31 / 01 / 2025 / Gentrificação Urbana

Outro dia, fui até a região de Pinheiros e observei um processo comum em toda a São Paulo — a substituição gradativa de vilas de casas e ruas tranquilas pelo excesso de veículos em vias estreitas para a passagem de carros em asfaltos irregulares, resultado de ruas mais frequentadas pelo adensamento urbano.

A chamada Gentrificação Urbana faz com que as características de bairros em que a vizinhança que se conhece, que se frequenta, que monta quermesse na igreja ou na escola, que mantêm laços afetivos, geram namoros entre os moradores, integram times de futebol — a rua de cima contra a rua de baixo — o acompanhamento no crescimento das crianças, o conhecimento do vendedor de pipoca, da vendinha ou da mercearia, a solidariedade nos momentos mais difíceis. Tudo se esvai como areia na ampulheta…

A radical obliteração de estilos de vida mais leves e saudáveis por um estranhamento de pessoas que não se reconhecem mais torna-se praticamente irreversível. A pressão pela própria decadência da qualidade de vida, a alienação dos residentes uns dos outros, encastelados que acabam por ficar nos novos edifícios, configura uma tendência intrínseca ao formato esquemático de quadrados dentro de quadrados dentro de quadrados.

A urbanidade se perde em sentido inversamente proporcional à demolição dos antigos imóveis construídos ao gosto do morador. A não ser os mais aquinhoados de poder econômico, as celas com janelas para outras janelas se multiplicam como se devêssemos aceitar que um apartamento configure o símbolo máximo de status do cidadão. Normalmente, quem participa da construção de um edifício dificilmente terá condição de adquirir aquele imóvel.

Apesar disso, a construção participa da ocupação de uma volumosa mão-de-obra em todas as suas etapas. É interessante notar que além da consequente segregação socioespacial de quem adquire um imóvel, ocorre o afastamento de pessoas de orçamentos familiares menores contribuindo para a expansão da desigualdade econômica.

Eu me lembro que um dos objetivos de Oscar Niemeyer ao construir o COPAN ao colocar no mesmo andar apartamentos maiores e menores, contribuiria para pessoas mais pobres morassem ao lado de pessoas mais ricas. Não sei se isso chegou a acontecer em algum momento, mas com o tempo houve uma homogeneização das classes econômicas dos moradores. Isso se processou de uma maneira quase “natural”. O que talvez se distinguisse um pouco no agrupamento tradicional suplantado pela verticalização.

Enfim, existe uma planificação dirigida de fora para dentro tanto por parte dos empreendimentos em que a classificação econômica das pessoas é clara, obviamente com a participação do interessado em adquirir a propriedade. Um dos quadros mais interessantes do jornalismo versa sobre os direitos e deveres de moradores de condomínios. Os síndicos têm que se desdobrarem como se fossem administradores de uma pequena cidade para fazer reinar a boa convivência dos condôminos.

Viver em grupo não é fácil…

30 / 01 / 2025 / A Atriz

Há tempos não encontrava Léo. Eu havia perdido o seu contato por todos os meios possíveis por dois anos. Porém vim a receber um e-mail enviado por ele, dizendo que estaria em São Paulo por esta semana. Ficamos de nos encontrar na Paulista, em frente ao Reserva Cultural e passamos uma cálida tarde deste verão atípico a prosear. Amigo querido da Faculdade de Jornalismo, éramos dois trintões ainda buscando espaço naquela atividade de destino incerto diante das novas plataformas da informação, “cada vez mais pontuada por opiniões pessoais e conspurcada por posicionamentos ideológicos…” — frisei, ao comentar sobre as dificuldades da profissão. “Não foi sempre assim?” — contrapôs Léo. Ele sempre foi muito mais cerebral do que eu e devia ter razão…

De início, perguntei por onde ele havia andado por todo aquele período, ao que me respondeu que foi morar em Santa Catarina. Para explicar porque havia sumido das redes sociais, disse que havia casado… quer dizer, se unido à uma jovem. “Essa circunstância o impediria de se comunicar com os amigos?” – retorqui. Léo baixou enigmaticamente a cabeça, fechou os olhos, os abriu novamente e passou a desfiar a sua história recente.

Em uma viagem que fez para o Sul, disse, conheceu T…. “Era atriz e trabalhou no ‘Hair’…” brincou. Na verdade, T. era uma atriz que ultimamente começava a se tornar conhecida por participar de uma novela global. Inicialmente, lhe dei os parabéns por estar com a bela “tigresa de unhas negras e íris cor de mel”!…

“Meu amigo, foi paixão à primeira vista! Desbundei! Ela também gostou de mim! O fato de ser de outro lugar ou talvez por minha personalidade mais calada, diferente da maioria dos seus amigos de teatro, veio a trazer certo frescor aos relacionamentos que já havia tido. A sua postura agressivamente aberta, inversamente ao que sempre evitei, imediatamente me cativou. Logo, estávamos a fazer planos para o futuro. Uma loucura!”

Conforme Léo depunha, maior era o meu espanto. Aquele não parecia ser o cara que conheci na faculdade, controlado ao extremo. Era um tipo que sempre evitou as possíveis paixões pelas colegas de classe, os namoros gostosamente inconsequentes ou, minimamente, os “amassos” inocentes com as amigas mais próximas. Certamente, T. devia ser alguém muito especial…

Continuou: “Logo, conheci os seus outros namorados…”. Nesse trecho, derrubei a cerveja na mesa. “Fiquei amigo de quase todos, mas um deles se sentiu ameaçado em sua posição de primazia e tinha razão para isso, porque assumi essa referência, como até hoje acontece…”.

Léo olhou para mim com um sorriso de quem sabia que estava a provocar um efeito de singularidade no espaço-tempo. “Com T., apesar de ser mais nova do que eu, aprendi muita coisa sobre o amor (também o físico) que me transformou em outra pessoa. Aquele Léo que você conheceu, eu diria, morreu…

Quase chegava a ouvir a voz de Gal ou a de Caetano:
“Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher
Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor
Espalhado muito prazer e muita dor…”.

Léo: “Em poucas semanas, estávamos morando juntos. Consegui trabalho no jornal local e, quase ao mesmo tempo, devido ao seu talento (para mim) e à boa sorte que lhe dei (segunda ela), T. obteve um pequeno papel em um filme feito por lá, com produção do Rio de Janeiro. Os produtores e o diretor, o A.W. a adoraram, não somente porque fosse realmente uma bela mulher, mas também, posso garantir, por ser muito talentosa!”.

Ao término da última sentença, eu me senti muito mal por ter passado um pensamento fugidio por minha mente, fruto de puro preconceito, mas nunca o verbalizaria, como não o fiz, diante do amigo…

“A minha relação com a T. foi se aprofundando mais e mais, porque além de amante e um amoroso companheiro (palavras dela), ela sempre respeitou a minha opinião, inclusive sobre o seu processo artístico. Igualmente, passou a estimular o meu desejo de escrever. No ano passado, cheguei a publicar alguns contos em cadernos literários… Quanto ao meu afastamento, foi uma opção pessoal, pois me sentia livre e decidi me desvencilhar dos liames que me prendiam ao antigo eu. Desculpe não ter entrado em contato antes, mas tudo aconteceu tão rapidamente e tudo foi tão impactante que não tive cabeça para mais nada!… Atualmente, passamos a morar no Rio, onde ela está gravando a novela. Esta semana, ficaremos uns três dias em Sampa. Viemos analisar a oferta de sua participação em um filme”.

Tomou um longo gole de cerveja e, como a encerrar o seu relato, disse que estava feliz, amava a sua companheira e que estava atento aos possíveis novos paixões de T. para que ela não se machucasse com pessoas que a quisessem somente usá-la.

Pensei em perguntar outras tantas coisas ao Léo, mas qualquer questão que formulasse talvez o ofendesse de alguma forma. Percebi que não estava preparado para lidar com um assunto tão delicado, sem parecer preconceituoso, e decidi apenas aproveitar a companhia dele que, por amor, transformou a sua visão de mundo, em que a tigresa podia mais do que um leão.

Passamos a conversar sobre antigos colegas e conhecidos, também sobre política, futebol e trabalho. Senti certa vergonha em relatar qualquer coisa que tivesse como tema o amor ou mulheres. Percebi que os meus romances não sobrepujariam em interesse a sua história.

Algo pior estava a assomar — pelo brilho dos olhos do Léo, quando falava de T. — senti que também eu poderia me apaixonar por ela… Ah, como gostaria saber tocar um instrumento…

Foto por Tima Miroshnichenko em Pexels.com

29 / 01 / 2025 / Amantes

Quem acha que seja impossível 
chupar cana e assobiar, 
não conhece os amantes…
Amantes são capazes de caminhar 
sobre o chão em brasa 
com o sorriso despercebido 
de quem esconde um grande segredo…
Desencarnam os pés,
porém disso não se apercebem,
pois confundem a dor com prazer…

Amantes dão nó em pingo d’água.
Trocam o certo pelo duvidoso.
Não creem nas certezas perenes 
e apostam quase tudo no imediato.
Amantes só tem como certo
o aqui e o agora…
E juram que o futuro conjura 
contra as suas paixões…

Amantes
intuem que passarão…
Que passará a sensação de vertigem…
Que cairão… em si…
Vazios…
alheios…
desamados…
E como se sentem morrer de sede,
bebem do veneno
até a última dose, 
a sonhar morrerem
apaixonados…

Foto por Anthony ud83dude42 em Pexels.com

28 / 01 / 2025 / A Farsa E Os Farsantes

Moro no Brasil. Aqui nasci e nunca pensei em daqui sair. Aliás, regionalizando um pouco mais, minha nação é a cidade de São Paulo, onde todas as etnias, crenças, imigrantes, saberes e ausências se juntam para criar essa amalgama de referências que são os paulistanos. Não é estranho que muitos “oriundi” — termo italiano para aqueles que saem da Itália para algum lugar, que aqui generalizo para todos os forasteiros — se tornem mais paulistanos que os aqui nasceram. A minha editora e mentora, Lunna Guedes, é um excelente exemplo. Em nossos encontros, ela me mostra uma São Paulo a qual não teria acesso se não fosse por ela. Incluindo as pessoas, as de “dentro” e as de fora da Scenarium. Quem pertence a esse grupo veio a se tornar a minha tribo.

Como num jogo em que as regras são falseadas, o “grande irmão” do Norte — no poderio de influenciar, criar e destruir — veio a colocar no comando um sujeito desqualificado (se formos utilizar as regras básicas de avaliação), mas que se sente como porco na lama a determinar destinos de multidões. Na terra que um dia foi pulsante pela chegada de estrangeiros em busca de oportunidades e gerou tamanho poder de renovação que durante os últimos 200 anos foi qualificado de maior nação da Terra está, como numa doença autoimune, a rejeitar a sua gênese de existir.

Tirante o fato de ter sido, desde a sua ascensão, um país que se destacasse pela violência e tendência à expansão após se unirem com o fim a Guerra de Secessão — os Estados Unidos da América do Norte — desenvolveram uma “personalidade” impositiva e se arvoraram em defensores da Liberdade, ainda que tivessem que suprimi-la nos lugares que invadissem. O novo Império Romano do Futuro, no entanto se dará conta de que perderam a oportunidade de continuarem a ser “o Farol do Mundo” ao reproduzirem as mesmas linguagens geradoras de revoltas e mazelas.

Amado pelo antigo governante deste País como referência de comportamento, o vemos como a que reproduzir a mesma linguagem, comportamento e fixações tão freudianas que o próprio Freud se surpreenderia por serem tão explicitamente reveladores de casos de neuroses propostos pelo inaugurador da Psicanálise. A conexão básica é a sexual. Principalmente a fixação anal. São fascinados com o controle das identidades de gênero, com o comportamento íntimo do povo, como se não fossem a nação que mais promove a indústria pornográfica como produto. Porque lá tudo é passível de ser comercializado.

O produto da atualidade é o Ódio. Talvez nunca tenha deixado de ser. O Ódio os movem e os comovem, os mobilizam acima de qualquer outra expressão humana. Com requintes de crueldade, exercem o “direito” delegado por “Deus” em determinarem o destino de milhões. Sem a alegada “invasão” que dizem sofrer, talvez não tivessem agenda. A própria mãe do homem-cenoura era alemã e só regularizou a sua situação no EUA após doze anos de estadia. O seu pai tem origem escocesa e a esposa é eslovena. A mulher-troféu creio ser a mulher mais triste nessa história toda. Vivendo em uma gaiola dourada, a sua linguagem corporal não deixa transparecer a antiga exuberância de ex-modelo.

O mesmo aconteceu por aqui. São tão típicos que não deixa espaço para a imaginação, a não ser pelas demandas assustadoras de se assemelharem a movimentos que já aconteceram 100 anos antes, com dramáticos resultados para o mundo. Ao acompanhar o Golpe de Estado que levou Napoleão III ao poder, na França do Século XIX, Karl Marx chegou a perturbadora conclusão de que a História acontece primeiro como tragédia e se repete como farsa. Afinal, numa crise de pouca autoestima e consequente ego inflado, a farsa vitaminada pelo poder atômico, pode determinar o início de uma terceira e fatídica tragédia humana — guerra generalizada no planeta. Nos encontraremos num novo Holocausto

27 / 01 / 2025 / Faz 80 Anos…

O dia 27 de janeiro foi declarado Dia da Memória do Holocausto por uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2005. Nesse dia, em 1945, soldados da União Soviética chegaram ao campo de concentração e trabalhos forçados que acabou por se tornar um símbolo do que um ser humano pode fazer com outro em termos de crueldade e frieza industrial. Sim, porque naquele local foi montada uma indústria de torturas, experiências “científicas” e finalmente, extermínio.

Ao ver os sobreviventes se lembrarem do episódio, não pude conter a emoção e comecei a chorar. Imagens cortadas mostravam as péssimas condições dos cerca de sete mil prisioneiros encontrados ainda “vivos”. Eu me lembro de uma situação relatada por um soldado que disse que ao alimentar as pessoas, muitas passaram mal e morreram. Famélicas que estavam, os seus organismos simplesmente não conseguiam processar os alimentos. Como se estivessem habituadas ao limbo, ao serem trazidas para a vida, morriam.

Os poucos sobreviventes entre os sobreviventes de oitenta anos antes já não são tantos. Fracos, parece que as suas vozes não são mais ouvidas. Há os que dizem não acreditar no Holocausto pelo tamanho do horror que foi a criação e o desenvolvimento de maneiras de aniquilar pessoas. Bastaria ver o que acontece todos os dias em guerras sequenciais e espalhadas pelo planeta para saber do que o ódio é capaz de conseguir contra quem se tornam seus alvos. Eu estou ficando desesperançado de um futuro em que a Paz impere. Mesmo porque a guerra é um negócio e tanto em todas as latitudes. E o mercado do ódio é promissor.