A complexidade de sermos tantos em um só!
A força de nos multiplicarmos em muitos
para tentar alcançar os nossos objetivos
ou a fraqueza de nos partimos em tantos
com os quais não conseguimos nos identificar…
*Imagem de 2012
Em 2017* publiquei: “Há cem anos, Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, escreveu e Maria Bethânia lindamente declamou… Fiquei emocionado, pois estou a ficar sem anos para contar até que chegue o fim dos meus tempos sem tempo. Os tempos se renovam em podridão de eternas e humanas doenças do espírito e sei que morrerei sem ver este País grande e justo, como um dia sonhou o menino que um dia eu fui…”.
O interessante é que por pior que estivesse a nossa situação social e econômica, tudo pioraria nos anos seguintes. Estávamos há um ano da eclosão dos seres nefastos que saíram do esgoto da História para não terem mais vergonha de assumirem as suas posturas ignominiosas, como se fossem perfeitamente normais. Não eram, mas se tornaram quase naturais. Como Álvaro de Campos proclamou em seu Ultimatum, que sejam despejados os “Charlatães da Sinceridade”.
participamos todos
de uma grande comédia:
eu, você e o maior de todos —
Charles Chaplin —
aquele que ousou ser senhor
do tempo e da palavra não dita
e de quando a usou
foi para denunciar a sanha maldita
do Nazismo
quando nestes tempos de dramas
redivivos vemos que os donos do mundo
encenam a comédia mórbida da morte
e do desterro da boca que cala
agindo no sentido de reproduzi-lo
em larga escala
em multiplicação de corpos destroçados
e enterros de ossos em barrancos
ainda que o mendigo saltimbanco
traga a esperança do riso solto
para o simples e para o douto
nos sentimos presos a liames invisíveis
poderosos apocalíticos
de terras arrasadas —
teatro sem aplauso mas urros de fome e dor —
público de mãos atadas…
Foto: arquivo pessoal (2015)

Zezé nasceu e cresceu na rua. O único sobrevivente de seis irmãos. Se alimentava de restos e do que lhe ofereciam os moradores do bairro. Sua mãe, moradora de rua, igualmente abandonada, viveu tempo suficiente para amamentá-lo. Não teve agilidade bastante para desviar de um carro que acelerava ligeiro pela rua, que agora tem uma lombada para tentar impedir acidentes.
Zezé começou a circular pelas ruas em busca de cantos. Seu jeito de criança sapeca angariava simpatia por onde passava. Foi adotado várias vezes. Seu desejo por liberdade, no entanto, fez dele um exímio escalador de muros. Ele queria circular ruas, dobrar esquinas, não ter horários-regras. Uma alma livre a vagar calçadas, dormir em praças e a correr de vassouradas e pedras que atravessavam seu caminho.
Sua movimentação era noturna. Pela manhã queria dormir e, para isso, se apropriava de algum quintal para descansar. Sombra, comida e água fresca, sempre sabia onde encontrar.
O rapaz tornou-se conhecido ao salvar um bebê do fogo que consumia um barraco na favela do bairro. Ao espiar a fumaça e as chamas saindo pelas frestas da construção, feita de madeira seca, ouviu o que ninguém mais ouviu: um choro vindo de dentro.
Com toda a agilidade que faltou à sua mãe, adentrou pela porta fechada e abocanhou a roupa da criança, arrastando-a para fora. Coisa de herói. Foi exaltado. Recebeu banho, uma boa refeição e um nome.
De vira-latas a Anjo… o melhor amigo de todos na vizinhança. Era ele quem acompanhava — faceiro — as moças na volta da faculdade. Sabia rosnar alto-forte. Ninguém se atrevia em seu caminho. Todos sabiam de sua força. Muitos o tinham como confidente. Enquanto dividiam com ele um pedaço de pão, conversavam com seu olhar de compreensão… o melhor dos ouvintes.
Zezé foi encontrado morto na mesma praça em que brincava com as crianças da vizinhança. Foi envenenado.
A notícia surpreendeu todos os moradores da rua dois, que acabaram por promover um velório ali mesmo. Uma cova bem rasa e uma pequena lápide de madeira onde se lê: “Tão livre que foi invejado pelos encarcerados em si. Anjo de quatro patas, amoroso demais para viver entre seres inferiores”.
*Conto constante de RUA 2, livro de contos curtos lançado pela Scenarium Livros Artesanais, como Morador Da Rua 2.
Foto por Fatih Gu00fcney em Pexels.com
Presente da amiga e companheira de Nave-Mãe, Marineide. Pode parecer uma simples base térmica para colocar panelas ou formas quentes, mas para mim, representa o Círculo da Vida — em que o fim se confunde com o começo, mesmo porque, não há confusão, há fluição — nem início, nem final, apenas fruição…
*Postagem de 2016