Desejo

Cedo, percebi a dependência de nosso comportamento amoroso a flertar com a nossa precariedade. Aliás, não somente quanto a relacionamentos pessoais, mas em todas as estâncias da vida. Agimos como dependentes da droga do desejo e suas consequências, numa eterna retroalimentação.

Sair desse ciclo é quase como morrer. Mas talvez não haja algo maior do que o desejo de morrer, ainda que muitos não reconheçam esse viés. Preferem negar a morte em vida, como se não existisse. Namoram a possibilidade de Eternidade ao abraçarem religiões que prometem a vida eterna.

Chegam a estipular condutas que garantam esse futuro num lugar edílico e com benefícios atraentes que só fazem sentido para seres encarnados. Como as húris, seres antropomórficos semelhantes às mulheres virgens, prometidas aos homens islâmicos bem-aventurados, a servi-los como gratidão por suas boas ações na Terra. É como se fossem condenados ao desejo permanente para empreender a eterna tarefa de alcançar a satisfação.

Aparentemente apenas os homens são premiados no Paraíso do Islã. Assim como aqueles outros que, valorosos em sua vida terrena, se sentam à direita de Deus-Pai na Eternidade, a fruir benesses, as quais compreendo que não iriam além de permanecer na benção da ignorância sobre todas as coisas. Ser curioso que sou, com insaciável sede de conhecimento, para mim, seria o Inferno. Atualmente, longe no distância, mas não dos nossos olhos, as duas versões religiosas mais influentes se digladiam à base de explosões de corpos, não sem antes aviltá-los.

O desejo é pessoal e intransferível. Os desejantes juntam-se para saciá-los, mas a consequência é aumentar o desejo mútuo. Por algum tempo, essa interação é satisfatória. Mas se uma relação é mesmo profícua, gerará motivação para a criação de novos desejos, muitos alheios aos dinamizadores desse processo.

Se estamos no mundo, devemos saber gerenciar essas circunstâncias que nos colocam muitas vezes contra as nossas orientações comportamentais. Abrir mão de novas experiências requer autocontrole. E não é contrário à “razão”, porque é comum replicarmos as mesmas ações nas novas relações com outros indivíduos.

A não ser que haja encaixe. Entrelaçamento de vivências, ainda que díspares. Aprofundamento de recíprocas experiências, mesmo que alternativas. Alternância de posições para a busca da satisfação comum. Desejável, não? Bem, somos bons em desejar…

Feliz Dia de São João!

‘Bora lá!*

Há pelo menos 30 anos, após o nascimento da minha primeira filha, consegui empreender o desejo de viver um dia de cada vez. Entendi que cada dia poderia ser o último e que não deveria ficar tão preso ao passado, apesar das cicatrizes coçarem vez ou outra. E nem esperar que o futuro simplesmente ocorresse naturalmente com a passagem inexorável do tempo. Compreendi que o futuro se faz principalmente no presente. Sem prescindir de planejamento, percebi que o imponderável também tem o seu lugar e que devemos estar preparados para o inesperado. Quando ocorrer o que não estava programado, imediatamente aplicar um plano B. O interessante é que estou quase sempre pronto para as coisas ruins, mas nem sempre para as boas. Eu tinha planejado ter um dia totalmente diferente, de atividade contínua. Porém, algo escapou ao controle (nunca conseguimos controlar tudo, aliás, nem devemos) e ganhei uma folga nesta imensa folga de mais de um ano de Pandemia (alguém além do Barack Obama a esperava?). A moça do tempo anunciou um dia nublado e eis que o sol se fez. Inesperado, apesar de bem vindo, nem sabia o que fazer. Agora mesmo, sairei para uma caminhada à esmo, como tenho feito neste primeiro semestre. Conversarei com a luz. Seguirei por caminhos abertos e sem aglomeração. Ruas vazias de Sol inclinado a alongarem sombras de gentes e árvores. ‘Bora lá!

*Texto de Junho de 2021

FANTASMAS

não lembro não era não entendo quem fui
não tenho permissão para ver
descaminho por aí passado a limpo
descompassado nas trilhas do limbo
são íngremes ladeiras deserdadas beiras
quanto mais subo mais desço
para o vale dos paralelepípedos das lamentações
de tristezas e de desalentos
as ruas desatentas de seus transeuntes
enquanto anjos vingadores de cinza armados
observam pares trios quartetos de deserdados
deitados em papelões em posição fetal
quando abrirem olhos voltarão ao deserto de seus corpos
desabastecidos de vibração dementados
somos um grupo unidos na perdição
nem sei quando foi a última vez que chorei
porque me vou sem querer desperdiçar
qualquer coisa do meu poder de não sentir
moo minhas emoções chove chovo lavo
meu odor de urina fezes rotas roupas
sou um ninguém entre tantos todos
nulidades ausências pouco peso ignorados
vivemos para abastecer a morte em vida
somos como recados dados aos passantes
apesar de seus calçados é um povo a tudo alheio
à nossa presença dedicada em demonstrar
que tudo é passageiro não temos
ponto final apenas esvaímos
tênues seres feitos fantasmas…



Projeto Fotográfico 6 On 6 / #EntardeSer

Sangue Na Tarde

O Inverno anuncia tardes
derramadas em delírios…
Mal podemos perceber
que o tempo seco nos arranca
a umidade da pele
arrepiada ao toque do frio…

Os olhos desejam
que se torne espelho a beleza
que se apresenta,
enquanto vemos que a paixão
do Sol pela Terra
vertida em sangue…

É tarde, mas tão tarde!
Porém, ainda não é noite.
Ainda não sinto o açoite
da escuridão que me parte!

distraído de mim me sinto no início dos tempos
fuma a terra bruxuleiam as plantas dançam ao sabor dos ventos
animalzinhos se escondem de predadores que se aproximam
enquanto dragões expelem fogo antes da noite que se derrama…

em São José Dos Campos ainda há campos mais abertos
a Via Dutra caminha em seu percurso até o Rio
a cidade entardece em intenso movimento de autos e pessoas
floresta de torres de energia substituem às árvores no horizonte
o vento espalha as nuvens que desenham ramos imaginários
em tons de amarelo abóbora rosa que serão devoradas
por luzes artificiais logo mais…

quando entardece a suavidade enternece nossos olhos
as cores se degradam à aproximação do fim do dia
as casas erguidas sobre os montes invadem o horizonte
interrompem o sonho de o mundo não tem fim…

as silhuetas desenhadas no quadro da tarde denunciam
a cidade que o homem desanda a pintar em dor e pouca cor
mais de perto o duvidoso perfil de linhas retas são recortadas
nelas seres se adaptam em jaulas e aceitam a condição de animais…

Participação: Lunna Guedes Claudia Leonardi / Mariana GouveiaSilvana Lopes