Caminhando para o lado de dentro de Mariana Gouveia, leio – “Guardo-te na caixa dos segredos como se joia fosse… espio-te com lupas microscópicas”. Percebi o quanto essa frase se adequa ao meu comportamento contigo. Eu te preservei do mundo, como se fosse somente minha. Assim como tu faz parte do grande segredo que preservo do olhar mundano. Fiquei imaginando o quanto, mesmo sem nos conhecer, quem escreve pode nos alcançar em nossa intimidade.
Eu te vi crescer, perscrutei tuas jornadas, amizades, estudos, amores, teu desenvolvimento rumo à identidade livre de preconceitos. Eu te protegi de ações que te impediriam de ser quem quisesse ser caso ficasse sob o jugo da família de teu pai. Quando fugi da casa-prisão na qual queria nos guardar, lutei por teu futuro, por poder caminhar por tuas pernas, seguir tuas prioridades.
Quando neste ano lutamos juntas pelo bem do País, cantando, dançando, chorando para livrá-lo de mais quatro anos de um desgoverno a desviar de rotas sociais que nós ambas nos identificamos, soube que fiz o certo em deixar-te distante daqueles que estão do outro lado do muro do Apartheid que querem nos manter. Entre eles, teu pai. Fugi do Estado, mudei de identidade, trabalhei muito, me mantive discreta, te eduquei para ser livre, independente, franca, sincera, participativa, íntegra, amiga fiel, mas sei que é tua essa preciosa personalidade de grande mulher que acredita na igualdade na diversidade. Como é linda tua natureza pessoal!
Maria, esta pequena carta apenas lerás quando eu me for. Espero que entenda ao conhecer a tua origem e do quanto te amei para te guardar longe de tanto mal, da face horrível do ser humano dessa classe que se acha superior somente por ter mais dinheiro.
é tanta loucura que anda na bohemia da minha imaginação… cantou La Castañeda leio me leio nessa linha me levanto retomo a consciência de viver estar no presente curvo as minhas costas para trás apoiando as minhas mãos após vomitar sobre a tela mais palavras repetidas em locuções conhecidas como se fossem códeas de pão de quem se perdeu pelo caminho após passar noites bebendo indignidades ouço um samba desses passados passadiços rezados em dois por quatro na cadência de meu coração sincopado agradeço às influências d’áfrica enquanto choro a dor do desterro de povos inteiros arrastados em correntes rumo a cais do outro lado do atlântico aldeias árvores rios amigos família pais filhos criações culturas futuros perdidos identidades esfaceladas guerras terras novas gerações replantadas em terreno inóspito fértil regadas à sangue do qual eu bebo com sabor de alegria e dor atravesso a cidadela enquanto desejo voltar a jogar o meu corpo contra a procela navegador que rema rumo ao rir chorar salivar sobre a pele nua dela preso aos seus cabelos cor de noite clara de lua quarto minguante.
Antes de eu a conhecer – a über-poeta americana Emily Dickson – eu falei de minhas mortes em vida e dos consecutivos renascimentos. Creio que seja um processo comum a muita gente, tantas vezes não percebido, nem mencionado com tanto alarde. Eu mesmo só me dei conta dessas situações extremas como passagens bem delimitadas ao ser convocado a escrever uma minibiografia para a Scenarium por ocasião do lançamento de meu primeiro livro.
Porém, há muitas pequenas mortes no decorrer de nossa história – a de pessoas próximas, de outras – emblemáticas por seu simbolismo, e as íntimas, mais parecidas com cristais que se estilhassem ou a corações partidos. Uma das lições que tomei como parâmetro no curso de Educação Física (que decidi fazer depois de uma das minhas “mortes”) relatam os estágios do desenvolvimento físico em que as células se regeneram continuamente, cada vez mais adaptadas e aptas a suportarem maiores cargas. Feitos Fênix – imagem comum a diversas culturas – renascemos das cinzas e tornamos essas pequenas mortes anteparos para aprendizados pessoais. Ou, a depender das características das circunstâncias e condição mental, obstáculos para vivermos plenamente as próximas etapas da vida, com o surgimento de consequências difíceis de serem superadas.
Recentemente, em termos, descobri que sempre fui um menino ansioso. Um dos fatos que me fez perceber essa condição foi saber que a ansiedade pode levar uma pessoa a ter descontrole em seu desenvolvimento fisiológico. Fiz xixi na cama até aos sete ou oito anos de idade, o que muito me envergonhava. Mas era inevitável, até conseguir me esforçar para acordar antes de acontecer. Há situações mais graves que são quase definitivos, causando resultados permanentes, só tratáveis com medicação e tratamento psicológico constante. Como o transtorno do estresse pós-traumático. Um distúrbio de ansiedade exacerbada que é manifestada em decorrência do portador ter sofrido experiências de atos violentos ou de situações traumáticas. Seria como viver no limite entre a existência e a iminência de deixar de existir.
Quando Emily Dickson coloca em palavras temas que em sua época sequer eram especulados de forma tão eloquente em beleza e significados, percebe-se que podemos sublimar esses momentos e superá-los com arte e profundidade – Poesia, enfim. Tenho conseguido lhe dar com minhas perdas tentando transcender em vida, como se fosse alguém que sonha a vida que vive. Ou por perceber conscientemente que a sonha mesmo. Um sonho delirante, mas controlável… até irromper na triste realidade de existir.
Lunna Guedes propôs e um grupo de pessoas decidiu participar de uma maratona em publicaríamos textos todos os dias de Novembro – o #Blogvember – nos moldes de um BEDA fora de Abril e Agosto. A diferença consiste em que ela indica os temas sobre os quais versaremos a cada um dos trinta e um dias. O que promete facilitar a tarefa ou, a depender das circunstâncias, não. Depois da saudação ao mês corrente, no primeiro dia, La Lunna indicou linhas de Emily Dickson – uma poeta fora do tempo – para os três seguintes para compormos as nossas. O interessante que em sendo uma escritora atemporal, ela trabalha com a relação com às quais os seres humanos lidam – o estar, em sendo ou o ser, ao estar. O Tempo e o Silêncio são questões recorrentes na poética de Emily Dickson.
Ao comentar os textos de participantes do #Blogvember, recolhi as minhas respostas para pontuar o que entendo sobre o Tempo, quando a poeta cita, por exemplo: “Aqui não tem base as Épocas para o Tempo ser passado”. No da La Lunna – Catarina Voltou A Escrever –, coloquei: “Essa relação com o Tempo em que se acumulam fatos, acontecimentos é estranho para mim, assim como também a permanente sensação de estar sonhando a vida que vivo… ou que vivo a sonhar”.
Em resposta a La Lunna ao comentar aos meus versos, sobre o mesmo tema, respondi: “Essa confusão a qual aludiu é como me sinto muitas vezes quando percebo esse ‘buraco negro’ no Tempo: uma anomalia. No mesmo passo, não sinto passar o instante ao compasso dotic-tac do relógio. Ao qual nem uso”.
Sobre a entrada do novo mês, em “Aos Cuidados De Novembro”, respondi à Roseli Pedroso e seu texto – em Sacundindo as ideias – “Depois de anos de atitudes e posturas desconexas com a realidade ou, no mínimo, do bom senso, ainda haverá situações complicadas. É tudo tão sem sentido, que não há como entender o que passa pela cabeça dessa gente. O que deixa mais perplexo é que consigam criar enredos imaginativos de tal maneira, que deixam os meus temas no chinelo. Stephen King se sentiria homenageado! (Riso nervoso…)”. Ontem, foram registradas cenas em que crianças foram colocadas como escudo humano para as ações de retirada de bloqueios ilegais nas rodovias em protesto ao resultado das eleições. Em outro registro, um grupo grande canta o Hino Nacional, enquanto fazem a saudação nazista – claro sinal da interdependência entre a quem defendem às ideias fascistas que sempre promoveu. Realidade paralela que bem poderia fazer parte de um pesadelo distópico recheando a programação de canais de comunicação.
E é exatamente sobre isso que quero tratar – o diálogo entre as palavras (ideias) e as ações dos indivíduos. Ou o Silêncio, muitas vezes mais eloquente do que a declinação de verbos, locuções, exclamações, conjunções e orações assindéticas ou sindéticas. Acho importante que as ideias conversem entre si, mesmo que cheguem a conclusões diferentes. Se bem que conclusões possam ser mudadas, a depender da “maturação” de quem a profere. Palavras podem, assim como os átomos, colidirem umas com as outras, resultando em explosões criativas… ou destrutivas.
O Silêncio pode conter dentro de si todas as possibilidades. Pontua a respiração na fala, a Pausa nas orações, a cessação de controvérsias ou sua intensificação. Saber escrever o Silêncio é uma maestria que a poucos é reservada. Assim como na música, a pausa intervala uma bela sequência de notas e faz parte da canção tocada. A poeta Emily Dickson escreveu: “Grandes Ruas de Silêncio levam aos Arrabaldes da Pausa”. Nada mais precisa ser dito e podemos dormir tranquilos-inquietos sobre o colchão de uma frase perfeita. O que alguns poderiam conjecturar que ela fala da morte, para mim consubstancia o resumo de uma vida grandiloquente, apesar de silenciosa. Principalmente quando em outro poema canta que a Eloquência é o Coração ficar sem voz”. Porém, nada é tão belo quando proclama que “o Silêncio é Infinitude”.
Para desespero de quem se utiliza de critérios puramente claros, estudados e racionais para a escolha de leituras, ouso cometer uma falta ao declarar que não sou eu quem escolhe os livros que eu leio, mas são os livros que me escolhem para lê-los. Já tive diversos exemplos desse fenômeno durante toda a minha vida de leitor, mas citarei apenas dois.
O primeiro e mais recente foi o surgimento de Coetzze em minha vida. Não me lembro como Juventude veio a cair em minhas mãos, porém seu impacto foi devastador. Percebi o quanto a minha escrita estava alicerçada em devaneios vãos, agravada por uma interrupção de vinte anos no exercício de passar para o papel o meu mundo particular. Ainda que escrevesse compulsoriamente, como não mostrava a ninguém, não fazia a menor diferença o que produzia.
Juventude, eu não o procurei, não sabia de sua existência, apenas aconteceu. A falta de lembrança ajuda a criar esse clima de encontro à escuras. Logo, quis também encontrar Infância e Verão, a trilogia do autor sul-africano sobre uma personagem, que bem poderia ser ele mesmo, que relata a sua trajetória de maneira a não deixar pedra sobre pedra. A sua influência em minha dinâmica mental foi tanta que pretendo empreender uma jornada similar em um projeto para logo mais, a depender de análise externa.
Contudo, devastação maior foi o encontro com Paramahansa Yogananda e sua Autobiografia De Um Iogue (Contemporâneo). Eu era agnóstico-ateu na época. O livro de capa rota abria com a apresentação de uma amuleto. Estranhamente, acreditei na sua existência assim que terminei o primeiro parágrafo. Li o livro de fiada e o reli. Estava decretada a revolução em minha vida. Tudo começou a fazer sentido.
Fazia sentido me tornar vegetariano (o que fui durante dez anos) e todas as proclamações de fé no Invisível, agora essencial. Os livros de Kardec não tiveram tanto peso quanto a descrição da vida na Índia do jovem aprendiz de Mestre Sri Yukteswar e a busca pela Verdade. Tornou-se meu objetivo visitar a longínqua pátria do Hinduísmo. No Brasil, iniciava-se a aparição de várias instituições ligadas à gurus e seus ashans, mas resistia em mim certa desconfiança em ser manipulado, como já vira acontecer mais de perto, com pessoas do meu meio por pastores mal versados e iracundos das igrejas pentecostais cristãs.
Ao mesmo tempo, fui tomando contato com o Budismo, ao começar a buscar paralelismos em todas as vertentes de fé. Encontrei coincidências e imbricações, incluindo o Cristianismo. Para não tornar a história tão longa, da mesma maneira que mergulhei no Orientalismo, decidi mudar meu rumo ao fazer o contraponto à negação do mundo material. Casei. Constituí família, deixei de escrever. Talvez, não tenha nada a ver uma coisa com a outra. Talvez, sim. De qualquer forma, o fato é que nunca mais deixei de ter como base o Imponderável, por mais que invista na potência do mundo físico. Perdido? Talvez. Estou a espera que outro livro me encontre para, finalmente, poder me reencontrar…