BEDA / Scenarium / Um Dia Depois

UM DIA DEPOIS

Um dia depois do Dia dos Pais,
o que mudou no País?
Para tantos pais, filhos e famílias,
o segundo domingo de agosto não foi comemorado.
Pais não receberam seus filhos,
filhos não abraçaram quem os gerou
cuidou,
trabalhou,
viveu por…
Muitos, estavam vivos, mas distantes
e distanciados, por força do isolamento
ou pela desavença e litígio.
Eu, mesmo,
passei os últimos anos de meu pai,
alienado da sua presença. Mas foi uma escolha.
Outros, partiram pela doença do descaso.
Cem mil vezes pranteados.
Há ainda os que estão acamados,
entubados,
estratificados.
Todos, marcados
por estatísticas macabras.
Eu pude estar com as minhas filhas.
Percebi o quanto sou agraciado
por ser beijado,
abraçado,
por me sentir amado,
entrelaçado
pelo enredo familiar.
A minha alegria carregava um travo.
Em domingos sequenciais,
vivemos dentro de uma bolha boçalizada,
em ilhas isoladas,
de mar que se nega a aprofundar.
É como se o oceano não fosse salgado,
suas águas não quebrassem em ondas ao chegarem às praias,
não se permitisse abrigar sereias,
miríades de outros seres,
tesouros naufragados
e continentes perdidos ̶ raso de vida, mistérios e poesia.
Contudo, se aproveitam da crença no fantástico
e renegam a profundidade da Ciência.
Existimos em realidade paralela,
afirmando nossa indecência.
Negamos o conhecimento e festejamos a morte.
Entre plantas ̶ coqueiros e bambuzais ̶
o supremo mandatário deglute a nossa humanidade.
À caminho da segunda centena de milhar,
o chefe do jogo do bicho medonho continua sem paradeiro.
Quem o impedirá o testa de ferro insubordinado dos coronéis do dinheiro de continuar a jogar?
Há remédio
para evitar que muitos mais pais e filhos
estejam separados no próximo Dia dos Pais,
por obra e artimanha da desconsideração por brasileiros,
por obra e arte da estultice de eleitores brasileiros?

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana AneliClaudia LeonardiDarlene ReginaMariana Gouveia

Lunna Guedes

BEDA / Scenarium / Projeto Fotográfico 6 On 6 / À…gosto

Agosto de 2020 — Pandemia de Covid-19 grassando no País com a média de mais de 1.000 mortes por dia — por volta de 100.000 mortos oficialmente registrados, amplamente subnotificados. A direção da companhia indicou que poderíamos postar seis imagens à gosto. Escolhi algumas imagens que remetem ao passado. O presente indicado acima está um tanto estéril e o futuro não parece ser muito diferente, com tendência para ser um tanto enigmático, feito um jogo de azar.

 

6 on 6 agosto 4

Esta imagem foi colhida outro dia. Um fusca 1969 estacionado quase em frente à minha casa. 1969, assim como esse ratão, também foi o ano da mudança definitiva para a casa recém levantada no terreno 22 do loteamento realizado na antiga fazenda de fumo, na região da Vila Nova Cachoeirinha. Durante muitos anos, os pés de fumo nasceram a esmo em cada canto livre do quintal. O que ajudou bastante no controle dos piolhinhos que infestavam as galinhas que começamos a criar para completar o orçamento familiar. Tirávamos água do poço, tomávamos banho de canequinha, expulsávamos os cavalos que comiam a cerca feita de bucha (a planta), festejávamos a colheita de bananas, goiabas, abóboras e abacates, nos irritávamos com as picadas dos marimbondos. Eu adorava jogar futebol — balizas improvisadas com tijolos — bola improvisada com pano, recheio de papel e cordinha na rua de terra. Em dias de chuva, andávamos de chinelo, calças arriadas, até o asfalto, distante quase 2 Km para só então colocarmos os sapatos levados em sacolas. Tempos difíceis. Eu era feliz.

 

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Essa imagem remete ao sincretismo religioso de minha mãe. São resíduos físicos de um tempo em que eu não compreendia como uma pessoa abarcava todas crenças possíveis em seu cotidiano. Além de acender velas aos “espíritos”, não via contradição em apresentar imagens díspares na prateleira. Um Buda gordo, inadmissível num asceta que jejuava frequentemente, se referia a símbolo de prosperidade. Assim como o elefante de costas. O Cristo em pedra sabão, apontava para a sua criação cristã, de primeira comunhão — a qual também fiz — crisma, missas dominicais e adoração aos santos. No entanto, seu nome — Maria Magdalena — já apontava para a tendência em ultrapassar os cânones e se ater ao teor herético da religião. Ela adorava ter o nome da 13ª Apóstola e, para alguns, mulher de Jesus.

 

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Essas conchas estão há muito tempo conosco na casa de praia, onde estou. Porém é bem provável que os moluscos que as ocuparam possam ter vividos mais de um século, antes dos 40 conosco. Há moluscos que, devido ao metabolismo muito lento, chegam a mais de 500 anos, a depender da espécie. São prodígios do passado. Mensagens de eternidade em tempos de rápida deterioração do mundo que nos rodeia, em todas as suas formulações. A arquitetura dessas habitações é esplêndida. Construída pouco a pouco, enquanto cresce, sua natureza é de deixar, após a sua partida, um monumento a beleza e a transcendência, para quem conseguir-quiser ver. São templos dignos de oração.

 

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Ao vir para cá, recebi essas toalhas embaladas em plástico. Segundo a Tânia, eu as recebi de presente em meu aniversário de meio século de vida. Nem ela, nem eu nos lembramos quem me presenteou. Eu não sou ligado a regalos. Talvez uma postura de defesa de alguém que dificilmente ganhava presentes quando garoto. Quando acontecia, geralmente eram roupas. Sei que essa impassibilidade é mal recebida, mas não consigo evitar. O meu aniversário de 50 anos foi um acontecimento inesperado para mim. Minha família disse que haveria uma festa a qual deveríamos ir. Era um domingo e eu queria ficar em casa, assistir a um futebolzinho ou um a filme. Fiquei de mal humor. Disseram que não demoraria. O Buffet ficava perto de casa e vi ali a oportunidade de me mandar a pé assim que fosse possível. Ao subir as escadas, pelo menos 50 pessoas me esperavam. Revistas, as fotos com a minha expressão de surpresa dizem tudo. Pessoas que não via há muito tempo, compareceram ao evento e me senti um tanto estranho ao perceber que fosse alguém que merecesse ser homenageado. Os presentes, alguns guardo como marcas, como a camisa do São Paulo F.C. com meu nome e número 50. Outros, pertencem ao passado. O da imagem, tem sido útil para enxugar o meu corpo a caminho dos 60 anos…

 

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Da parte inferior do cacho da banana ainda imaturo, sai um pendão e, em seu extremo, destaca-se um cone de coloração e consistência diferenciadas (avermelhado-roxo), que é a flor da bananeira. É conhecida como buzina, umbigo, flor, coração ou mangará da banana. Costumo chamar preferencialmente de coração. Dois dos cachos produzidos, cortamos os corações. Deles, podem ser feitas excelentes saladas. Analogamente ao umbigo, quando cortamos o cordão, os filhotes-bananas se desenvolvem mais rapidamente. Deixados sobre a mureta, sem a seiva que os alimentava, murcharam pouco a pouco, até fenecerem. Umbigos ou corações — quedaram amargurados.

 

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A foto mais prosaica deixei para o final. Nela, apareço com a face taciturna, amplificada pela heterocromia dos meus olhos. Quase uma marca registrada da minha condição mental diante do que vivemos, a natureza cromática dos tempos atuais — verso, reverso, controverso — ganham melhor definição em foto em preto, branco e tons de cinza, amálgama-palheta da composição de cores da maldição em ser brasileiro.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana Aneli — Claudia Leonardi — Darlene Regina — Mariana Gouveia —

Lunna Guedes

BEDA | O Dia Seguinte

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Ingrid e Gus, o australiano

Hoje, o dia seguinte, amanheceu frio e nublado. Agosto é um mês de mutações térmicas drásticas. O dia anterior, iniciado quente e ensolarado, foi se transformando gradativamente, até se precipitar em água.

AGOSTO (1)
Val Guimarães e Roseane “Poesia”, primeiras a chegar

Trabalhei muito. O que me ajudou a não pensar frequentemente sobre minha paixão tornada confissão. Lunna soube bem identificar um dos significados da frase anunciada em rede social: “A loucura nos faz cometer paixões.”.

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Cláudia Leonardi, a Mãe Literatura

Uma dessas paixões foi testificada por palavras e seria colocada em mãos e, eventualmente, decifrada pelos olhos de quem quisesse conhecê-la – criar-recriar-transformar a vida em cenas e vivências – por personagens que representam minha experiência nesta jornada de quem me lê e dela participa.

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Maria Gonçalves, fã da Scenarium

Essa magia que é viver pode estar sempre por um fio. Feito Agosto. Repentinamente, podemos mudar de “estado”. Somos, mas estamos. Tento registrar essa dinâmica, como escritor.

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Minhas filhas – Ingrid e Romy – e amigas

Espero ter alcançado, com Rua 2, sucesso nessa empreitada. Porque, sucesso, para mim, é isso – encontrar receptividade para o que tento mostrar. Ainda que seja por apenas uma pessoa. Ainda que a mensagem seja entendida de maneira totalmente particular.

AGOSTO (7)
Com Mariana Gouveia, que lançava “Corredores, Codinome: Loucura

Com um livro de contos, cada um deles é uma chance de sucesso e, naturalmente, de fracasso – incentivo na busca do aprimoramento.

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Com outro autor da Scenarium, o poeta Marcelo Moro

O que chamo de “queda no precipício” foi acompanhada por muitas pessoas no ambiente do Café. Com certeza, perturbamos a rotina do local. Eu vestia uma camisa e carregava um chapéu em tons parecidos com o da capa de Rua 2.

AGOSTO (9)
Destaque para Maria C. Florêncio e Joaquim Antônio, poetas da Scenarium

Amigos, parentes e leitores seguidores da Scenarium, reunidos para um congraçamento em torno da literatura – um acontecimento cada vez mais estranho em um país em que as mídias visuais e sonoras preponderam. Diferentemente do “esforço” de ler.

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Com Mister Scenarium – Marco Antônio Guedes

Foi uma noite prazerosa. Os sorrisos irradiavam sem querer. Risadas espocavam alvissareiras de encontros festivos. O encanto se estabelece simplesmente por todos estarem reunidos em torno de um projeto de vida – Lunna e Marco – seus mentores e anfitriões.

AGOSTO (11)
Com  Adriana Elisa Bozzeto, autora de Verbo: Proibido

A artesã da palavra e das palavras transformadas em livros, editora de ideias transmutadas em projetos de vida. Vidas lançadas em embarcações sem destino, até chegarem ao coração de alguém – porto inseguro.

AGOSTO (12)
Lunna Guedes, escritora-editora da Scenarium

Acordei cedo. Prometi para mim mesmo colocar este texto no blogue por volta das 11h de Brasília. Consegui apenas às 16h, pois a vida nos solicita para além do escritor, realizar as tarefas cotidianas.

AGOSTO (13)
Frida, solicitando atenção…

Quem me lembra disso é a Frida, que pede atenção e comida. É hora do almoço. Interrompo a minha escrita e a alimento, como igualmente as outras meninas – Penélope, Lola, Betânia e Domitila.

Comeram tudo… Foi um sucesso!

Participam do BEDA:  Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari

 

 

 

 

BEDA | Dança Das Entidades

ENTIDADES
A dança…

O dia frio e úmido destoava da sensação que o corpo de Thiago sentia – ar tão abafado que as mãos estavam molhadas – como se tivesse sob um sol escaldante. No entanto, corria a noite… Sabia que sua febre não era puramente física. Don Diego, que o acompanhava e, eventualmente era convidado a assumir o seu corpo, ardia de saudade… Não que fosse represália por Thiago ter brigado com Diana, que carregava Saphyra, seu amor. Apenas acontecia.

Thiago e Diana também já se amaram. Mas viviam às turras, com diferenças quanto a objetivos e posturas. Thiago era mais tranquilo e retraído, quase tímido. Timidez que se esvaía quando colocava sua roupa de cigano e dançava as vibrações-referências de todos os lugares do mundo por onde o seu povo passou, desde quando os ciganos deixaram o Egito e a Índia, passaram pela Pérsia, Turquia, Armênia, chegando à Grécia, onde permaneceram por vários séculos antes de se espalharem pelo resto da Europa, com influências húngaras, russas e espânicas. Don Diego era mestre na dança flamenca.

Saphyra, de origem grega, também sofria. Com o corpo da esfuziante Diana, fazia uma mescla estonteante de flamenco e árabe. Quando conheceu Don Diego, no corpo de Thiago, imediatamente se apaixonou. O casal-entidade forçou para que Thiago e Diana ficassem juntos. E assim aconteceu, não sem antes causarem as separações dos casais que os abrigavam, também ciganos. Apesar da dor causada pelos rompimentos, os respectivos cônjuges se conformaram diante da explosão passional de beleza e efervescência emanadas quando as entidades dançavam nos corpos de seus companheiros. Sabiam que não havia como impedir o rompimento diante do jorro de energia pura que se precipitava salões afora por onde volteavam.

Thiago, por Don Diego, do qual gostava muito, decidiu chamar Diana para conversar. Ela aceitou, por Saphyra e porque o desconforto que passava a estava impedindo de trabalhar. Marcaram de se encontrarem longe do Recando Santa Sarah, em cujo salão de eventos, dançaram pela primeira vez, causando frisson entre todos que os assistiam, em uma festa com a presença dos Guardiões da Noite do Oriente, com a participação de várias famílias ciganas. Entre volteios e braços erguidos, cruzaram os olhares dentro dos olhares, longos cabelos jogados pelo espaço. A grega e o espanhol formaram a dupla que encheria de força cósmica todos os encontros nos últimos cinco anos.

Fora das festividades, Thiago e Diana tiveram que lidar com o cotidiano massacrante de professor e enfermeira. Nos momentos de encontro amoroso, usufruíam do poder do chakra sacral – Swadhisthana – livre e ativo. A conexão entre Don Diego e Saphyra se consolidava a cada encontro, enquanto Thiago e Diana perdiam suas identidades. No entanto, a massa de energia era tão grande que se espraiava prazerosamente por todos os poros de seus corpos. As peles, depois de cada refrega, permaneciam sensíveis a qualquer toque por quase 24 horas, como se fossem queimaduras. Apesar de todo o prazer que sentiam, os efeitos também concorriam para se sentissem desconfortáveis juntos, quando conscientes.

O ex-casal se encontrou em um Café no Paraíso, subiu as escadas e se posicionaram em um dos cantos do mezanino. Estavam calmos e inicialmente conversaram amenidades sobre saúde e rotina. Sentiam-se estranhos por estarem ali naquele ambiente impessoal. Contudo, talvez fosse o ideal para evitarem certas repercussões que já ocorreram antes. Como fariam? Senhora Avelar teria condições de liberá-los? Orações para Santa Sarah? Intervenção do Mestre Kalé?

Em determinado momento, por mais que evitassem, olharam-se nos olhos. Foi o que bastou para quererem se tocar. De mãos unidas, olhos flamejantes, perceberam que seus corpos perderam peso e praticamente flutuavam milímetros acima dos estofados. Seus corpos começaram a vibrar levemente e seus pelos e cabelos se eriçaram a olhos vistos. Trocaram um beijo longo, acompanhado de um suspiro profundo. Testemunhas disseram que sentiram uma lufada de ar quente a percorrer o salão, enquanto a luzes variaram de intensidade. Em pouco tempo, tudo cessou. A temperatura baixa deste Agosto voltou a prevalecer. Thiago e Diana se olharam como desconhecidos. Don Diego e Saphyra haviam partido..

Participam do BEDA: ClaudiaFernandaHanna LunnaMari