, para ficarmos apenas na Europa. Isso não impediu que até há pouco (em termos históricos, 70 anos é muito recente), os europeus vivessem uma guerra sanguinária que dizimou milhões de pessoas. Nós, brasileiros, temos uma tarefa enorme pela frente na construção da boa cidadania e, enquanto isso, temos certos preços a pagar, ainda que sejam relativizados, não devem ser esquecidos e sim, resolvidos.
Ter isso em mente, talvez ajude, mas não impede que nos revoltemos com o dia a dia de violência em todos os níveis da sociedade – político, econômico, social, pessoal, etc – que vivemos em “nossa” casa. Hoje mesmo, agora de manhã, a minha filha mais nova, Lívia, foi assaltada no ônibus com o qual ia para a escola e levaram o seu celular, que comprei de presente para o seu aniversário e que ainda estou pagando. Pessoalmente, isso tem um custo, mas não é tão alto quanto o custo social causado pelo desvio de verbas da Saúde e da Educação por alguns bandidos eleitos por nós. De certa forma, o “modus operandi” dos dois tipos de assaltantes seja similar, mudando apenas o nível e amplitude dos operadores da ação.
No caso do celular, bloqueamos o chip e o aparelho, o que é apenas uma espécie de pequena “vingança”, já que os ladrões não conseguirão utilizar a grandíssima gama de dispositivos dele. No caso dos ladrões do erário público, pegos no ato, a aplicação de leis que já existem, bastaria para que houvesse uma verdadeira revolução, de alto a baixo em nossa sociedade. Exemplos maiores teriam o efeito de criar uma atmosfera de equanimidade. Não é vingança, é justiça! Mas, cadê a vontade política para isso? Aliás, se são esses servidores públicos que fazem as leis, porque teriam a hombridade de fazer o que é certo, mas que iria contra seus interesses pessoais?
*Texto de Novembro de 2013
Voz Do Brasil*
O “The Voice Brasil” poderia ser traduzido por algo como “A Voz do Brasil“. No entanto, já temos uma “Voz do Brasil“, que é o programa imposto desde a Era Vargas para a radiodifusão em todas as emissoras do País. O programa pretende fazer a divulgação do “trabalho intenso” de nossos preclaros representantes, que consiste, basicamente, em dizer amém aos desígnios do Executivo.
Desde os tempos de Flávio Cavalcante, Bolinha, Sílvio Santos e Chacrinha, gosto de programas de calouros. Trabalho preponderantemente com música e com músicos e admiro o trabalho de cantores. Cantar (bem), além de talento (que é a chama inicial), requer disciplina e estudo. Homenageio quem põe a cara para bater diante de poucos ou de milhões de espectadores. Por isso, sempre que posso, como hoje, procuro ver os meus amigos profissionais atuando para o grande público. Há quatro dias, foi Dia do Músico e sequer tive tempo de homenageá-los.
Mas, nem tudo é perfeito. Logo que começou o programa de ontem a noite, perdi a possibilidade de ouvir convenientemente a primeira e a segunda atração, porque um carro se posicionou em minha rua jorrando, em volume estrondoso, a voz do morro — “funks proibidões“. Para os fãs de James Brown, como eu, a palavra “funk” não cabe na definição dessa expressão da “cultura popular”, mas se apropriaram dela.
Sei que essas aberrações berradas estão, tanto quanto as organizações das drogas que as patrocinam, tomando conta das periferias das grandes cidades e, portanto, não vejo porque não denominá-las como exemplos da verdadeira voz do Brasil, tão perniciosa quanto a outra, oficial e oficiosa.
*Texto de 2012
Entrevista Sobre O Lançamento de Curso De Rio, Caminho Do Mar
Como surgiu o título do livro?
Eu estava escrevendo uma das crônicas proposta pelo curso de crônicas da Scenarium —Livros Artesanais e essa sentença surgiu ao final de uma delas. Percebi a conexão que havia entre os rios canalizados nas várzeas de São Paulo, frequentemente transformadas em avenidas de fundo de vale, uma característica bastante acentuada na região na qual moro, na Periferia da Zona Norte. São os rios cinzas pelos quais transito na cidade. Caminho do Mar é o sentido que realizei em busca de salvamento.
Quais são os personagens do livro?
Os personagens somos todos nós, intermediados por minha voz. Quando falo de nós, me refiro à comunidade humana, ao País, em particular. Evidentemente, alguns nomes mais próximos pontuam mais evidentemente porque participam do meu olhar do tempo imediato ao qual aludo, além de personagens aleatórios que surgem sem pedir licença. Quase um diário de viagem.
Como foi o processo de feitura do meu livro?
Como já citei, eu precisava escrever para exteriorizar a minha dor, o processo de desalento pessoal, muito guiado pela situação que via se agravar no País. Antes, eu era um ser recluso, alheio ao que acontecia ao meu redor, que só observava como se fosse um voyeur. Não interagia com ninguém, apenas convivia. Após perceber que era um caminho sem volta para o fim, decidi me salvar abrindo meu peito ao mundo e às pessoas. Não sem muita dor, igualmente. Mas era uma dor redentora, enquanto a outra era egoísta e sem propósito. Com isso, sofro quando vejo o mal grassando como praga. Para nós, brasileiros, não bastava a Pandemia, tinha que haver um ser abjeto que conduzisse todos nós à catástrofe. Como digo sempre, nada acontece do nada. É um desenvolvimento paulatino. Criamos as bases, os precedentes e demos chance para que o fenômeno que estamos vivendo acontecesse.
Um trecho do livro…
“Reverencio a luz, a energia visível e invisível de tudo o que me envolvia — água, árvores, seres — que pululam entre meios e veios a transitarem entre as dimensões. Saio da água renovado e agradeço à Marina e à Alice, juntando as mãos em sinal de gratidão… por me levarem até lá. Voltamos repisando passos de milhares antes — ainda que fosse um lugar mais segredado —iguais a mim, humildemente gratos e largamente agraciados.
Reencontramos a mulher que nos chamou a atenção — isolada, a conversar com seres invisíveis ou consigo mesma. Quando chegamos, ela posicionava a placa de “PERIGO”, a declarar que se as mulheres não o fizerem, não serão os homens que o farão. Fui ao mar. Dentro d’água, a vejo exortar as ondas:
— Sai doença! Venha cura! — frase repetida algumas vezes.
Ao voltar, interrompi a leitura para observá-la a recolher conchinhas. Vez ou outra, conversava com as águas. E eu me interessei por sua história. Soube que era amante do mar. Que garota, o pai não gostava que a família fosse à praia ao invés das serras de Minas. Ao primeiro contato com o oceano, se apaixonou. Morava em São Paulo.
Mas decidiu deixar a metrópole quando percebeu que aquilo não era vida.
Cantava o trecho de ‘Exagerado’, de Cazuza ‘por você eu largo tudo: carreira, dinheiro, canudo’, em alusão ao mar. Formada e pós-graduada, a Sacerdotisa desceu definitivamente há três anos para Ubatuba.
A família foi para Portugal. Olhando em torno disse que nunca poderia deixar aquele paraíso.
Eu pensei a mesma coisa.” — Trecho de A Sacerdotisa
O que se espera encontrar ao ler Curso de Rio, Caminho do Mar?
Identificação com o tempo e o lugar em que estamos. Porque simplesmente “estamos” e as pessoas parecem se considerar eternas no sentido material da realidade que nos é dada a ver. Tento ultrapassar o véu que nos ilude e chegar ao cerne de Ser, para além de ser um humano ser.
Qual a emoção que esse livro pretende provocar?
Empatia. De minha parte para os outros. Espero receber sinais de empatia de retorno. Mas já aprendi que não devemos criar expectativas. O que sei é que esse livro me salvou. O que pode mais se esperar de palavras impressas em folhas de papel, enlaçados artesanalmente?
Blogagem Coletiva Scenarium / De Que Eu Me Lembro? / Lembrar-Me
Do que eu me lembro, nada obedece a uma sequência programada, sequencial, consequente. Talvez, caso eu fosse chamado para um interrogatório — onde você estava em tal dia, em tal lugar, com quem, de que maneira chegou até lá, quais eram as suas intenções? — quem sabe conseguisse puxar pela memória fatos que me revelassem o crime cometido.
Por mais que me sinta culpado — aquela culpa atávica de estar vivo e inteiro num mundo em processo de desintegração — não creio que seja um sujeito ruim. Colabora para esse sentimento liquefeito a facilidade de me esquecer. Por uma estratégia de sobrevivência, vou me desvencilhando dos elos da pesada corrente que nos puxam para o passado. Não as arrasto feito fantasma de mim mesmo. Ainda que identifique aqui e ali marcas de ferrugem na minha memória.
Ao mesmo tempo, tento me manter atento ao fato de fazer parte da espécie que me dá as referências sobre as quais caminho — Homo sapiens — homem, brasileiro, idoso (renitente), simpatizante da diversidade de gêneros e identidades sexuais, feminista mentalmente formado no Patriarcado, portanto, contraditório. A situação mais marcante que aconteceu comigo nos últimos tempos foi o arredondamento da minha idade para os fatídicos 60 anos que me faz automaticamente precipitar para o abismo dos “idosos”. Brincando, digo que o “fardo” que carrego é de alguém com 59.
Para muitos, é como se fosse a chancela para seja sacrificado por sua inutilidade. Para mim, é a oportunidade de demonstrar para mim mesmo as teorias que desenvolvi desde novo, quando já não sentia acolhido pelos números que designam os ritos de passagem de criança, para adolescente, depois para jovem adulto, adulto, meia-idade, velho, decrépito… — a que o processo de desenvolvimento é pessoal. As idades mentais não se coadunam muitas vezes como as físicas, que o espírito é independente do corpo, apesar da gravidade atuar inexoravelmente para que concordemos com os parâmetros confortáveis que ditam tarefas afeitas a cada tempo de vida.
De modo mais claro, eu me lembro que transitei por “idades” díspares pelas quais era identificado. Já fui um velho moço, um adolescente quase à morte, um senhor criança e sou, se é que se pode estipular dessa maneira, um eterno curioso de mim no mundo, em busca de uma desesperada identificação com os outros seres da minha espécie. No entanto, rejeito rótulos, oblitero exteriorizações, tento caminhar por referências pessoais, procuro me incluir entre os tolerantes. Ainda que seja eu a principal vítima de minha intolerância.
Fisicamente, quando passei por um processo de enfermidade, em que emagreci 30 Kg em pouco tempo, lutei para não me assustar com a imagem que via no espelho, totalmente diferente da que carregava em minha memória como sendo a do Obdulio que conhecia. Não apenas eu, mas as pessoas não me reconheciam de imediato e o olhar que apresentavam quando me viam era assustador. Mais novo, ao adotar o vegetarianismo, também havia perdido bastante peso e ocorreu algo diverso — eu continuava a me ver como era antes.
Eu havia desenvolvido a distorção de imagem pela qual muitas pessoas passam em diversas circunstâncias. O ex-gordinho continuava a se ver gordinho e o olhar de horror das pessoas era mais evidente em uma época que a AIDS surgia com força avassaladora. Isso serviu para me identificar com quem sofria a rejeição pela doença e atento às informações sobre a enfermidade, sabia que a “peste” que grassava maior então era a da ignorância — algo cíclico em todos os tempos — que se abateu sem dó sobre quem viveu aquela fase tenebrosa.
Muita da minha memória é autorreferente. Eu fico encantado com quem consegue falar sobre o que aconteceu com os outros como se estivesse descrevendo um filme. As minhas lembranças que pontuam espasmodicamente aqui e ali, normalmente são de aparente insignificância, sem correlação com algo que pudesse ser chamado de “história”. Tem mais a ver com cacos de fatos disparatados como se fossem flashes instantâneos de recordações randômicas, aleatórias. Talvez fosse o caso de fazer análise de forma mais sequencial. Todas as vezes que começo, porém, acontecimentos alheios à minha vontade se interpõem, fazendo com que pare.
Enquanto isso, escrevo. É bem possível que minhas histórias sejam lembranças guardadas em algum depósito mental, liberadas aos poucos como se pertencessem a outros. Ou poderia dizer que essas histórias acabem por se incorporarem à minha, as tomando como se fossem comigo. Essa simulação de ser que muitas vezes me sinto, se mostra débil, mas estranhamente vigorosa, como se fosse a maior característica de minha existência: um sobrevivente que caminha sobre escombros de terra arrasada. Sobreviverei enquanto a curiosidade me guiar à procura de saber quem eu sou.
Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso