Ofereço o veículo de Luz acima do muro. Para além dos fios. Na linha do horizonte, o óvulo solar gesta o seu ocaso. Como se estivesse Yemanjá presente no mar celeste, boia a oferenda da tarde que viajará até o outro lado do planeta. Tantas vezes brigamos, outras tantas, voltamos… A cada despedida, aprofundamos a voragem, a cada volta, aumentamos a voltagem… Somos, todos nós, amantes – eu, de você, você, de mim, nós – em que somos outros – de nós mesmos… Apesar de viajarmos para fora dele, amamos o mundo, amamos no mundo… Amor fecundo, amor imundo, amor sofrido amor redivivo… A minha mãe me pariu, você, mulher, me recriou… Sou pedaços dela, sou inteiramente seu…
Eu estava limpando a casa e organizando o lugar para que não parecesse tão bagunçado, deslocando objetos daqui para ali. Não sei se pelo meu trabalho profissional, sinto que o meu senso espacial é bem apurado. Consigo colocar sem muito pensar as coisas nos seus devidos lugares. Se houvesse um nome que poderia escolher para o que eu faço é o de aprovisionador efêmero — soluções precárias para momentos oportunos ou que costumo chamar de provisórias permanentes. É bem verdade que quase tudo é passageiro. Algumas coisas além de passageiras, são lindas. Como os lírios que floresceram aqui em casa. Não fosse esta imagem roubada, ficaria apenas o registro da minha memória — talvez a coisa mais fugaz que eu tenho.
Bom dia para você, rolinha, que decidiu fazer seu ninho no cacho de bananas quase no ponto de ser colhido! Escolheu bem o lugar – terá o que comer ao alcance do bico — para você e para seus filhotes. E por ter escolhido uma casa onde as pessoas respeitam a vida — perderemos às doces bananas, mas ganharemos lindas companhias…
Voltava, madrugada alta, e ao olhar para a direita, uma porção de água refletia luzes de barcos estacionados ao longo do horizonte sem fundo da noite. Achei por bem registrar o que queria o que fosse a cena do confronto do branco com o preto, oscilantes. Quando fui buscar as imagens, vi fogo sobre a água e um bastão luminoso como se fosse o cetro da Rainha D’Água emergindo contra a negritude. Mais um devaneio entre tantos…
A insônia não me impede de sonhar. As últimas luzes de ontem, então, brotam em plena madrugada, como planta irrigada por devaneios aquosos. A tarde se faz, tarde da noite quente, seca e escura. Assim, amanheço…
Por onde eu estava, passou uma noiva com o noivo, acompanhados por damas de honra, todos devidamente paramentados. Enquanto uma senhora sorriu e expressou que amava ver noivas, outra falou baixinho: “Que ridículo!”… Eu, que só achei a cena bonita, senti que qualquer coisa pode ofender a alguém quando a pessoa está de mal com a vida.
Tempo seco. Vida umedecida. Horizonte dividido em céus. Todos meus. Cores sedentas. Tarde emudecida. Coração agradecido…
A nossa boa e saudosa Penélope tinha o mesmo hábito — onde quer que estivéssemos, se postava estrategicamente no meio do caminho. Atualmente, é a Dominic que se põe na passagem. E o que muitos de nós, seus cuidadores, fazemos? Nada. Passamos meio de lado ou por cima, com todo o cuidado para não atrapalharmos o descanso da inconveniente presença. Certo ou errado, é o meu comportamento.
Na mesma época, há dez anos, fui à cidade da Tânia. Como então, a família pôde passar a semana no interior do Rio de Janeiro, no distrito de Arrozal, Piraí, junto à Dona Floripes. Ela está com a saúde claudicante e quisemos ficar perto dela por alguns dias. Lembro-me da primeira vez que fui à cidade, acho que em 1988 ou 1989, antes de casarmos. Cheguei de ônibus na Praça São João Baptista e caminhei os cerca de 500 metros que me separava da casa da família Oliveira, na expectativa de que me recebessem de forma acolhedora. E foi o que aconteceu. O seu Neneco, o pai e seu Dindinho, o avô, eram vivos. Pude perceber ao longo dos anos que ainda que não estivessem fisicamente mais presentes, é como se nunca tivessem partido. A casa foi construída aos poucos pelos dois, tijolo por tijolo, com improvisações criativas que a precariedade estimula, marcando as suas passagens no Tempo materialmente. Aqui, coloco a reportagem, com imagens, dessa ocasião em que a minha família usufruiu da hospitalidade arrozalense.
“Imagem da família Ortega, junto com a Dona Floripes, mãe da Tânia, e avó das meninas — Romy, Ingrid, e Lívia — no dia 24 de dezembro de 2012“
À época, escrevi: “O ano de 2012 se esvai entre os dedos como a fina areia da ampulheta do Tempo que marca a nossa existência. É muito estranho que muitas ocasiões só consigamos materializar através de referências externas, como fotos, por exemplo. Essas imagens, no entanto, apenas indicam as possibilidades de emoções e sentimentos de quem vivencia a experiência. Estas últimas que estou postando já fazem parte do Passado e o que tento (sempre tentamos) é torná-la eternamente presente. Adeus 2012!”
Estive de volta à cidade há alguns dias, agora, em 2022. Ano após ano, estas portas continuaram fechadas ao meu olhar curioso, enquanto o tempo ia deixando os seus sinais sobrepostos…
“O 27 de dezembro de 2012 foi um dia de calor infernal. Tomamos caminhos estranhos, na busca de um local para refrescar nossos corpos suados”.
“Uma alma piedosa, amiga de juventude da Tânia, permitiu que um grupo de paulistanos pudesse se refrescar em sua piscina. O que salvou a nossa vida…“
“Esse cãozinho, alheio à idade da pedra em que pisa, chamou a minha atenção por sua esperteza. Quando o grupo voltava para a casa, ele tomava o caminho mais reto, enquanto os seus cuidadores ziguezagueavam, assolados por suas decisões inconstantes. Há de se ter muita paciência com esses humanos!”
“Praça São Jão Baptista, onde pássaros e crianças (que jogavam bola do lado da igreja), assumiam a sonoplastia do dia…”
“Voltamos para casa com o Sol sempre no horizonte à oeste. Antes de se deitar completamente, o fotografei na altura de Itaquaquecetuba“.