Há dez anos, em abril de 2013, escrevi sobre a foto acima: “Um interessante painel de arte no túnel do Metrô Consolação e eu só conseguia olhar para as linhas de rachaduras marcadas a giz, sinalizando o tamanho que apresentavam, enquanto esperava o trem que me conduziria ao Paraíso. Que mal me assola que me faz olhar para além do que deveria ser o principal alvo de minha atenção? O que me conduz, me condiz?”
De certa maneira, esmiuçar fatos, verificar repercussões e buscar efeitos por menores que sejam derivados ou mesmo alheios ao acontecimento principal, é um “defeito de meu olhar”. Um dos exemplos que exponho é sobre algo que vejo com interesse sociológico desde que surgiu. No início de sua formulação, assisti a três edições seguidas. Depois, deixei de prestar atenção por anos, mas em 2020 voltei a me interessar por perceber que espelhava um processo político-social para além do que qualquer pesquisa pudesse demonstrar. Afora de ter surgido no bojo da Pandemia de Covid-19. Eu me refiro ao “reality show” Big Brother Brasil ou simplesmente BBB, como passou a ser chamado. Nome formulado a partir do título do incrível 1984, de George Orwell, que retrata uma sociedade controlada e vigiada 24 horas por dia, típico de um regime político opressor.
A ideia do confinar pessoas sem aparentes conexões, de origens socioeconômicas, posicionamentos ideológicos, identidades de gênero e raciais díspares em um mesmo local por meses seguidos, com jogos e imposições aplicadas a partir de regras preliminarmente aceitas por contrato, se bem que os participantes não tenham conhecimento do que seja imposto, configura para mim quase como se fosse a estrutura imposta de fora para dentro em nossa Sociedade, ainda que seja considerada uma Democracia. Esse isolamento deixar quem está confinado alheio aos fatos mais recentes, fazendo com que contem apenas com o suporte de suas experiências pessoais, sem as balizas que normalmente usamos das informações que recebemos dos confrontos ideológicos estremeados a elas pela Mídia. Porém, os seus destinos metaforicamente sofrem a pressão de grupos organizados exteriormente, interessados em alavancar ou enterrar os percursos de cada participante.
Ao contrário de um regime opressor, ninguém chega à Casa por imposição, mas por escolha. O chamariz seria o prêmio em dinheiro, mas ser visto, conhecido e afamado a ponto de alavancar o que queira fazer são outros prêmios menores decorrentes dessa exposição transmitida pela TV o tempo todo ou em edições especiais e programadas. A dinâmica da mútua convivência é potencializada pelas circunstâncias que englobam gradações que refletem referências exteriores — Camarote, para os aquinhoados; Pipoca, para os seres comuns — estipulados muito mais por critérios de penetrabilidade pública do que por capacidade financeira.
Mesmo assim, a simpatia por pessoas conhecidas pode ser algo que pode mudar de acordo com a direção do vento ou humor dos telespectadores que, em última instância (supostamente), são quem decidem os vencedores entre os confinados nos chamados “paredões”. Os “heróis” passam por provas para designar quem irá passar pelo escrutínio do público. O desempenho nessas provas, a depender do olhar do telespectador, pode até angariar simpatia pelos perdedores, a depender de como se dá o embate de forças colocadas em movimento.
O que normalmente acontece na Sociedade de maneira mais velada é estimulada por armadilhas colocadas no caminho dos participantes, como os chamados “jogos da discórdia” que, entre outras, fazem explodir palavras exaltadas que expõem fraturas da convivência diária. A violência física é punida com a morte (expulsão). Ao contrário do que nem sempre acontece no mundo exterior. A alimentação ou a falta dela, mormente para quem vai para a Xepa (em referência aos restos de fim de feira), é um dos outros fatores que estimulam brigas entre “brothers and sisters”, o acaba por me fazer lembrar de uma das frases de minha mãe: “Onde falta comida, todos brigam e ninguém tem razão”.
A edição de 2020 foi reveladora de como as ações aparentemente inocentes de personagens sem relevância social ou política, podem vir a refletir, por uma conjunção de fatores, condições externas ao programa. Comecei a observar a identificação de uma torcida aguerrida por um dos participantes, raiando o fanatismo, por Felipe Prior, que apresentava um comportamento exaltado e bastante identificado com o dos simpatizantes do governo central. No “paredão” entre ele e a cantora Manu Gavazzi, de postura oposta à dele, a votação passou do bilhão de votos. Em proporção bastante equilibrada, o rústico participante foi eliminado, dando a nota do crescimento da rejeição aos posicionamentos ideológicos ligados a ele. Ao final, a vencedora foi a médica preta Thelma Assis, o que revelava a preponderância de ideias mais abertas ao contrário do viés conservador então vigente do público.
Na edição do BBB de 2021, a fórmula de colocar famosos no “reality” causou uma onda de “cancelamentos” em série de pessoas que não estavam acostumadas à pressão de lidar com os choques diários na convivência com pessoas que comumente não contestariam seus comportamentos na Sociedade “aberta”. Presos no mesmo espaço, em situações limites de confronto, a antipatia por alguns participantes chegou a quase 100%, como no caso de Karol Conká em sua eliminação. A possibilidade de poder odiar alguém de forma tão franca, intoxicou o público. Assim como amar desbragadamente a concorrente Juliette Freire, que venceu com mais de 90% dos votos.
Juliette, que passou a ser chamada apenas pelo primeiro nome, atraiu um número enorme de seguidores que a acompanham nas redes sociais e adquirem os produtos que anuncia de forma consistente, incluindo ingressos para temporada de shows como cantora. Ou seja, bem aproveitada, a exposição propiciada pelo BBB, para além do prêmio para o vencedor, se nada de mais de interessante tiver a apresentar, pode catapultar a uma “carreira de celebridade” — algo intangível quando a pessoa é afamada por ser famosa — corriqueiramente se alimentando de citações ou referências midiáticas, ditando modas e/ou se expondo em situações espetaculosas.
A edição deste ano apresenta participantes anódinos, sem o carisma de um Gil do Vigor, por exemplo que, ainda que não tenha vencido a competição passada, conseguiu desenvolver uma carreira sólida fora da “casa mais vigiada do Brasil”. Esse interesse em esmiuçar o comportamento de pessoas colocadas em circunstâncias que desafiam a estabilidade emocional e o equilíbrio mental em um ambiente controlado, mediante estímulos arquitetados para os colocarem em circunstâncias precárias, diz muito sobre como os telespectadores comuns — aqueles que vivem em condições controladas por um sistema invisível para a maioria deles — que passam horas votando para o seu favorito, discutindo apaixonadamente o destino de vidas que são fuziladas nos “paredões”. A mesma paixão que falta na defesa de direitos sociais e na clareza do processo político é dirigida na consumação de objetivos imediatos, em uma espécie de catarse coletiva.
Mediante isso, fora da casa, grupos de interesses os mais vastos, operam como se fosse uma indústria paralela, mas bastante identificada com o “jogo” em que são simuladas vidas por um fio. A eliminação é lamentada como se fora uma morte real e a permanência com a alegria de um (re)nascimento. Neste ano, um dos possíveis vencedores apresentava um controle exemplar sobre o seu comportamento, usando argumentos que operavam nos enganos e falas comuns lançadas a esmo por seus adversários, sendo colhidas e trazidas para o centro das discussões. Bem treinado na profissão de ator, geralmente no papel de mocinho, manipulava com astúcia todas as situações, improvisando quando o seu comportamento falseado sofria algum reparo. Encontrou como principal adversária justamente uma moça rica, empresária e “influenciadora” acostumada desde menina a reconhecer pessoas dissimuladas. Ao se postar como vítima de perseguição, tentava trazer para si a simpatia de quem se sente humilhado no meio social. Sairia vencedor usando os mesmos expedientes que muitos políticos aprendem em cursos de “marketing”. Ou seja, foi eleito o preferido por ser um típico manipulador. O público o aprovava, reverenciando sua “inteligência” e habilidade em ser um bom jogador. Sua vitória seria uma antevisão do pleito mais importante do início deste milênio no Brasil?
Os outros dois participantes finalistas carregavam a similaridade de serem pretos. Assim como o outro, fizeram parte do Camarote. Exemplarmente, têm atividades que são aquelas nas quais normalmente alguém dessa origem racial se sobressai na Sociedade brasileira — esportiva e/ou artística. Mas afora isso, a sobrevivência na Casa do BBB se deu por angariarem a simpatia do público versus a antipatia por outros participantes. Vencer esse “reality show” competitivo, apesar de todo “trabalho” dos grupos de influência, demonstra o que perpassa por trás do que eu chamaria de forma discricionária de “inconsciente coletivo” brasileiro e aos seus efeitos, por menores que aparentam, equivaleriam às rachaduras na parede social do País — irreparáveis por décadas ainda, mas escamoteadas eventualmente por “jogos reais”.
Participam do BEDA:
Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia /
Cláudia Leonardi