Um Pai*

Com a chegada de datas marcadas como importantes — aniversário, por exemplo — passamos por reflexões acerca da passagem do Tempo, lembranças fugidias ou outras, mais palpáveis, porém de certa maneira dolorosas. Em 2014*, escrevi:

“Por poucos anos, tive uma convivência normal com o meu pai. Ele era (é) um homem elegante, com tez amorenada e os olhos puxados, devido a sua ascendência indígena. Eu me pareço mais com o pai dele, o ‘Seu’ Eustáquio Humberto, mas não são poucas as vezes que o vejo em mim, no espelho ou fotografias, e o ouço reproduzido em minha voz. Quando houve a cisão definitiva entre ele e minha mãe, que fisicamente já passou, deixei igualmente de tê-lo mais assiduamente por perto. O Senhor Ortega ainda está presente em meu tempo e espaço e o homenageio, mesmo que de modo torto, mostrando que, um dia, formamos uma família como pai e filho”.

Post Scriptum: Não o imagino me segurando em seu colo muito tempo depois da foto. Ele não afeito a certas formalidades e certamente não se mostrava carinhoso. Na minha memória, no entanto, ele era o meu herói. Essas contradições se pacificaram na tremenda objeção ao seu comportamento que acabei por usá-lo como a um exemplo não ser seguido. O meu pai faleceu há alguns anos… cinco anos, talvez. Não foi marcante como deveria, a não ser pelo fato de que, prestes a entregar um projeto para a Scenarium Livros ArtesanaisRUA 2 — sequei. Posteriormente, consegui desenvolver o livro de contos curtos, mas o tema recorrente foi a morte.

Arte Anônima*

Em 2021* publiquei:

“Ao varrer esta plataforma, encontrei marcas que não havia percebido antes. Como faz alguns anos que foi feita, fiquei me perguntando quem teria deixado este registro para a posteridade. Lembrei das amigas que nos deixaram fisicamente. Não deve ter sido a Penélope, labradora de tinha o corpo e o coração grandes demais. Talvez fosse da Dorô, tão doce e amada por ter crescido junto com as crianças humanas. Ou da Frida, as de olhos de avelãs, quieta ilusionista, que surgia do nada em algum ponto da casa. Da Domitila, que ainda está conosco, também não, pelo tamanho maior do que está marcado. Enfim, o que sei é que daquele patamar as marcas poderão sumir um dia por alguma reforma. Do meu coração, enquanto eu existir, jamais!”.

Olha que esqueci das menores, a Lolla e a Bethânia, tão curiosas que é bem capaz de terem produzido a arte anônima. Infelizmente, Penélope e Dorô nos deixaram fisicamente por causa de câncer. Frida, atropelada quando saiu para cheirar as novidades da rua. Mas continuam existindo enquanto o meu coração bater.

Cair Em Si*

Em 2020*, escrevi:

“Deixei cair um pratinho que gostava muito. Espatifou-se. Ele servia para tampar um pequeno bule de chá do qual eu já havia quebrado a tampa original. Desde garoto, fui (sou) desajeitado. No caso do pratinho, ao quebrar-se, só então vim a perceber a palavra AMOR revelada e preservada. Só espero que não seja tão desajeitado que só perceba o amor depois de uma queda. Se bem que amar é como cair em si…”.

Sessenta E Três

Antes de mais nada, devo ressaltar que recebi autorização para divulgar a imagem acima. Estou da maneira que gostaria de ficar a maior parte do tempo. Quando me coloco (des)vestido dessa forma, volto a ser o mesmo garoto que passava os dias despojado de coberturas que denunciam um sujeito que obedece às leis invisíveis porém poderosas de como devemos estar trajados. É claro que não passa de uma ilusão. Uma mentira que sei que é mentira e não fere a ninguém.

O pior é quando as pessoas não apenas sabem que a mentira é óbvia, mas para alcançarem o que querem, as aceita ou transforma essa mentira em algo possível e, portanto, ainda que improvável, a usa para justificar os seus atos. Coletivamente, isso pode gerar situações em que a Democracia, para dar um exemplo, pode ser estiolada feito carne charque. Uma frase popular resume esse recurso: “me engana, que eu gosto!” — algo que quem se apaixona também entende.

O que me leva a uma constatação deste tempo que me exaspera. Por dois motivos: porque sou pai de mulheres e porque pertenço ao gênero que está matando as mulheres, por serem mulheres. Não são poucas as vezes (tantas quantas ocorre um feminicídio ou tentativa de…) me sinto despedaçado. Sempre em nome do amor e, nesse caso, de um amor mortal. O que é uma contradição em si. O amor deve ser direcionado à construção da leveza, do bem querer. Ainda que a quem ame, deseje partilhar a vida com outra pessoa, Se ama, a deixe livre…

O Patriarcado — o sistema sob o qual a Sociedade brasileira desenvolveu fez tanto mal ao homem quanto faz mal à mulher, pelas mãos daqueles que se acham superiores apenas porque carregam um pedaço de carne entre as pernas. E que por ele as fêmeas da espécie devem ter respeito como se fosse uma fonte natural de potência. Sujeitos que se consideram fortes, mas não aguentam nem fisicamente, nem psicologicamente, o peso da desigualdade que sofrem as mulheres.

Outro estigma sob o qual vivemos é o do péssimo legado que a Escravidão deixou para todos nós como cidadãos de um país que até hoje vive a desigualdade racial de tal maneira que se torna premente que as políticas de reparação sejam implementadas. Caso contrário, nunca curaremos as várias chagas que nos levam a uma situação quase irresolúvel. Acho estranho quando dizem que não há guerra no Brasil. O número de mortos nos conflitos por armas de fogo, armas brancas, acidentes automobilísticos é tão grande quanto das guerras civis pelo mundo ou guerras por território como no Oriente Médio ou Europa (sabe aquele lugar que se julga desenvolvido?)

Acho que esperavam (quem suportou ler até aqui) que eu fosse falar sobre festa e felicidade por chegar até este quadrante. Estou ficando velho, sem dúvida, mas não sou daqueles que dizem “no meu tempo”, como se fosse um tempo marcado no passado. O meu tempo é AGORA e, portanto, não posso deixar de me posicionar como estou fazendo. Agradeço a atenção para quem chegou até esta última linha. Acho que é permitido para quem é do grupo dos 60+.

Sobre Navegar E Amar

Eu quero ser lido,

mas jamais decifrado…

Eu quero ser saboreado,

mas nunca perder o gosto…

Eu quero ser rio manso para ser navegado

e mar revolto que afunda embarcações…

Quando me mostrar indômito,

buscarei a comunhão…

Quando estiver sereno,

quero causar perturbação

dos sentidos e dos sentimentos…

Quero ser seu e emancipado de mim,

quando estiver consigo…

Barco jamais ancorado,

conduzir e ser conduzido…

Navegar e amar…

Foto por Mikhail Nilov em Pexels.com