Carta À Vitória

Vitória Gabrielly — Foto: Reprodução/TV TEM

“Enquanto boa parte do país vibrava com os jogos da Copa do Mundo em junho de 2018, na tarde do dia 16 daquele mês, Araçariguama, no interior de São Paulo, entrava em luto pelo assassinato de Vitória Gabrielly. A família tenta manter a memória da adolescente viva em ações sociais voltadas para crianças no município.” (G1)

Depois de dois anos da época do crime, eu cheguei a escrever um primeiro parágrafo que abandonei até há dois dias, quando surgiu uma frase nas lembranças do Facebook: “Vitória… Ela lutou! Às minhas filhas. Esta é uma homenagem às mulheres, mesmo às ainda tão meninas”.

Vitória, viver requer coragem, já disseram por aí… Eu passei poucas e boas tentando sobreviver durante todo esse tempo de Pandemia. Produzo conteúdo sem a perspectiva de ser visualizado sequer, ainda que deseje. Eu me sinto como os primeiros homens e mulheres que “produziam conteúdo” nas cavernas que viviam, apenas por desejo de expressão. Nunca imaginaram que milhares de anos depois suas obras fossem resgatadas como registros históricos. Igualmente, na Idade Média, uma igreja poderia demorar séculos para ser concluída e centenas de anónimos produziam arte sem terem seus nomes colocados na História. O sentimento de “aparecer” em meio a tantos outros foi ganhando tanta projeção que muitos se perdem pelo caminho e fazem qualquer coisa para isso.

Aves de rapina humanas sobrevoam as presas para apanhá-las desprevenidas quando estão mais fragilizadas. Algumas atacam de frente, com bicadas afiadas a desferirem golpes certeiros no coração. Outras, são mais sádicas. Preferem destilar veneno em forma de palavras jogadas à esmo, atinja a quem atingir. É comum dizerem que fazem isso em nome de algum propósito de teor moral edificante. Ah, a moralidade dos imorais! O pior é que além de faltar solidariedade, empatia, senso de identidade humana com o outro humano, no mínimo, alardeiam estarem corretos em seus posicionamentos. Que destruir uma vida em nome de um coraçãozinho na rede é muito mais importante do que qualquer coisa. Coraçãozinhos se multiplicam – esses predadores se alimentam de coraçãozinhos vermelhos-sangue – e quando sentem o cheiro de sangue se tornam cada vez mais vorazes na caçada à serviço de suas vilipendias. Mencionados, hiper dimensionados para além de sua pequenez, ainda que sejam citados com raiva ou até com ódio, creem que isso é o mais próximo de se sentirem amados.

Essa distorção dos reais valores que deveriam reger a nossa convivência se espraia por toda a sociedade humana, de tal forma que fica difícil acreditar em gente. Sabe, Vitória? Você lutou. Quis viver. Tentou gritar, foi impedida. Foi morta. Mas venceu. Devo acreditar nisso. Você, como tantas meninas, Beatrizes, Klaras, Gabrielas, Patrícias, mulheres, mais novas e mais velhas, são atacadas por serem mulheres. Mas tudo se torna pior quando uma mulher age como um macho escroto e promove ataques contra mulheres. Essa ausência de sororidade é quase como se algo tivesse sido extirpado da personalidade feminina que carrega.

Em benefício da dúvida, acredito que talvez para se defenderem em um mundo de homens, absorvam seus piores predicados para se igualarem em oportunidades de trabalho e protagonismo. Quando justamente a força da mulher para mim é indiscutível. Fomos, como muitos meninos e meninas como eu, criados praticamente apenas pelas mães, como tantas da Periferia, mas não apenas. A alienação parental é uma prática comum em muitas famílias. Nas mais ricas, os homens acham que pagando a terceiros o cuidado da prole já é suficiente.

Chegamos em um ponto, no entanto, em que uma mulher não precisa mais reproduzir para ser vista como uma mulher completa. Essa imposição de dedicar parte de sua vida a gerar vidas não é mais necessário em um mundo que precisa se preocupar com a ocupação desenfreada de nossas crianças em detrimento das crias dos outros seres que ocupam o mesmo planeta. Para que a mulher ganhe a autonomia necessária que venha a promovê-la como uma pessoa igual ao homem, ela tem que assumir o seu corpo como sendo dela mesma. Procriar deve ser uma decisão pessoal. É incrível que para mais da metade da população mundial, não tenha havido um definitivo decreto de libertação. Que a mulher dirija a sua vida da maneira que lhe aprouver e que torne o mundo mais equilibrado de tal maneira que superemos a dor de vê-las assassinadas, vilipendiadas, marginalizadas por serem mulheres. A Vitória será de todos nós, seres humanos.

Obdulio Nuñes Ortega

Os Rastejantes

Seres de outros planetas, os encontramos todos os dias. Convivemos muitas vezes pacificamente com pessoas que provêm de outras esferas de percepção e atuam sob as leis de suas origens, apesar de viverem sobre continentes terráqueos. Há situações em que se torna inevitável o confronto, sendo todos nós tão diferentes uns dos outros. A partir do momento que convivemos na Terra, adotamos o comportamento humano como padrão, apesar dos tentáculos e ventosas mentais que assustam à primeira vista quem não está acostumado com os seus volteios por sobre as duas cabeças dos Rastejantes, materialistas, apesar de chamarem a si mesmos como místicos. É comum que os pensamentos primitivos que carregam desde os seus planetas interfiram na vida comum de todos nós, incluindo aqueles que buscam o convívio pacífico de todos os habitantes deste plano e no transcendente.  

Normalmente, eu procuro me afastar desses espécimes que exprimem em cada sentença o horror vibracional de sentimentos baixos e que declaram ódio aos diferentes, mesmo sabendo que precisam deles, os outros que correm na mesma raia. Curioso como se processa o pensamento de um adverso, quis entendê-lo. Quando toquei no venerável nome do senhor mitológico que governa o seu planeta, não foi surpresa que o tenha defendido como o ser mais edificante que já existiu – probo, honesto, religioso, benemérito. Apesar de estar vivendo mal, sentindo a precariedade que o fez deixar o seu planeta para viver no nosso, que lhe dá suporte mínimo de subsistência, o idolatra. Caso estivesse no mundo mitológico que o seu senhor diz existir, cairia nas tramas dos desvalidos, sem eira, nem beira, aliás, sem teto sequer, como tantos… cada vez mais.

Os Rastejantes advogam o plano de sustentação de seu líder, baseado na destilação do desamor e da conflagração – um inimigo sempre a vencer, uma ideia inclusiva sempre a combater, uma mentira sempre a prosperar. Ideologizar negativamente qualquer possibilidade de equivalência das classes sociais é garantido na inspiração da maledicência, mais aglutinadora do que bons propósitos, eficazmente tratados como se a bandeira da igualdade e a defesa de direitos fossem inescrupulosas – porque torna todos os habitantes no planeta não importa de qual estrela tenham vindo – como iguais. Isso não é tolerável para os seguidores desse ignominioso chefe de quadrilha interestelar, ladrão de consciências incautas. Infelizmente, deixamos prosperar o veneno da intolerância contumaz entre nós, sem regras. Ao contrário, as regras que ditam pressupõem a morte do adversário como solução.

Após chegar em casa vindo do trabalho, mesmo cansado, fiquei uns quinze minutos pensando como deve ser difícil para o Rastejante conviver com os diferentes da mesma casta – pois acredita nelas – e vê-las sorrir, apesar da dor; cantar, apesar da tristeza; a dançar, apesar do sofrimento de simplesmente andar. Ele acredita na iniciativa privada – já dirigiu uma casa de aliciamento de corpos para diversão – e não entende como, apesar de se sentir inferior, não seja incensado como a pessoa mais incrível que já existiu (assim como seu modelo), a sorrir para se sentir aceito. Reproduz as mensagens de esquadrões de soldados do seu governante sem pensar sobre elas, sem verificar a veracidade, sem contestar a procedência. Robótico como se não tivesse mente, vocifera palavras de ordens-cópias como se fosse uma máquina quebrada.

Apesar de minha tendência em aceitar todos em suas diferenças, percebo que não devo permitir que Ets maléficos invadam o meu planeta tão ferozmente – incendiando casas, devastando florestas, matando desfavorecidos, calando a cultura da diversidade. Ergo o meu escudo mental e tento me alhear dos Rastejantes e da ideologia quimérica de equalizar os que lhe são contrários. Agem através de milícias que auxiliam os pobres de espírito a prosperarem na intenção de tornarem o nosso mundo Terra arrasada. Que sejam combatidos para que um futuro plausível exista para todos nós, incluindo os próprios Rastejantes, porque defendo o direito de cada um pensar de sua maneira desde que não seja no propósito de fazer mal ao próximo.

Projeto 52 Missivas / Um Elogio À Sombra / Sombreiro

Meu amigo do Futuro, venha de onde vier,
sobranceiro, o Sol comandava a Vida na Terra. Mas a depender do ângulo, da estação e do meridiano, os seus raios causavam danos – escassez de água, inclemência em sua fornada incendiária, morte. O planeta parecia estar se aquecendo ano a ano, muito devido ao efeito estufa. O calor que antes alimentava e revitalizava tornou-se exceção nas relações naturais com a Biofesra, excessivamente desequilibradas. O fluxo das correntes de ar produzia cada vez maiores tempestades como se fossem ataques pessoais aos homens. Estes, pareciam não entender que nossa atuação maltratava Gaia e seus habitantes.

As diferenças de temperaturas ampliavam as suas marcas e diferenças – frio intenso, calor estuporante. Viver em casas salvas de intempéries portentosas tinham deixado de ser ocasionais e se estabeleciam como regra em nossas cidades habitadas por populações em condições precárias e instáveis. Os ciclos climáticos naturais, desrespeitados, faziam com que o meio ambiente refletisse o relacionamento abusivo que o oprimia. O Sistema hegemônico no planeta enriquecia seus patrocinadores à base da exploração desenfreada dos recursos tratados como inesgotáveis. Que um dia se findaram.

Uma sombra, mais do que desejada, era fundamental. Eu sonhava – esperança fátua – com a cobertura de um sombreiro gigantesco de temperança que nos blindasse das mazelas humanas: um alívio que viesse a equilibrar as forças que nos arrastavam para o buraco abissal da estupidez. Com a cabeça fresca, enfrentaríamos os desafios que se apresentavam diante da comunidade humana, apesar das divisões de todas as ordens. Ressalvo que estas palavras exprimiam pensamentos de tepidez momentânea na aridez de minhas perspectivas pessoais quanto ao Futuro como espécie. Éramos tão recentes na Terra, mas em nossa ínfima presença, agimos como vetores de uma doença progressiva no corpo de Gaia, que reagiu.

Não surgiu a sombra que refrescaria. O clima se transformou em nosso maior inimigo e naufragamos em uma penetrante e permanente camada sombria por séculos, limpando planícies, vales, colinas, planaltos, montanhas, rios, lagos e oceanos de nossa espécie tenebrosa. Tínhamos tanta potencialidade em realizar prodígios, porém prodigiosamente aniquilamos o Tempo. A Vida deixou de contar com a nossa presença na superfície. Nós, os sobreviventes, terminaremos nossos dias sem dias internados em cavernas, da mesma forma que começamos a nossa caminhada na face dos continentes, atualmente consumados em fogo e ardência.

Adeus!

Participam:

Lunna Guedes / Mariana Gouveia

Imagem por Greg em Pexels.com

3022

Viajei mil anos à frente. Errei, ao digitar a data. Teclei o ‘3” em vez do “2”… Por um instante, abateu-se sobre mim certa melancolia. Em um átimo, senti, em profundidade, o peso do esquecimento do que eu fui. Percebi que ninguém se lembrará da minha existência, apesar de haver a possibilidade que a minha descendência insista em vibrar em algum corpo do futuro.

O mais certo é que, caso a Terra não seja incinerada atomicamente por seus habitantes, os átomos que formaram a minha identidade estejam espalhados por campos de plantas, patas de animais ou pela água do mar, a formar novos jogos de referência com o planeta. O fogo de minha mente, apagado, não mais aquecerá qualquer saber… Ou seria o saber que ilumina a mente?

O meu espírito, segundo acredito, espero que esteja mergulhado em Deus… Ou no Universo (para mim, a mesma coisa), a compor a Força que nos rodeia, nos penetra, nos move e vibra com o Todo. Ainda assim, por mais que queira acreditar que permanecerei (ainda que não continue a existir como eu mesmo), fiquei triste, como nunca fiquei, com o meu passamento.

Intuí que, se fosse morrer hoje, por exemplo, teria quem se lembrasse de mim – irmãos, mulher, filhas, outros parentes, amigos e conhecidos. Com o tempo, a minha imagem, o que eu fiz, o que eu disse e escrevi, se perderia aos poucos… Mas, mesmo assim, seria uma existência prolongada por mais um tanto de anos…

Mil anos, simbolicamente, é uma eternidade. São várias eternidades… Estarei irremediavelmente morto em 3022. Mas a minha energia reverberará em outra forma e identidade de Vida. E se a Terra não estiver devastada, aportado em outro planeta.

Foto por Charlie CT em Pexels.com

Agradecimento*

A mangueira continua a nos agradecer…

Quem disse que plantas não falam? Decerto não articulam as palavras que entendemos como fala, mas enviam sinais inequívocos. Dessa forma, falam sim, e muito, quando estamos abertos e temos ouvidos de ouvir. Nesta manhã, colhi mangas que caíram do pé pela ação da chuva e do vento da noite anterior. São tantas que, mesmo já tendo distribuído duas porções para vizinhos, ainda sobrou um cesto cheio. E é só o começo da colheita. O que diz a mangueira para nós? Pessoalmente, me diz: “Agradeço! Agradeço a você por não ter me cortado quando construiu a sua moradia. Agradeço a você a me olhar com respeito, como um ser vivo, que também sou. Retribuo com os meus frutos, com a minha sombra, com a aceitação do meu corpo como moradia de pássaros e outros seres que lhe fazem companhia e que lhe alegra o dia. Agradeço por você me amar!”…

*Texto e imagem de 2015.