Verões

Meu pai, Sr. Ortega, meus irmãos Marisol e Humberto, além de mim, chupando picolé… por volta de 1973.

Na imagem acima, retirada de um registro que estava em um pequeno binóculo desses que não existem mais, estou com cerca de 12 anos. Portanto, há 50 anos antes. Estava na mesma localização que estou agora, junto ao mar que tanto amo. Naquela época, a Praia Grande era a praia dos farofeiros, com as ruas tomadas por ônibus de excursão. Hoje, é uma cidade pujante, cheia de novos empreendimentos imobiliários. A rua da casa onde estou desemboca de frente para o mar. Fica entre a estátua de Yemanjá e Netuno (ou Poseidon), na Cidade Ocian. A depender do gosto pessoal, agradando de romanos a gregos e baianos, as entidades estão bem representadas. Mais novo, era fascinado pelos dois totens, mas enquanto Netuno me atraía, Yemanjá me causava certo receio de me aproximar. Talvez porque não conhecesse profundamente a sua história, talvez porque a fascinação pelas mulheres estivesse associada ao temor em mergulhar no meu amor por elas.

Passado meio século, em meio às águas marinhas, repito os gestos do garoto da mesma forma, mais pesado, mas nem tanto que as ondas não consigam relativizar através de seu poder em igualar a todos. Como não estou usando lentes de contato (já perdi uma no embate com as vagas), míope, em determinado momento comecei a me aprofundar na sensação de voltar às águas passadas, fazendo mover o moinho dos pensamentos que começaram a atravessar a minha mente sem que conseguisse apreender quase nenhum por muito tempo.

Relaxei e consegui vivenciar um sentido de permanência calma em meio ao mar revolto, mas quente. Eram as mesmas ondas da mocidade, como se experimentasse a eternidade. Não foi nova essa experiência de viagem pelos tempos. Cheguei a criar um conto numa dessas oportunidades — Curumim. O importante para é conseguir ter essa integração-acolhimento com o meio aquoso. Em outra ocasião, mais recentemente, escrevi um livro inteiro de crônicas — Curso de Rio, Caminho do Mar — pela Scenarium, em que a interação com o mar me salvou de uma séria crise de ansiedade.

Enfim, ainda sou o garoto que ao caminhar para a praia, ouvia os sapos a coaxarem no mangue hoje ocupado por uma fieira de edifícios. As calçadas em que piso são marcadas com os meus pés descalços com o desenho dos dedos. O Sol é o personagem constante e a sua luz explosiva me alimenta de radiação. Eu preciso disso para continuar a viver os dias asfaltados em São Paulo, com as minhas atribuições profissionais. Voltarei todas as semanas do Verão de 2023. É um compromisso que estabeleci comigo e que espero cumprir. Estou em falta e preciso reparar isso com o garoto e o velho vestidos de calção e maiô vermelhos.

O velho, em janeiro de 2023…

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Resquícios

O que restou? De tudo o que passamos há algo que poderia ser mencionado como importante a ponto de ainda repercutir em nossas vidas? Há situações elegíveis aqui e acolá que possam ser chamadas de bons resquícios, talvez indicadores de que o quadro irá melhorar.

Do ano que passou, no dia 30 de outubro, encontrei o Alexandre. O antes mudo velhinho meio-cego de quatro patas, passa as manhãs latindo para quem caminha em frente ao portão vermelho. Ocupa um cantinho especial do sofá novo, o mesmo que a Tânia disse que nenhum dos peludos subiria.

Voltei a fazer exercícios programados. Percorria os um pouco mais de 2,5 Km até a academia, observando o percurso e suas paisagens – casas, praças, ruas, seres humanos e outros. Sempre poderia encontrar uma história à minha espera. Nesta imagem, uma casa de porto fechado – carro antigo na garagem, entulhos e lixo pela passagem – a demonstrar o abandono das pessoas que aí residiam. Talvez seja mais um caso de batalha judicial familiar, demonstração óbvia que não apenas de amor se preenche os alicerces de uma casa.

Em uma época que não estava muito bem, deu de eu encontrar monumentos à vida em meu caminho. Sobre a outra vida, homenageando de modo indireto a esta. Precisava dessas duas horas de relaxamento e visão de FuturoPresente do Passado.

A primeira manhã de 2023 surgiu limpa, lavada da chuva noturna – águas de 2022 que se intrometeram no ano novo adentro. E assim é, sempre. A separação rigorosa que nós, seres humanos fazemos, não significa nada para as estações sobrepostas umas sobre as outras como o que ocorre neste Dia de Reis, por exemplo. Tanto naquela manhã, que encerrava o final do evento de Réveillon, estou trabalhando. Apesar do peso que a palavra trabalho carrega, eu encaro essa circunstância como a oportunidade de vivenciar experiências simples e satisfatórias para mim, como olhar as cores das nuvens pintadas de Sol.

Hoje, 6 de janeiro de 2023, não deixei de cumprir um ritual pessoal – o de buscar estar presente – principalmente num local como este, junto à Via Anchieta, ao lado da Mata Atlântica. Chovia, como chove neste exato momento. Mas mais parecia um carinho úmido, feito a mão macia de uma mulher. O frio deste Verão atípico, como eventualmente virão a ser embaralhadas todas as estações, apenas é mais um detalhe de deslocamento ao qual gosto tanto de vivenciar.

* “Neste dia Dia de Reis, recebi de presente, em papel de transparente visão, uma ‘sensação de estranhamento feliz’. À primeira vista, esta fruta que encontrei no jardim parecia ser um pequeno abacate. O abacateiro que tínhamos se foi há algum tempo. Após lavá-la, ao posicioná-la para a foto, quase a confundi com uma pera. Ao toque, dada a lisura de sua casca, ficou evidente tratar-se de um maracujá mesmo, já que além das mangas (no final da safra), jabuticabas e goiabas, só temos mesmo um maracujazeiro em plena produção. A sua forma inusitada, causou aquela sensação nomeada acima. Um pequeno bálsamo em relação à antípoda ‘sensação de infelicidade entranhada’, tão em voga em 2020. Ainda assim, feliz Dia de Reis!”.

*Este texto incidental, de dois anos antes, trazia um certo otimismo, mas que agora posso entender como uma desesperada tentativa de enganar a mim mesmo que, paulatinamente, via crescer o meu amargor diante da crescente “sensação de infelicidade entranhada”, como se fosse um câncer. Ao final do desse mesmo mês cheguei ao limite, com o prenúncio de uma crise de ansiedade que me fez buscar a ajuda das águas litorâneas. Um mês depois, nascia o projeto do livro lançado pela Scenarium, ainda em 2021: Curso de Rio, Caminho do Mar.

Participam: Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins