INDIFERENÇA*

O Sol é indiferente à nossa sorte. De certo, quando envelhecer mais uns 6,5 bilhões de anos, se expandirá a ponto de engolir todos os planetas que o circundam. Mas não se preocupem, terráqueos! Nós, seres humanos, mataremos Gaia antes do próximo bilhão de anos, quando a vida em nossa superfície ficará impossível de continuar pela expansão de sua luminosidade, a não ser em suas formas mais simples. Nestes tempos de seres pandêmicos, mentiras virais tidas como reais e vírus, apenas sobrevivemos…

*Texto de 2020, plena Pandemia de Covid-19

A Engolidora De Mim

manhã de amena insolação café na mesa
pão crocante manteiga sem sal creme de ricota mel cereja
mamão uva geleia de morango chocolate e surpresa
com toda a delicadeza você se esgueira entre os pés
do tabernáculo sagrado da refeição matinal
abaixo da elevação ouvimos o som da água
descendo em correnteza que se choca entre as pedras
retumbante em dança música da natureza de ser
livre presente em se desfazer e se reagrupar
em poças filetes remansos limpos rebeldes
aproveita que estou apenas de calção
retira a proteção fico exposto à sua adoração
eu que já adivinhava a sua intenção
já sentia intumescer aquele que pensa por si só
e você ama que ele responda mesmo depois de tantos anos
a sua boca o beija passeia a língua por onde deseja o possui
estamos ao sul de qualquer norte a luz solar a invadir
a nossa intimidade fluida inocente sem mancha
enquanto reza busca a profundeza de si geme eu urro
sem testemunhas de tamanha beleza quase choro
não é pelo gozo não é pelo prazer não é pelo vazio que me preenche
não é pelo abandono à consciência de que sou um com o todo
com a sua entrega me tem sob seu controle
apenas consigo entender que sou possuído
enquanto me sinto liquefeito mole
passeio por outros mundos vívidos
me energizo me perco me integro me entrego
enquanto você me engole…
me deixa exangue me arranca um sorriso
quando agradece: “obrigada pelo gole!”…

Estaiada

Da ponte, a trama
Da cidade, o drama
Dos campos sem grama
Dos rios de lama
Da vida em programas
Dos corpos em chamas
Da luta pela fama
Do império da grana
Que aos corações inflama…

Velhinho

eu acordei hoje velho
quase sempre acordo jovem
e só restabeleço o que sou
ao surgir do outro lado do espelho
sonhei que era criança
foi um sonhinho-lembrancinha
menino pequeno queria ser crescido
ficava indignado egoísta queria
me sentar sozinho no banco do ônibus
minha mãe puxava para o colo entre
suas pernas de pelos mal aparados
pinicavam deixa os outros se sentarem
queria ficar na janela vendo o mundo
passar rápido mais rápido menos rápido
às vezes o mundo parava
minha mente continuava antecipava
surpresas

voltei velho fui à feira
quando garoto gostava de falar com velho
o velho de hoje puxa assunto quase
ninguém lhe responde olham
desconfiança ou indiferença
na banca de frutas um velho de longos
cabelos e barbas brancas puxa fumaça
de um apequenado cigarro de palha
seu olhar é mais profundo
do que uma fossa oceânica de tantas turbulências
acalmadas na escuridão
passo por um bar velhos jogam dominó
perdem partidas ganham idade
um deles olha para as peças
como se fossem pedaços da vida
que insistiam em não serem encontradas
respira pesado
ar que pouco permanece e se esvai
mais um ser antigo caminha
com seu velho cão
comem do mesmo pão
são amigos pais filhos irmãos
qualquer um que partir antes
levará consigo seu ente querido
darão adeus às mútuas lembranças
esquecidos

desconsolado desço a angélica
por uma travessa chego ao portão lateral
cemitério da consolação
me movo entre pedras me perco
revisito jazigos pássaros cantam
persigo ruelas ventos sopram
pareço ouvir vozes dos que se foram
admiro mausoléus árvores respiram
o sol ilumina o tempo construções desabam
em silêncio registro estátuas vivas os mortos falam
piso sobre lágrimas que já secaram
acalmo os meus pensamentos divago
tropeço em mim busco solução
os eternos moradores respondem desde o chão
calma… tudo está em dissolução…

Foto: imagem pessoal de um mausoléu do Cemitério da Consolação.

Dança Mágica*

Em relação à imagem acima, escrevi em 13 de setembro de 2016:
“Ontem, como estava há quatro dias “virando” de um evento para outro, não estranhei que me sentisse em um sonho quando começou o cortejo dos candelabros conduzidos pelas bailarinas do grupo de Nazira Izumi. Ao adentrarem ao “Picadeiro“, com o auxílio generoso da bela trilha sonora, o clima da apresentação pareceu o de uma reunião de modernas bruxas na floresta, a homenagear os mistérios femininos com a ciência da vida. Cumpriu a nós, expectadores, apenas nos deixarmos levar pela beleza dos movimentos ritmados daquele ritual…”.