#Blogvember / Projeto Fotográfico 6 On 6 / Meus Rituais

Fiquei, quanto à proposição do tema, tentando encontrar algo que se assemelhasse a uma rotina que pudesse ser chamada de ritual – um cronograma pessoal regular-repetitivo. De fato, há atividades que estabeleço como prioridades, como escrever. Porém, tenho que buscar tempo entre tarefas e atribuições de quem trabalha por conta para me postar de frente para o computador e fazer jorrar minhas ideias transformadas em palavras. Para me sentir estimulado, aceito tarefas sugeridas por Lunna Guedes, editora da Scenarium, como este 6 On 6, inserido na maratona intitulada #Blogvember, que estabelece postagens diárias estimuladas por temas dados.

Ritual de todos os mamíferos, dormir tampouco tem horário e medida. Meu trabalho impõe um cronograma variável, com horários esdrúxulos. Tanto poderei estar acordando ou dormindo às 6h da manhã. Com o avanço da idade, o tempo em que passo dormindo diminuiu. Morfeu tem me abandonado antes do tempo conveniente e cinco ou, no máximo, seis horas tem sido o meu limite de dormida. Após o que continuar na cama fica quase impossível, com o meu corpo se sentindo incomodado na posição horizontal.

Ler é algo que faço ritualisticamente sem regra e sequência. Tanto posso enveredar pela leitura de um livro num fôlego só, como intervalar dias sem conseguir pegar no velho e bom formato das páginas em papel. Não deixo de ler, ainda que o faça pelo celular ou pelo computador, Muitas vezes, nos intervalos de atividades, nos locais de trabalho e em trânsito, na Tigresa – nossa Kombi de carga –, em ônibus ou Metrô.

Outro ritual mambembe que tento manter é o de assistir televisão. Gosto de acompanhar jogos de Futebol (o nosso e o Americano), Basquetebol, Voleibol, entre outros esportes. Busco ver filmes e séries, bem como musicais, mas com a mesma sazonalidade irregular de quem fica pescando momentos livres durante o dia. Contribui para a intermitência o uso de outros sistemas de transmissão da programação, como os aparelhos móveis.

Um ritual do qual sinto falta e que tem a ver com a minha infância é o de tomar um café da manhã em horários razoavelmente fixos. Desde pequenos, Dona Madalena nos acordava com cafés que só ela sabia fazer. Até os meus seis anos, mais ou menos, ela me dava na mamadeira, misturado ao leite. Depois eu soube que esse era um expediente de mamãe para fazer render o pouco leite, um tanto caro para os nossos padrões à época. Resta continuar a tomar café em horas dispersas – um cerimonial à memória e ao vício.

Umagem feita quando desviei pelo Cemitério da Consolação minha descida da Paulista para o Centro.

Um ritual que estabeleci e que cresceu com a chegada da Pandemia de Covid-19, foi o de caminhar percursos de pelo menos de 4 a 5km por dia. Acabou por gerar parte das crônicas de “Curso de Rio, Caminho do Mar”, meu livro mais recente, além de produzir imagens que constantemente publico. Segundo o meu marcador de passos, caminho em média de 8 a 9Km. Há dias que vou a 16Km e, em uma oportunidade, cheguei a 21Km. Todas as tarefas possíveis, como ir até o supermercado, farmácia ou padaria, as faço como pedestre. Não deixo de caminhar longamente principalmente quando vou ao Centro ou à Paulista. Contribui igualmente para as minhas marcas, o deslocamento para a montagem de equipamentos em salões ou buffets. Mas nos dias que não trabalho, mantenho a rotina de caminhadas. A novidade é que, a partir do início da próxima semana, voltarei à academia para completar com exercícios físicos localizados a minha rotina de atividade corporal. É um ritual do qual sinto falta – incluindo as dores musculares – ainda que tentasse compensar com uma rotina precária em casa.

Segunda Foto por Thuanny Gantuss em Pexels.com

Quinta Foto por Jess Bailey Designs em Pexels.com

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Suzana Martins

L, de Livro. L, de Luta.

Quando abrimos um livro, literalmente cometemos um ato revolucionário. A revolução está no simples fato que ler é uma ação libertária. Envolve vários investimentos como tornar acessível a leitura através de produtos mais baratos na ponta final. Mas que se inicia por um investimento precípuo – a Educação. Aprender a ler e a escrever é um direito do cidadão, constante na Constituição Brasileira. E o atual Governo Federal tem agido no sentido contrário.

A política educacional em curso menospreza o ensino universal de qualidade. Quer torná-lo somente um apêndice na produção de servidores aptos o suficiente para trabalhos técnicos ou com capacitação de serviçais mais instruídos, mas até certo grau. Produção de aprendizes e funcionários eficientes, obedientes, que não conteste o Sistema que, afinal, os sustenta no limite do consumo básico. Para que alcancem mais, são consumidos em sua humanidade – sem tempo para si e para a família. O que deveria ser apenas uma etapa para o desenvolvimento profissional do cidadão, se torna permanente. Não é incomum que os patrocinadores desse estilo de vida autofágico reproduzam a máxima: “O trabalho liberta” ou “Arbeit macht frei” – como colocada na entrada dos campos de concentração nazistas.

Sei que o trabalho dignifica. É uma expressão de autonomia e meio de progresso pessoal e econômico. Mas da maneira que está estruturado, aliena e é um meio de exploração dos depauperados pelos mais aquinhoados. Eu não tenho medo de trabalhar. Gosto de ser um prestador de serviço no setor da produção de eventos. Quem vê o sujeito que, apesar dos 61 anos, carrega, sobe e desce escadarias, monta sistemas, opera mesas de iluminação e sonorização, talvez não imagine que eu tenha passado pela Universidade, em três cursos diferentes.

A questão principal é que tenho um posicionamento que nunca aceitou as coisas da maneira que estão. Na USP, estudar História deu ensejo que entendesse que a violência é a linguagem primordial de sua construção. Depois de 522 anos de invasão de Pindorama por europeus, contemporâneo do atual estágio de violência em que matamos os povos originários; invadimos e expropriamos as suas terras; discriminamos brasileiros por raça ou condição socioeconómica, negando condições de desenvolvimento e alcance da cidadania, me angustia. Não posso ficar sem denunciar as discrepâncias que perpetuam a indignidade patrocinada por uma elite econômica espúria e tacanha.

Os livros propiciam reflexão, aprofundamento do conhecimento e fixação do saber. É um processo dinâmico que opera de dentro para fora, buscando evoluir em constante sinergia. Ao mesmo tempo, é entrópico, causando desordem aos padrões pré-estabelecidos no arranjo pessoal e social conveniente ao funcionamento do ordenamento cristalizado em faixas que bem poderíamos chamar de castas – como o existente na antiga Índia.

Basicamente, o leitor, evolui como ser pensante, estimulando uma série de repercussões que obrigam à otimização das regras sociais – empenhando-se em torná-las mais saudáveis e progressistas. Os livros causam tanto estrago ao status quo que os mesmos que defendem a utilização das armas físicas, os queimariam em praça pública de bom grado. Outra possibilidade que a História reproduz de tempos em tempos em regimes ditatoriais ou autocráticos, como sempre foi o objetivo do inominável. Não foi à toa que o setor da produção literária foi um dos mais prejudicados com aumento de impostos na atual administração.

Sou escritor, mas não prescindo da leitura de outros escritores. Não há como criar sem lidar com a criação de vários autores. Compreendi que nunca deixamos de aprender a escrever. Assim como apenas ser leitor não significa que alguém se torne mais sábio por ler. Talvez, mais ilustrado. Muitas vezes, um falso lustro que é utilizado para separar as pessoas em vezes de as unir. De antemão, entra em pauta outras qualificações humanas ligadas ao caráter e à cultura formadora. Quando encontramos defensores da ideia de que as coisas são o que são desde o começo dos tempos e que tudo deva permanecer da forma que está, não é apenas conservadorismo, mas reacionarismo.

Ler não é suficiente, mas escolher o que ler é decisivo. O gosto e as inclinações pessoais pesam na escolha. Há pessoas que, por mais que absorvam conhecimento, se direcionam na defesa de causas opressoras. Assim ler a Bíblia ou “Minha Luta”, de Adolf Hitler (ídolo do tal), não são por si obras que operem transformações no sujeito. O perfil cultural que o emoldurou exerce um peso maior. Essas leituras tanto podem servir de base de estudos para a compreensão da Sociedade humana na busca de soluções ou interpretações como pode levar o seu leitor a se tornar um adepto de concepções prontas e deturpadas.

Aprender a interpretar textos em condições de compreendê-los em todas os seus aspectos e transmitir o conhecimento adquirido de forma clara e consciente é libertador, se buscamos o desenvolvimento de uma sociedade igualitária. Isso é algo que me move, ainda que permaneça em frequente estado de espanto por conhecer a baixeza e a ignomínia as quais os seres humanos são capazes para manterem modelos de convivência injustos. Um dos livros que mais me impressionou foi “Invasores De Corpos”, de Jack Finney, originalmente lançado em 1954. Quando o li pela primeira vez, já havia assistido o filme de 1978, de Phillip Kaufman. Porém, o livro apresentou facetas mais ricas, apesar de ter gostado bastante do argumento do filme e sua execução.

Assim, ocorreu outras tantas vezes em outras produções porque interpretar palavras de uma obra original nos traz dimensões inéditas – mais interativas – da mensagem que o autor quis passar. Ver o argumento do livro de distopia fantástica de Jack Finney ser reproduzido ao vivo diante dos meus olhos como o que acontece atualmente com os seguidores de um sujeito que se auto intitula “mito” é, ao mesmo tempo algo tão temerário quanto autoexplicativo. Somos um povo crente em mitologias. Quanto mais estranhas, melhor. Quanto menos inverificáveis, mais aceitas.

Defender um passado que é baseado na manutenção da opressão social como modo de funcionamento e que, mais cedo ou mais tarde, se volta explosivamente contra a própria Sociedade é uma ação autodestrutiva. O aumento da criminalidade é indicativo disso. Não apenas abrir um livro garantirá encontrar o equilíbrio para que consigamos reformar os atuais parâmetros que exclui cidadãos de benesses tão simples quanto direito à liberdade, à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, à existência digna. É determinante que desenvolvamos senso crítico para questionarmos todas as situações dadas como definitivas. É uma tarefa árdua, diária, nos defendermos contra os tomadores de corpos e de mentes que desejam ver reproduzidas ad eternum as nossas mazelas como algo que devamos nos orgulhar. Com L, de luta, que lutemos para superá-las!

Missivas De Primavera / Só, Entre Dois Mundos

Lunna ed io…

Lunna,

nesta manhã de domingo de ressaca – no meu caso, por ficar horas insone – a Primavera mostrou sua faceta inconstante. Saí para ir a pé ao supermercado próximo e tomei pela cara agulhadas do ar frio invernal, digna da estação que acabou de morrer. Voltei com o Sol a banhar-me de luz quente. Suando, estava a escrever na cabeça a missiva que lhe envio. Agora que passo para a tela do computador, sinto o ar refrescar demais. 18ºC. Lembrei o quanto não gosta do calor excessivo e talvez nem do frio extremado. Não é incomum imaginá-la com um cachecol em volta do pescoço. Nem sei se usava um quando da primeira vez que a vi, mas na minha idealização, sim. Abri a porta para alguém que não parecia a nenhuma outra que conhecera antes. Impressão que perdura até hoje. Apesar de anos de convivência, ainda é um enigma difícil de decifrar. Não que queira. Sou daqueles que acredita que mistérios existem para serem vividos, não explicados. Dá ensejo que passeemos sobre “possibilidades impossíveis” e clareiem contradições que não são poucas, nos ajudando na criação.

Desde aquele longínquo de 2015, a sua influência na minha vida foi direta e desejada. Como em qualquer relação íntima, você me conhece por minhas palavras enviesadas – mentiras verdadeiras que me denunciam. Há variações de humor e choques de opiniões. No último texto que lhe enviei, o que eu supus ser um conto, perguntou o que havia acontecido comigo: “não é um conto, não uma narrativa, nem mesmo uma história. O que houve?”. Respondi que era um texto antigo, de 2014 (antes da sua intervenção, portanto), o qual não havia alterado, apenas limpado. Queria que fosse seco. Rindo, só pude dizer que se não era uma coisa, nem outra, poderia ser uma receita de bolo. Fiquei a imaginá-la vociferando mentalmente contra o seu autor “rebelde”. A minha reação com você nunca é equilibrada. Fico desconcertado com a sua franqueza, mas não deixo de louvá-la. Estranhamente, me sinto distinguido. Como daquela vez que, ligado no “piloto automático”, eu enviava textos-padrão e perguntou “cadê o meu autor?”, me instigando a buscar desafiar-me, o que acabei por fazê-lo. Outro dia, cheguei a dizer que escrevia, em última instância, para você. Sinal de extrema confiança.

O que surge diante de mim é o de uma mulher em constante mutação, ainda que apresente uma identidade reconhecível de menina pelo olhar sapeca e humor afiado de sagitariana. Tendo dois terços da minha idade, já deve ter lido o dobro ou mais do que eu. Colecionadora de livros que vez ou outra doa, coleciona palavras que joga ao mundo através de páginas costuradas e escritores que põe de lado se não quiser mantê-los no elenco da Scenarium. Quando me perguntam se escrevo livros ou compareço com textos para as edições especiais – Plural ou coletâneas – por algum motivo especial, respondo que escrevo para me tornar o melhor escritor possível dentro das minhas limitações. Nesse momento é que a Lunna editora comparece para me pressionar para expandir meus horizontes literários, buscar soluções inéditas, soltar os meus demônios.

Eu já disse antes que nós, humanos, somos sós. Em última instância, diante do mundo, estamos isolados. Você é uma daquelas pessoas que viveu entre dois continentes e realidades durante algum tempo e ouso dizer que continua a viver. Qualquer ser que especula sobre o mundo, sente-se dividido entre dentro e fora de si. Sente-se abrigado em ambientes seguros e em outros inóspitos. Está no Presente e no Passado ou um dentro do outro. Oriundos de vários países e “oriundi” formaram a nação brasileira. Você, um deles. São Paulo, carrega todas as nações desta nação. E aqui você encontrou uma identificação que demonstra a sua pluralidade. Enquanto descerra o véu que expõe aspectos que a torna mais misteriosa, contradizendo a ideia de que o conhecimento se dá á luz à do olhar.

Eu espero que continuemos a nossa interação por muito tempo. Sob sua condução, buscarei fazer jus à sua atenção e estímulo. Eu me sinto como que escolhido para aceitar devassar as minhas incoerências e inspirar-me a prosseguir neste caminho estranho e belo da criação da palavra perfeita, da frase sonora, do parágrafo instigante. Sono grato di far parte del mondo lunare per tutto il tempo che voglio…

Bacio, bambina!

                                                                                                     Obdulio

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Suzana Martins

Missivas de Primavera / As Marés Matutinas

Suzanna Martins

Suzana, bom dia!

O seu nome evoca o da minha professora de Biologia no Colegial, hoje Ensino Médio. Bastante observadora, percebeu a amizade próxima que eu tinha com uma colega de classe. Na frente de todos, perguntou se estávamos namorando. A minha amiga ficou sem palavras. Só pude dizer: “Professora, ela é noiva!”. Ao que a Profa. Suzana respondeu: “e daí?”… Olhei para o lado e não pude encontrar o olhar (que baixara) da moça de 19 anos que estava completando seu estudo com uma classe de alunos mais jovens. Eu era muito imaturo, em muitos sentidos. Emocionalmente, muito mais. Dois anos mais novo que a moça de 19 anos, para mim havia um impedimento maior pelo fato dela ser comprometida do que por ser mais velha, um tipo pelo qual sempre fui fascinado. Hoje, eu sei que ela gostava de mim. No final do ano, me presenteou um livro de poemas de Castro Alves, que sempre demonstrei amar. Eu, nunca a esqueci.

Mas não estou lhe enviando esta missiva para falar de mim, mas de suas marés, que evocam o eterno movimento das águas pessoais a nos alimentar de poesia e vida. Navegar é preciso. E por nós, muito mais. Você expõe suas vagas através das palavras e das imagens que evocam palavras: “fotografou o verbo / expôs a palavra. / marcou o vocábulo. / Anotou, fotografou / escreveu o sentimento / em nota de rodapé”.

Esse imbricamento entre as várias formas de Arte deve se chocar com o seu lado de jornalista, que repercute a dura materialidade da Realidade. Qual seria o desenho que faz para filtrar as mazelas do que nos é revelado? Qual seria a imagem que mostre a transformação do dito para o inaudito? É como experimentar a suave melancolia de uma manhã feliz. É observar por completo o momento que passa e permanece. A garoa que cai e nos aquece nesta terra paulistana. É transformar a si enquanto transforma às outras pessoas.

Suzana de todos os matizes, Martins marcial pelo direito de ser total. Expressão de mulher inteira que se divide em tantas expressões. Foi e é muito bom tê-la perto do nosso olhar, no grupo da Scenarium, por onde veio a versão deste mundo (in)versos e do meu, através de suas Marés. Espero ter disponibilidade suficiente para continuar a usufruir de sua sensibilidade. Porque me faz bem.

Um abraço forte!

Obdulio

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Gouveia / Suzana Martins

BEDA / Não Envelhece, Não?*

A caminhar pela avenida Itaberaba, que desemboca no Largo do Japonês, ouço uma voz atrás de mim, vinda da parede, junto ao banco: “Não envelhece, não?”… Voltei-me e não reconheci o tal que parecia me conhecer. Era jovem, por volta dos seus vinte anos. Busquei no arquivo da memória alguém com seu perfil. Seria filho de algum amigo? Um rapaz que empreguei em algum serviço?

Eu sou daquelas pessoas que tem memória seletiva. As minhas lembranças mais escancaradas são dispersas pelo tempo, nem sempre de forma linear. Episódios e pessoas se misturam no caldeirão das reminiscências, de maneira atabalhoada. É comum imaginar ter sonhado algo que realmente aconteceu, assim como — perigosamente — o contrário.

Certa ocasião, fiquei um tempo sem conversar com uma pessoa, porque sonhara que brigara sério com ela. Quando me lembro da criatura, não recordo nossas criações e vice-versa. O parâmetro que a minha memória utiliza é heterodoxo. Os episódios e as pessoas podem até ser decisivas e importantes do ponto de vista formal… porém, o mais comum é me lembrar de detalhes aparentemente insignificantes — um olhar, um gesto, um sorriso, um choro, o gol perdido, a torção do meu pé, o Tarzan, a Fofinha, a Cloé e a Gita, meus cachorros quando era novo…

Contudo, não sou caso perdido. Por ocasião que decidi escrever um livro sobre a relação com meu pai, percebi que estava tudo guardado. Aos poucos, foram aflorando acontecimentos que me surpreendi ao resgatar. Em determinando momento, tive que parar. Eu me dei conta de que estava a sofrer demais… Decidi adiar por tempo indeterminado o projeto. Um dia, o completarei…

Cumprimentei o tal rapaz como se o conhecesse. Perguntei como ele estava. “Estou bem!” — respondeu — “Olha o que tenho para você!”. O moço de sorriso aberto sacou uma embalagem de perfume de dentro de uma caixa de papelão… e me ofereceu.

– Este perfume, pai, vai deixar a sua mulher louquinha!”…

Sorri e, intimamente, fiquei aliviado por não lembrar do tipo, que estava apenas a utilizar uma simpática estratégia de marketing ao me abordar… que consistia em criar certa intimidade ao parecer me conhecer — além de apelar para minha vaidade, ao anunciar que eu tinha a mesma feição depois de um tempo tão longo…

Sorri duplamente com a esperteza do jovem camelô. Quem sabe, um dia, ele poderia vir a se tornar um comunicador de renome, e um respeitável empresário do ramo de comunicação?

Eu me abstive da compra do perfume, de procedência duvidosa, com um argumento irrefutável: “A minha mulher é alérgica!”… E completei — mentalmente — que ela ficaria realmente louquinha com aquelas fortes fragrâncias. Adiante, a uns vinte metros, outro rapaz, junto a outra caixa de papelão, repetiu, a sorrir: “Não envelhece, não?”… Dessa vez, não detive os meus passos. O que na primeira vez pareceu um elogio, — que chegou a mexer com a minha vaidade por segundos —, na segunda, me pareceu ofensa.

*Texto de REALidade, lançado pela Scenarium em 2017.

Participam do BEDA: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Darlene Regina / Suzana Martins / Lunna Guedes