05 / 12 / 2025 / Conversa Entre Nós (O Eu Atual E Do Futuro) Sobre O Passado

” — Obdulio, eu, aqui do Presente pergunto a você, no Futuro: se lembra de como conhecemos a Tânia?

Dois ou três anos antes de nos casarmos, sequer sabíamos de sua existência. Fico imaginando se, depois de tanto tempo, ainda estejamos juntos. 

Ela veio com a nossa prima Vanir e outra amiga de Volta Redonda, onde vivia, para fazerem testes de admissão em hospitais de São Paulo. A querida Vanir era filha da branca Tia Ermelinda, com o nosso tio Manoel, preto. Eu sempre achei a história dos dois, incrível — aos 12 anos de idade, ao chegar ao Porto de Santos, vinda da Espanha com a Vó Manuela e nossos outros tios, ela se assustou ao ver o primeiro homem preto de toda a sua vida. Talvez, um estivador. Quando viva, a tia me disse que aquele ser lhe pareceu impressionante.

E como era impressionante o grande Tio Manoel. Não sei se ainda se lembra, mas ele trabalhava na Siderúrgica Nacional e se distinguia pela inteligência, apesar da formação educacional precária. Eu gostava de ficar ao seu lado a ouvir histórias quando visitava aos tios e os primos, todos muitos bonitos e enormes. A prima Vanir me adorava e quando me apresentou à Tânia, se referindo à minha eventual beleza e personalidade, esta revelou mais tarde que chegou a rir por dentro. Aquele sujeito que nós éramos, de cabelos desgrenhados, a usar camisas postas ao contrário e de atitudes um tanto ríspidas… não era bonito e muito menos interessante. Ao vê-la, não me lembro e não sei se você se lembrará — já que a nossa memória é um tanto randômica — de emitir alguma palavra. Talvez tenhamos grunhido algo. Com certeza, aquela magrela com voz de taquara rachada não chamou a nossa atenção. Em maio deste ano, completamos 36 anos de união familiar oficial.”

Foto: arquivo pessoal (2012).

04 / 12 / 2025 / Meu Monstro De Estimação

Quando acordo, ele se olha no espelho.
Por alguns segundos fica a especular se fará ou não a barba.
Como não quer parecer um ser mais monstruosamente feio do que é, raspa os pelos hirsutos e branqueados que lhe daria uma aparência de velho monstruoso.
Não bastasse ser envilecido.
São tantos os defeitos que enumero mentalmente que me torna ridículo e maledicente,
que desisto de contá-los. Se o fizesse, seria por pura vaidade:
a especular se há alguém pior pessoa do que eu?
Sou meu monstro favorito.
Desvendado o segredo da vida, insisto em me afastar do meu bem-estar.
É como se eu sentisse que não merecesse ser melhor e feliz.
E, por isso, vou morrendo por dentro, tornando tudo um deserto inóspito.
Só pedras e areia fina, quase componentes do ar.
E são lindas as pedras — pontiagudas, afiadas e duras feito diamantes —  minha verdadeira fortuna.
Quem por esse terreno vier a andar — meu peito atravessado de mágoas — certamente ficará ferido, com as artérias carregadas de pó, respiração ofegante e degenerada, quase uma tuberculose, com catarros espessos e corrosivos.
Ponho a roupa mais leve possível, pois o deserto que eu sou me faz suar e me reduzo a um ponto seco no canto obscuro no assento da cozinha, onde tomo café e alimento uma pessoa comum…e má…

Foto: arquivo pessoal.

03 / 12 / 2025 / Carta Ao Velho Que Sempre Fui

Eu nasci velho. Banguela, meu sorriso de menino era de quem suspeitava que as coisas aconteceriam como se fosse uma reprise. Eu, quando comecei a crescer, encarava como se vivesse um dèjá-vu diário. Não era incomum que me imaginasse revisitando situações já vividas. Quando novo, já havia decidido não me casar. Não queria participar de um jogo de cartas marcadas, mesmo porque nunca fui bom em carteado. Aliás, pouco aprendi a viver e a jogar. Cheguei à vida adulta totalmente despreparado para viver sob as regras de um homem maduro. Aliás, quando me vejo em situações de adulto mais velho, como aquele que estou a me tornar, percebo que sou mais sensato do que os que jogam sob as regras do Sistema. A medida é não passar por cima das pessoas para me sentir melhor, como é comum acontecer frequentemente. Tanto no trânsito, quanto nos espaços que frequento como cidadão. Ser homem deveria ser uma vantagem neste mundo, mas como me envergonho muitas vezes de pertencer a esse gênero, tento passar despercebido como tal. É claro que sendo alguém que não se permite deixar de ver as degradações de nosso País, protesto, escrevo textos, converso a respeito, me coloco como antípoda desse processo degradante sob o qual vivemos. Mesmo que soubesse que dificilmente as circunstâncias mudassem radicalmente — estudante de História desde sempre — já tive esperança de que mudássemos de rumo, mas o animal humano não consegue deixar de ser autodestrutivo. É bem possível que essa capacidade nos leve à extinção. O pior é carregar conosco todos os outros seres que compartilham o planeta como residência. Eu sei que podemos desejar nos matar. Já passeei por essa trilha. Sei o quanto podemos visitar a escuridão e o desejo (mas já não mais) de cessar tanta dor.

Registro de 2019, com a presença de Cheetara.

02 / 12 / 2025 / A Nômade Da Mente

com quem eu converso sobre mim viaja dobrando as minhas esquinas
invadindo becos sem saída percorrendo estradas tortuosas percursos
falsos não porque eu minta mas porque sou tantos que a cada discurso destoo
ao mesmo tempo que ela adentra por espaços em várias partes do mundo físico
é como se ela me visse por ângulos ao sabor de ventos diversos alma vestida
de nenhum lugar noites de diferente luar outras constelações
como mapas do caminho de leite
essas estrelas respondem à suas indagações?
é moça de ouvir estrelas perder o senso duvidar da ciência pessoal de si
estando sob estados e pressões mudadas?
ou permanece não transformada ao mudar de lugar de estar estando distinta
acolhendo em visão paredes de novas tintas
outras cidadelas
será que ela se sente pertencida?
ou basta se possuir?
o que lhe dá o poder de ir e vir sendo outras em cada viagem para dentro
de outros seres humanos pela condução da palavra?
ela duvida é descrente?
ou as certezas são impróprias para quem perscruta mentes?
se pudesse tocaria fogo nas habitações falseadas de quem ouve memórias
sem nexo com a realidade
se a mentira também tem valor de verdade
qual é a segurança sob a qual se planta a moça-rocha?

Foto por Frank Cone em Pexels.com

1º / 12 / 2025 / MULHERES – CAUSA MORTIS – HOMENS

Eu nunca desejei matar ninguém. Mas sou culpado por pertencer ao gênero que tem matado mulheres por serem mulheres, principalmente àquelas que ousam serem emancipadas do comando do homem. Eu sempre achei estranho o uso de expressões como sexo oposto ou frágil, acostumado que fui ao ver mulheres serem fortes o suficiente para criarem filhos sozinhas, muitas vezes longe do auxílio masculino.

Não deixou de acontecer que muitas comunidades tivessem a mulher erigindo o Matriarcado em oposição ao Patriarcado. Mas o fato de o homem normalmente possuir maior força física o colocou como protetor das primeiras comunidades humanas, lhe dando o “direito” de ser o “chefe” do núcleo familiar na maioria das sociedades humanas.

Essa proeminência ao longo dos séculos gerou um sistema baseado mais na força motriz do que na inteligência. Mas também essa “reserva de mercado” precisava ser protegida da participação feminina. Dessa maneira foi interditado que mulheres aprendessem as letras, que estudassem ou que tivessem ideias originais. E quando as tinham, muitas delas foram surrupiadas pelos machos da espécie.

Quando algumas começaram a renunciar participar como reprodutoras numa sociedade que as viam apenas como tal, o sistema apregoou leis religiosas que preconizavam a condenação a alienação, ao ostracismo ou degredo social. E é claro que era “ele”, o “deus” que assim designava através de seus seguidores masculinos.

Como já explanou Contardo Calligaris, as sociedades humanas foram fundadas no ódio à mulher, muitas vezes associadas ao mal. Como está registrado nas escrituras enviadas diretamente aos homens. Se conscientemente se isolassem, vivessem distantes ou fossem autônomas, eram tachadas como bruxas, seres degenerados.

O que vivemos atualmente — uma espécie de pandemia de tentativas ou consumação de feminicídios — é quase como um retorno ao obscurantismo da Idade Média. Tenho por mim que a trajetória política de um certo personagem que veio a se tornar governante no Brasil deu ensejo a que muitos homens assumissem suas tortuosas posturas retrógradas, já que havia chegado ao poder um representante de suas ideias e preconceitos.

Nos últimos anos, houve um crescimento exponencial de crimes contra mais da metade da população humana, representada pelas fêmeas da espécie. A outra metade que a assassina não deixa de criar formas diferentes de torturá-las, humilhá-las e executá-las à luz do dia. Não tem como apagar da página da História que descemos ao mais baixo nível civilizatório neste quadrante. Um quarto deste novo século está se encerrando demonstrando que é sempre possível retrocedermos à barbárie humana mais primitiva desta era sombria.

Foto por Maisa Borges em Pexels.com