entre um segundo e outro há um espaço transitório um micro momento de tempo suspenso um nada entre pontos decorrentes um elo vazio que formam correntes onde impera o silêncio absoluto e sombrio um corpo sem sol sem sombra escuridão na luz feito mancha na estrela espaço sem peso que existe sem existir passado presente e futuro que acontecem no mesmo passo trôpego despegado de ato e ação consequência sequência inconsequente espera dança suspensa a incerteza do abismo na planície cismo na crosta terrestre uma pausa em que há possibilidade de tudo nunca se realizar uma noite sem mestre sem dor amor cansaço prazer emoção até o próximo marco paradoxo que é viver.
Há situações que ainda que não esperemos de nenhuma forma, acabam por nos trazer um grande prazer, muitas vezes pelo ineditismo da situação ou porque, se fôssemos imaginar que acontecesse, seria um exercício de impossibilidades, como ganhar no jogo, principalmente quando não jogamos, a se concretizar de maneira tal que talvez só um sonho explicaria.
Em um desses sábados, pelo Whatsapp, Weslei Matta, jovem cineasta – diretor, roteirista, editor de imagens, cinegrafista – que conheci através de minha caçula, em um desses encontros de contemporâneos intemporais, me consultou sobre a disponibilidade de atuar como Don Alighieri, um mafioso do futuro. O ator que o faria, ficara impossibilitado. Acertado para a manhã de quinta-feira seguinte, restaria a mim, em cinco dias e meio, decorar as falas, encontrar o tom de expressão exato de alguém poderoso, convicto de sua invencibilidade e… morrer.
RONIN: Eu achei que você seria um desafio, Don, mas estou decepcionado…DON ALIGHIERI: Você trapaceou… Seu hacker maldito!
O set para a realização das cenas “no armazém” teria lugar no Instituto Criar de TV, Cinema E novas Mídias, fundada em 2003, aproveitando construções típicas do início do século XX, comum na região, de indústrias ou armazéns desativados remanescentes do surto desenvolvimentista paulistano do início do século passado. O Bom Retiro, um dos bairros mais antigos da região central de São Paulo, sofre um rápido processo de especulação imobiliária voltada a edificações de condomínios residenciais. Os antigos conjuntos de graciosas casas operárias pouco a pouco deverão se extinguir e as ruas por hora tranquilas darão lugar ao esquemático tom monocórdico dos novos empreendimentos.
Não seria a primeira vez que atuaria sob o convite de Wes, como eu o chamo (em referência a outro cineasta – Wes Craven). Na outra oportunidade, Wes me dirigiu, mas desta vez a direção caberia a Pedro Oliveira, que eu conheci como cinegrafista de “Da Sacada”, clipe baseado em uma canção de Marcos Wilder, pela mesma St. Jude Produções. Por alguma razão insondável, acharam que poderia atuar daquela sorte e diante do imprevisto, voltaram a me chamar. Acordei cedo, com a cidade lavada em um típico dia paulistano dos bons tempos da garoa e lá fui eu para a região do velho Bom Retiro, para as cenas programadas.
Instituto Criar de TV, Cinema E novas Mídias
Wes conhecia o espaço porque estudou no “Criar”. A diária estava programada para até às 14h30. Cheguei a tempo de poder ver outras cenas já gravadas do primeiro episódio de “2099”, que se passa num futuro pós-apocalíptico em que os jogos virtuais se tornam fonte de disputas entre forças antagônicas. Na trama, sou Don Alighieri, capo da realidade virtual que enfrenta Ronin, um matador de aluguel, personagem manipulado-incorporado pelo jogador Jon no mundo real. Ficamos à espera dos outros atores participantes das cenas. O ator amador se sentia estranhamente tranquilo, um veterano, não apenas na idade. A expectativa era que tudo corresse bem, principalmente porque sabia do talento dos jovens envolvidos no projeto. O que veio a se confirmar plenamente.
Durante as filmagens, a discussões sobre como se desenvolveria as tomadas dos planos e ângulos das ações eram interessantes e demonstravam a capacidade de cada um dos envolvidos. Todos demos sugestões – atores e realizadores – acatadas aqui e ali –, mas o respeito pela liderança de quem conduzia a filmagem era inquestionável. O saber se sobrepunha à vaidade e a busca das melhores soluções para que chegássemos ao melhor resultado me permitiu viver uma realidade virtual-exemplo do que poderia ser a realidade palpável deste País. Como referência cruzada, o escritor não pode deixar de notar que até um livro de Bukowski – O Amor É Um Cão Dos Diabos – fez as vezes de apoio da câmera para proporcionar o ângulo exato para a realização de uma cena.
Como um ser humano comum levanta um outro pelo pescoço com apenas uma das mãos?
Poucas vezes me senti tão bem. O velho encontrou, entre pessoas que carregavam um terço a metade de sua idade, o amor pela realização da arte – transformar ideias e pensamentos em algo vivo-em-movimento. O jogo entre realidade pós-apocalíptica e virtualidade de alguma maneira encontra ressonância nos tempos que vivemos. Por três horas trabalhamos para que três minutos de ação se tornassem uma visão consubstanciada de algo concreto – ilusão de outra vida – espírito ganhando um corpo. Iludir para entreter-fazer-pensar é um sucedâneo para a existência iludida imposta cotidianamente por mistificadores-algozes que grassam na cena brasileira.
“E você me inventou e eu inventei você e é por isso que nós não damos mais certo.” (camas, banheiros, você e eu…; p.129) – Charles Bukowski, in O Amor É Um Cão Dos Diabos, 1977