06 / 05 / 2025 / Projeto Fotográfico 6 On 6 / Caminhos Literários

Azul na cabeça, rosa no coração…

O Obdulio nasceu a fórceps no começo de outubro de 1961, no centro de São Paulo. Ainda criança, começou a se mover para a Periferia, primeiro à Leste, depois ao Norte. Desde cedo, quis ser escritor.

Renasceu aos 17 anos, vegetariano e a crer. Aos 27, renasceu casado e pai. Escolheu trabalhar como peão e dono de seu próprio negócio. Budista, demorou a lucrar. Franciscano, aceitou com resignação ganhar o pão com o suor de seu rosto.

O escritor adormeceu e, sem ter como se expressar, aquele Obdulio morreu no final de outubro de 2007, diabético, por excesso de amargor. O atual renasceu a carregar a memória do antigo homem que escrevia, a enxergar o mundo com novos olhos… ainda que a herdar a miopia do outro. E chega até este quadrante a se sentir redivivo… a cometer os erros dos novos, a renovar os seus ímpetos, a amar como um adolescente, a ser escritor, como sempre quis.

Tenho postado aqui, no WordPress, além de inéditos, meus escritos espalhados pelas redes sociais, principalmente pelo Facebook, além de textos – crônicas, contos, poemas – produzidos para a Scenarium Plural –– Livros Artesanais, em livros autorais pessoais, coletivos e para a Revista Plural. Meu objetivo precípuo é o de montar um mosaico que busque definir minha trajetória como escritor. Uma tentativa de encontrar um norte, uma linha mestra que, acima de minhas convicções cambiantes, explique para mim mesmo e, eventualmente para quem me lê, a realidade que nos cerca, pelo olhar de quem fui-sou. Talvez, por fim, identificar os caminhos pelos quais viemos a trilhar na atualidade-passado-futuro.

Este livro de crônicas foi o meu primeiro livro publicado. Nele, reúno textos antigos que já havia sido publicados nas redes sociais, além de outros, inéditos, escritos especialmente para compô-lo. Inicialmente, a minha intenção era chamá-lo de 55 — a idade com a qual o publicaria — em 2017. Mais tarde, adotamos a opção de REALidade. Real diz respeito à concretude da vida. Idade tem a ver com uso de fotogramas ou recortes de situações ocorridas permeadas pelo meu olhar de então. Gosto de muitos deles e ainda me surpreendo com algumas soluções encontradas em algumas ocorrências que explicam a minha visão de mundo.

Rua 2, encomendado há algum tempo, foi parido com dor, ainda que oculta. Apesar da difícil relação que tinha com o meu pai, a sua passagem me deixou assim, vamos dizer, sem palavras. Sequei. Eu, tão acostumado a escrever sobre qualquer coisa ou movimento, não encontrava temas para o projeto de contos curtos prometido meses antes. Em meio ao trabalho com eventos, ao ver um velho homem que passava de um lado ao outro na frente do palco onde a banda que sonorizava atuava, tive a ideia de escrever Baile Eterno. Estranhamente, esse conto não apareceu na coletânea que finalmente foi publicado. Como traço comum, as personagens residentes na Rua 2 da Periferia da Zona Norte de São Paulo passeiam pela dura realidade em que a vida está sempre por um fio.

Neste livro eu confesso dolorosamente o desamor por meu pai. Uma faceta do possível amor que ainda poderei vir a encontrar em algum tempo no futuro, escondido entre vertebras de meu ressentido peito. Mas há espaço para o afeto, as idas e vindas de um sujeito em constante ebulição. Que casou, criou três filhas, voltou a frequentar faculdade tarde na vida, que conseguiu cumprir o destino manifesto quando garoto em se tornar escritor.

Escrito numa fase em que passava por uma forte crise de ansiedade (quando nem admitia que fosse ansioso), foi um livro que me salvou a vida. Pode parecer dramático, mas o meu setor foi o mais afetado pela Pandemia de Covid-19, então grassando com toda a força, ainda mais a égide de uma gestão governamental que relutava em adotar as medidas sanitárias necessárias para debelarmos o mal que grassava então — uma tempestade perfeita! Fui buscar refúgio no Litoral Norte de São Paulo e o mar, o sal e o Sol de Ubatuba me ajudou a superar o estado mental deletério pelo qual passava — estava pronto a primeira etapa, ainda que apareça em como segunda parte no título do livro. Curso de Rio diz respeito aos rios canalizados em Sampa, perfazendo as avenidas de fundo de vale. Realizei uma excursão a pé por minha região como se fosse explorador de uma terra longínqua. Lugares aos quais havia ido apenas bem moço, revisitei e encontrei beleza na feiura, surpresa que tem mais a ver com a capacidade do brasileiro em sobreviver com denodo e espírito de superação.

Esse foi o livro mais polêmico que escrevi. Permeado por cenas de sexo, mostra o comportamento de personagens que compõe uma elite que leva às últimas consequências o desejo de manipular e controlar pessoas baixo o seu poderio econômico. O deleite que buscam não as impedem utilizá-las a seu bel prazer ou de eliminá-las por puro capricho. São pessoas resultantes de uma estrutura perniciosa de quatrocentos anos de tradição baseada na Escravidão como modo de produção. O mais incrível é que a ficção chega a ser corrompida pela realidade todos os dias…

Todos os títulos foram publicados pela Scenarium Livros Artesanais.

Participam: Lunna Guedes / Claudia Leonardi / Mariana Gouveia / Silvana Lopes

23 / 04 / 2025 / BEDA / Dia Do Livro*

Hoje é o Dia Mundial do Livro. Se bem que modernamente possa ser acessado por equipamentos eletrônicos — como computadores, tablets, celulares e, mais especificamente, ebooks — o objeto livro, por si só, é algo simples. Primitivamente, são páginas de papel unidas umas às outras que expressam mensagens imagéticas e ideias por imagens e/ou palavras. A estas últimas as quais me filio como escritor, rendo as minhas homenagens. Principalmente neste momento que há um projeto para taxação de publicações literárias por considerá-las elitistas. E se isso acontece é porque o investimento na Educação tem declinado gradativamente. É como se fosse o paradigma do biscoito ao contrário: como a Educação é elitista, os livros — instrumentos fundamentais do ensino — também devem ser. Considerando que a leitura é um dos eficazes expedientes para o desenvolvimento do aprendizado e do conhecimento, a formulação do projeto deveria ser o oposto.

É o empobrecimento da Educação como projeto de separar os bem-educados dos que irão servi-los. No livro que tenho à mão na foto — a coletânea de setes escritores com sete textos cada, chamada Sete Pecados — há um texto meu chamado Governante Supremo, em que o referido personagem odiava a Literatura. Seu projeto secreto é o de tornar a todos equalizados a um nível menor de inteligência. Em certa passagem, está expresso: “Ao contrário do que se propagava de que uma imagem valesse por mil palavras, intimamente sabia que uma só palavra poderia equivaler a mil interpretações diferentes, se o leitor tiver capacidade de interpretação aprimorada. Como evitar que uma comunicação simples ou ordem direta não fosse corrompida por pensamentos espúrios quando se escrevesse ou lesse a palavra ‘amor’, por exemplo?”

*Texto de 2021, por ocasião do desgoverno do Ignominioso Miliciano.

13 / 04 / 2025 / BEDA / Em Busca Da Fantasia*

CADA UM LUTA PELO QUE LHE FALTA

Desde garoto, fantasiava. Em determinado momento, comecei a colocar esses arroubos excessivos da imaginação em papeis amarrotados com tocos de lápis e canetas usadas. Nas redações escolares, as minhas professoras-leitoras me incentivavam a continuar a escrever. Mas cria que fossem incentivos costumeiros. Fora as tarefas, escrevia por compulsão ou necessidade textos que não mostrava a ninguém. O meu primeiro ouvinte foi o meu irmão, para quem lia histórias aventureiras que abusava de seres excêntricos, recheados de sustos e finais inesperados. Ele adorava. Cem por cento de aprovação.

Aos 14 anos, comecei a ousar mostrar para outras pessoas o que criava e obtinha certa aceitação. No Segundo Grau — o antigo Colegial — em outra realidade de relações, ficava a poetizar a minha vivência, impulsionada pela imersão na religiosidade. Era comum eu versar sobre a luta entre o desejo sexual e a contestação de sua expressão. O casto experimentava fantasiar sobre o sexo, ao mesmo tempo que se sentia um transgressor que desrespeitava regras autoimpostas. O devaneio com requintes de extravagância transformava tudo em ficção, a realidade adivinhada pela imaginação. Conseguia, talvez por isso mesmo, alcançar a verdade circunstancial do momento, em lúcida loucura. O que constatei ao ler alguns desses escritos depois de algum tempo, já experiente. Eu me sentia como que encantado.

Compreendi que o que poderia chamar de instinto estrutural me dava ferramentas para que a fantasia ficasse bem perto da veracidade dos fatos. Os escritos internamente obedeciam a uma lógica de tal maneira que dificilmente deixava pontas soltas. Embriagado de ficção, me descuidei. Professava a empáfia dos autossuficientes e a realidade dos homens aproveitou a minha distração para me socar na boca do estômago. Fui a nocaute. Permaneci na lona, beijando a morte por alguns anos. Quando me levantei, o sonho parecia ter acabado. Ou se apartado de mim e atravessado uma porta que se fechou. Comecei a desejar reencontrar a capacidade de sonhar feito um poeta doido que perdeu seu amor pelo caminho. 

Sinto falta de fantasia. Uma espécie de senso para o fantástico que se diluiu na nebulosidade dos tempos que envelheceu a mão, endureceu as articulações e empoeirou a eloquência da minha fala. Falhei. E falho a todo instante que deixo de crer na ilusão. Grávido da realidade dos homens, sangro a parir nulidades. Luto para reaver o deslumbrante movimento de estar incompleto em saberes e existir pleno de intuições. Quanto mais me abstenho de sonhar, mais eu me sinto longe da verdade pessoal. Cresci inversamente, para baixo, abismado, enquanto caía. Não acredito em esperança e o presente é como se fosse um limbo. Seco. Se antes fosse úmido feito a vulva da Quimera…   

*Texto participante do Coletivo CADA UM LUTA PELO QUE LHE FALTA, pela Scenarium Livros Artesanais

07 / 03 / 2025 / O Astronauta E A Lunar

Neste registro, temos o Astronauta e a Lunar, entre outras duas pessoas que o trabalho conjunto, pela Scenarium propiciou que a arte da escrita fosse impulsionada de forma a constituir uma plataforma da qual sou fã pelo seu caráter artesanal. Nessa ocasião, em 2017, foi lançada REALidade, meu primeiro livro de crônicas, do qual extraí o texto que fala sobre esse encontro que modificou a minha trajetória pessoal, assim como a de outros escritores.

“Cartesiano, o rapaz estava sempre a analisar todos os seus passos… a medir as consequências de seus atos. Chancelar sob a égide dos números os resultados buscados.

Construtor de sua própria vida, a sua base era o chão… a partir do solo, vinha estruturar os seus projetos, fazer as sólidas fundações sobre as quais viria a erguer seus prédios, barragens e vias de trânsito.

Constituiu família, organizou caminhos, fundou relações, espaçou contatos. Gostava de gente — mas, talvez, por serem humanas demais… as considerasse irregulares componentes de seus projetos, aceitando-as por fazerem parte da equação da existência — dados sem os quais os problemas não existiriam, porém, não seriam solucionados. E, como gostava igualmente de desafios…

Positivamente, a moça era nefelibata. Alguns a sabiam lunar ou vinda de alguma outra parte… que não a Terra. E, por isso, vivia em conflito com os habitantes do lugar onde caiu, em uma fatídica noite de chuva de meteoros. Dos seus, foi a única que chegou de seu lar de origem. Poderia jogar tudo para o alto… contudo, buscou entender aquele povo estranho — sendo, para eles, igualmente estranha.

Nada como ouvir suas histórias… o que era perfeito, já que ouviria tudo do ponto de vista de alguém de fora — a forasteira.

Conheceu a generosidade entre os gentios humanos. Propôs-se salvar-se ao salvá-los, principalmente aos que se sentissem, da mesma forma, deslocados em seu próprio planeta. Nada melhor que fosse pela palavra, pelo verbo. Para tornar tudo mais grandemente complicado, se viu jogada em novas paragens, plagas ainda indomadas, quase civilizadas, mas nem tanto… nova língua, novas dores, quase recebidas com alegria.

A estrangeira era excêntrica mesmo — adquiria novas receitas de como sofrer… porque sabia que nada a atingiria como um dia já havia atingido a dor maior.

Ser ‘Sim’ é uma atitude de alma. Há tanta gente ‘Não’, que o mundo não consegue desvendar os seus mistérios sem caminhar por trilhas tortuosas, becos escuros, pisos esburacados, céus velados, visão nebulosa…

Os do ‘Sim’ e os dos ‘Não’ habitam o mesmo ambiente, respiram o mesmo ar, bebem da mesma água, mas não comungam vivências.

Foi pelo ‘Sim’ que Yoko conquistou John, que o homem subiu aos picos do Himalaia, um negro governou um País que o viu nascer segregado, o Astronauta fez o seu Marco na Lua.

Assim, um dia, o Cartesiano encontrou a Nefelibata… a revolução demorou a se dar. Começou com olhares de admiração a se sobreporem aos de estranhamento, porque perceberam que havia terra firme onde podiam pisar os pés, no meio pantanoso da convivência social em que estavam.

Vivências diversas, anacronismo em suas repercussões pessoais… de facto, o fato se estabeleceu — perceberam que gostavam um do outro.

Depois de tantos dissabores, de desencontros em suas histórias, o ‘Sim’ se fez presente. É tão penoso ser o ‘Não’ de alguém que, quando o inverso acontece, devemos festejar o acontecimento… mesmo que isso contrarie aqueles que creem que as regras devam ser cumpridas, ainda que contra a felicidade de quem quer apenas amar.

O rapaz, de tão jovial, até parece um “Bambino”, apesar de o mundo ter dado mais de vinte mil voltas sobre si mesmo, desde que chorou pela primeira vez.

A lunar presença dela parece não querer revelar a sua origem, o seu ser, a sua cronologia…

A depender da luz, o seu olhar é de criança que não cresceu, ou de uma maestrina atemporal. Os dois criaram um projeto de vida, a dar vida ao papel — alquimia moderna — a valorizar a imaginação, a expressão, o ‘Sim’.

Os seus filhos são gestados por aqueles com quem eles aceitaram compartilhar a visão que espelha o poder dos que adotam o ‘Sim’ como profissão de vida e coragem de Ser. E sou um deles.

Esta história é idealizada. Tanto pode ser real quanto fictícia. O mais belo de escrever é que arranhamos a verdade quando mentimos, e revelamos a verdade quando criamos o fictício. Quem quiser que acredite nas mentiras ou negue as verdades, que são feitas da mesma matéria que todos nós”.

Querido Marco , sentiremos saudade…

28 / 02 / 2025 / O Índio*

Os Pataxó são um povo indígena brasileiro de língua da família Maxakali, do tronco Macro-jê. Em sua totalidade, os índios conhecidos sob o etnônimo englobante Pataxó Hãhãhãe abarcam, hoje, as etnias Baenã, Pataxó Hãhãhãe, Kamakã, Tupinambá, Kariri-Sapuyá e Gueren.

Apesar de se expressarem na língua portuguesa, alguns grupos conservam seu idioma original, a língua Patxôhã. Praticam o “Xamanismo” e o Cristianismo. Vivem no sul da Bahia e em 2010, totalizavam 13.588 pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A Ingrid trouxe da região onde os portugueses desembarcaram pela primeira vez em Pindorama, esse colar de contas. A minha ascendência indígena me permite usá-lo para além de objeto decorativo, por carregar vários significados. Para mim, é como voltar para a kijeme.

*A imagem acima data de 2021. Estava refugiado em Ubatuba, tentando sobreviver à grave crise de Ansiedade. Como trabalho com eventos, estava parado e pude ajudar na implantação de um projeto de uma amiga da minha filha mais velha, relativo à entrega de alimentos leves, a qual fazia de bicicleta. Ao mesmo tempo, pude usufruir das lindas praias da região e ao participar de um curso de literatura da Scenarium, escrever um livro que veio a se chamar Curso De Rio, Caminho Do Mar, do qual gosto muito. Foi lançado no mesmo ano pelo selo comandado por Lunna Guedes.