BEDA / O Sol E A Água*

Se há alguém que gosta do Sol, sou eu. Quando era garoto e tentava entender o significado de divindade, olhava para o céu, como fizeram bilhões de homens antes de mim. Como eu, eles também entenderam que sem a luz solar a vida sobre a Terra não existiria. Antes que algumas civilizações impusessem a humanidade como a verdadeira representante de Deus, a estrela em torno da qual este planeta girava em torno, já era reverenciado como tal pelos simples de coração. Do alto de sua predominância, ele não deve ter se importado com as crenças que surgiram posteriormente que o colocava apenas como um coadjuvante no firmamento dos arrogantes seres humanos em suas fainas…

Porém, abro espaço para as nuvens escurecidas. Inauguro, em minha página, o gosto pelo céu fechado. Quero que o planeta Água, que o homem chama de Terra porque quer, volte a ter o fluídico elemento como o centro de sua atenção. Vivi uma época em que São Paulo ainda era a Terra da Garoa, que os mais novos sequer imaginam como era e somente chegam a confundir com uma chuva leve. A garoa era como se fora um lençol úmido que nos abraçava, aponto de umedecer as nossas roupas sem percebermos. Era como se fora o ar feito água, que respirávamos como alimento de nossa identidade.

Atualmente, vivemos apenas duas estações – a do calor abrasador de Sol em asfalto, cimento e vidro. Ou a do frio de metal cortante em nossa carne mole. Perdemos as árvores, perdemos os rios, perdemos a nossa conexão com a divindade da Natureza, nos perdemos. Talvez, com a seca chegando à cidade mais desenvolvida economicamente deste país, o que já era urgente, se torne irreversível – voltarmos um tanto para trás, no bom caminho.

Participam do BEDA: Darlene Regina / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Gouveia / Suzana Martins

BEDA / Vestida De Mim

Ela dizia, sem pudor ou tentativa de não parecer ridícula, que se deu conta de que estava definitivamente viciada. A falta do que queria chegava lhe dar desconforto físico. Ansiava pelo momento em que teria a dose outra vez. A vertigem do toque, a embriaguez que a saliva lhe provocava, o cheiro do homem que a enlevava… o sexo que se extasiava em abocanhar…

Há impulsos que não podem ser contidos, aduzia, e quando percebeu a oportunidade que se apresentou, se jogou sobre mim como uma náufraga sobre um pedaço de destroço no meio do mar. Não importou estar casada com um bom rapaz, que lhe trazia equilíbrio, viver uma fase de estabilidade emocional ou estar com a carreira em progressão…

Arriscou tudo para estar comigo desde a primeira vez que me viu em uma festa de rua. Da atração á franca e escancarada aproximação bastou poucos dias. Eu, entre tímido e assustado, quase não ofereci resistência. Afinal, aquela mulher que me desejava tanto era bela, instigante… e confiante o suficiente para nós dois.

Desde o princípio, mal percebi o que estava acontecendo comigo… conosco… Estava fascinado pela entrega daquela moça. Ela me fazia alcançar gozos imensos e estados mentais em que se revelavam outros “eus” além de minha identidade reconhecível. Falava sem pudor que o meu esperma a preenchia de uma quentura cauterizante. Nunca havia imaginado que houvesse alguém que pudesse amar tanto! Uma amorosa paixão que me absorvia de corpo e alma.

Nunca me tive em alta conta. Jamais fui alvo de tantas atenções até que passei a ser olhado de forma insinuante tanto por mulheres quanto por alguns homens. Eu ainda não estava tão à vontade com o poder recém-adquirido, apesar de flertar de forma inconsequente, pois abandonava no meio do caminho qualquer aproximação mais séria… até que ela surgiu em minha vida de modo avassalador.

Comigo, revelou, ela se sentia uma mulher poderosa, uma fêmea conectada com a força propulsora do universo. Gostava de mergulhar em meus olhos, buscar a minha alma, sem vergonha de me invadir inteiro. Dizia que vivia vestida de mim, em estado de contínuo arrepio. Que pareciam ser contagiosos, pois passaram a ser constantes em sua presença. Ousávamos nos encontrar nas oportunidades mais inusitadas quando então ela se oferecia a mim para o embate de corpos, estando onde estivéssemos. Sem ensaios prévios, assim que nos encontrávamos, iniciávamos uma estranha dança no qual apenas nós ouvíamos a canção que nos conduzia, agarrados, em trocas de beijos apaixonados…

Na último encontro marcado, porém, decidi não aparecer. Fiquei a observando de longe. Ela insistiu ao celular por duas horas em frente ao restaurante em que comeríamos. Não obteve resposta. Não emiti nenhum sinal. Fiz parecer que havia desaparecido da face da Terra. Deve ter se dado conta que não sabia nada sobre mim – nome completo, endereço, conhecidos… Desmaiou em plena Avenida Paulista. Corri em sua direção, mas logo foi cercada por várias pessoas que a acudiram, sendo levada para o hospital. Soube que acordou meia hora depois, com soro sendo injetado no braço.

Ainda perplexa, procurou se acalmar e quase gritou de alegria quando viu um vulto se aproximar de sua cama no ambulatório. Engasgou o clamor na garganta quando percebeu se tratar de seu marido. Ensaiou um sorriso medroso e logo sentiu a serenidade de seu abraço… Chorou um choro sentido… Seu marido nada disse. Apenas a olhava com os olhos de seu amor calmo… Talvez soubesse de algo, mas não deu a entender.

Nunca mais dei notícias. Interrompi tão intenso romance por ter me acovardado diante daquele maremoto que me jogou de um lado para outro dentro da minha própria existência. Eu havia perdido o chão e voar não era para mim. Acomodado comigo mesmo, seguia regras auto impostas que o amor daquela mulher havia transformado em pó. Ao mesmo tempo em que me sentia poderoso por tê-la a meus pés, me percebia rendido à sua submissão. Mais um pouco e não conseguiria escapar ao vórtice do buraco negro da paixão. Cortei com uma faca afiada tamanho bem pela raiz.

Pelo resto dos meus dias, cada um deles, eu sei que me arrependerei da decisão que tomei. O fantasma roto do imenso amor a mim dedicado passeará pelas ruas sem charme da cidade de pedra a me assombrar pelas manhãs, tardes e noites… até o instante de meu último suspiro, quando soprarei o nome de meu único e total amor…

Foto por Enes u00c7elik em Pexels.com

Participam do BEDA: Suzana Martins / Lunna Guedes / Darlene Regina / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso

BEDA / Barreiras Do Tempo

Entrada obstruída da Faculdade de Medicina da USP, em 2014.

O que alguns poderiam interpretar como uma sobreposição de grades em uma entrada obstruída, como se fora um arqueólogo eu encontro vestígios de estilos de vida de priscas eras. O gradil de fora representaria um tempo que bastava um muro ou um portão baixo para delimitar uma área e restringir a entrada de alguém. Servia mais como um efeito mental de limitação de uma área e era regularmente respeitada. O gradil de dentro representa um tempo em que as barreiras físicas tem que parecer inexpugnáveis e, mesmo assim, não bastam…

Participam do BEDA: Mariana Gouveia / Darlene Regina / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Suzana Martins

BEDA / Anti-Sinais

sinais são importantes
a eles devemos ficar
atentos
caetano
               perguntado se respeitava sinais disse
claro
          são sinais
                          pergunto
por que queremos desrespeitar
                                                  o que nos sinalizam?
propaganda de cremes anunciam
serem anti-sinais
como se quiséssemos
apagar
                                               a nossa trajetória
aos meus 14
                     uma senhora disse para seu filho
no ônibus
                 deixa o moço passar
fiquei espantado
                           eu me tornara um moço
barba branca no rosto
atendentes me chamam
                                      de moço
sei que é uma maneira
                                     de afagar a vaidade
estratégia de recepção ao cliente
mas o meu espanto persiste
sou velho demais
                             para ser chamado
                                                          de moço
cabelo rareado
                         redemoinho falhado
para suavizar discrepâncias
raspo a cabeça
                         cheia de mentais
                                                     reentrâncias
reafirmo a queda inevitável
palavras caducam?
tenho evitado escrever algumas…
sempre
              e
                 nunca
tenho as considerado definitivas demais
aliás
         tenho tentado evitar também
                                                        demais
aliás
         também
                       e aliás
e sempre
               é logo mais
o nunca
              nunca mais
porque viver nos ensina que marcar
coisas como definitivas
não pertence
                      ao nosso mundo
imediatista
                   impermanente
se me contradigo aqui
é por falta de opção
                                 como não há opção
para a morte do corpo
                                    como sei que a energia
é infinita
                enquanto este universo existir…

Foto por SHVETS production em Pexels.com

Participam do BEDA: Suzana Martins / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Darlene Regina