Muitos, sou. A cada idade, fui alguns. Caminhei pela luz da escuridão e pelas manchas escuras do Sol. Naveguei por mares azuis e ares transcendentais. Viajei por mim e pelo sim. Passei por vãos e nãos. Fui profundo e raso. Nunca deixei de ser nós. Ainda que todos sós…
Quando tiro os óculos, me vejo bem melhor pessoa. É o caso de miopia seletiva… e o ocaso da culpa.
Marcos do tempo Riscas de sombra Riscos de sobra Marcas ao cento Resta homenagear A testemunha solar…
Esta imagem reflete bem o meu olhar de reverência desmesurada ao que vi em meu entorno durante a minha estada em Paraty, no começo de Outubro de 2021, por ocasião da comemoração dos meus 60 anos.
Sob luzes externas — a natural e a artificial —, em busca da luz interior. No fone de ouvido, “Cajuína“.
Os Pataxó são um povo indígena brasileiro de língua da família maxakali, do tronco macro-jê. Em sua totalidade, os índios conhecidos sob o etnônimo englobante Pataxó Hãhãhãe abarcam, hoje, as etnias Baenã, Pataxó Hãhãhãe, Kamakã, Tupinambá, Kariri-Sapuyá e Gueren. Apesar de se expressarem na língua portuguesa, alguns grupos conservam seu idioma original, a língua Patxôhã. Praticam o “Xamanismo” e o Cristianismo. Vivem no sul da Bahia e em 2010, totalizavam 13.588 pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro De GeografiaE Estatística. A Ingrid trouxe da região onde os portugueses desembarcaram pela primeira vez em Pindorama esse colar de contas. A minha ascendência indígena me permite usá-lo para além de objeto decorativo, por carregar vários significados. Para mim, é como voltar para a kijeme.
“Sou um macho da espécie Homo sapiens. sou feliz sendo um macho, gosto de parecer másculo e amar como um homem. Está tristemente enganado quem acredita que o macho tem como prerrogativa oprimir a fêmea de sua espécie para se sentir funcional. E por me sentir tão bem e ciente da minha masculinidade, posso me dar ao prazer de cumprir tarefas que alguns não atribuiriam a um homem, como estender calcinhas no varal. Fiz isso hoje, antes de sair para trabalhar e, repentinamente, me senti muito bem, quase realizado… Tantos anos antes, quem as vestem atualmente, usavam fraldas…”.
Por outro lado, estou ciente que homens mal formados construíram essa estrutura que tanto mal causam não apenas às mulheres, como também aos próprios homens, ao criar barreiras ao acesso de ser um humano de maior amplitude. Sinto lágrimas vir aos olhos a cada feminicídeo que é noticiado. Pela dor de quem sofre e também por vergonha. Sim, choro por motivos graves e choro também pelas belezas delicadas que encontro pelo caminho. Sou um desgarrado dessa turba machista que insiste em perpetrar crimes hediondos em nome de uma distorção como a de acreditar que tem domínio legal e assegurado por antigas e anacrônicas escrituras sobre a mulher.
Sou daqueles que acredita no amor e em amar as diferenças. Não creio que a mulher pertença a um gênero oposto, mas complementar. Sabendo que são mais completas do que nós em todos os aspectos, menos naqueles em que prevalece a testosterona e a força física, compensada pela resistência de espírito.
Na verdade, só ganharemos se nos afeminarmos. Ganharemos em predicados como resiliência, olhar meticuloso, percepção aguçada, dedicação, competência e senso estético. Qual homem consegue, como muitas das mulheres o fazem, se desdobrarem em tantas atribuições como as que são designadas pela Sociedade Patriarcal a elas por “dever de nascença” e, apesar das barreiras, buscar em serem melhores pessoas?
aciono a máquina do tempo… ao mesmo tempo que ouço “Wuthering Heights” a voz aguda e precisa de Kate Bush me conduz à lembrança da moça de cabelos esvoaçantes ela dança em minha imaginação em preto e branco memória de garoto na antiga televisão enquanto um vento cálido e reconfortante embala meu corpo estanque no ponto do coletivo que me levará para longe dos morros de cães uivantes do meu norte que contam suas histórias: “estou preso, quero sair!”… “estou na rua, quero um lar!”… “estou só, quero meu humano amor!”… “sou amado, gosto de latir!”… a cápsula-transporte se aproxima embarco rumo ao sul… no concerto sem conserto da vida imprecisa deixo a ventania levar minha dor uivada para destino incerto talvez rumo ao sul do homem que fui…
*Poema de 2019. Abaixo, a bela e talentosa Kate Bush, em clipe de 1978.
Eu, até os meus quatorze ou quinze anos, escutava muito mais músicas brasileiras do que estrangeiras. Corria o início dos anos 70. Era bastante fascinado pelas letras, que em conjunto com as belas melodias, compunham o meu acervo poético, para quem não tinha tanto acesso à literatura em versos para além dos livros didáticos do ginásio.
Entre os compositores que apreciava, Chico Buarque era um dos meus favoritos. As suas composições, falando das mulheres como se fora uma mulher, me influenciou grandemente. Eu, que apenas queria entender aquele ser que se expressa fortemente através de uma parte do corpo que os homens nem sequer imaginam o poder — o útero — o usei como referência em muitos aspectos. Quando ouvia “Com Açúcar, Com Afeto”, “Cotidiano” e “Sem Açúcar”, por exemplo, sabia que era apenas um contraponto, já que a minha mãe, minha referência imediata, não se parecia com aquelas mulheres aparentemente submissas. Mais recentemente, ao pesquisar “Mulheres De Atenas”, soube se tratar de uma passagem da peça teatral de Augusto Boal, de 1976, versando sobre uma mulher libertária — Lisa, Mulher Libertadora — que critica a sociedade patriarcal, em pleno Regime Militar.
Nos versos a seguir, que fiz para um projeto musical apenas iniciado, mas nunca levado adiante, tento me colocar no lugar de uma mulher. Espero que as minhas amigas sintam pelo menos um pouco representadas por eles. Se não, perdoe a intromissão nesse universo que tento compreender até sempre!
Uma Só Asa
Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor? Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?
Um anjo caiu em meu quintal e foi assim Uma luz, um estrondo… e um rapaz se ergueu Entre a garagem coberta e o canteiro do jardim De seus ombros largos, apenas uma asa, a outra se perdeu…
Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor? Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?
Vestia uma roupa muito branca, quase transparente Deixava entrever as formas de um corpo esguio Jeito de menino-homem, com a sua asa pendente Caminhando decidido, veio direto para mim, bravio
Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor? Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?
Não tive medo, não pensei neste tempo doentio Parece até que o esperava, o buscava em meu sonho Não aguardava que fosse um anjo vindo do vazio Mas senti que ele seria aquele ser que chegara risonho…
Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor? Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?
Ao se aproximar, pegou em minha mão, que tremia Beijou a minha testa e baixou os lábios até a minha boca Apenas entreabriu a sua e soprou que me queria Que já há algum tempo me observava e que chegara a nossa época…
Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor? Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?
Perguntei sobre a asa que não trazia, a que havia sumido Respondeu que começou a pensar apenas em mim e que caíra em casa Já amputado, porém feliz, pois fora atendido em seu pedido E dessa maneira, ganhei o meu homem, um anjo de uma só asa…
Quem quer um anjo em sua vida, quem quer um amor? Que caia do céu, direto para você, um anjo transgressor?”