Educador Físico

Eu, de costas, junto com parte de meus colegas no curso do Prof. Luiz Henrique Duarte

Neste julho de 2022, faz 13 anos que iniciei o curso de Educação Física. Estava com 47, quase 48 anos que completaria logo mais, em outubro, e lá foi o quase cinquentão fazer parte de uma turma de jovens que buscavam o sonho de começar uma profissão com a qual se identificavam. Quer dizer, eu era um dos poucos que realmente iniciava do zero o estudo dos fatores que desvendavam o movimento do corpo humano. Boa parte dos estudantes já estavam envolvidos com a atividade física como instrutores informais, com o conhecimento desenvolvido através da atividade prática.

De início, a módulo era o de Licenciatura. Isso me daria a oportunidade de dar aulas em centros educacionais. Mas esse não era o meu objetivo imediato. Dois anos antes, eu tive um episódio de hiperglicemia resultante da Diabetes, só então identificada. Fui parar na UTI, passando perto de morrer, assim como já havia ocorrido com um amigo querido. Através de uma dieta rigorosa, baixei o meu peso, o que foi suficiente para deixar de tomar insulina injetável e passasse apenas à medicação diária de controle.

Assim como quando havia me tornado vegetariano, aos 17 anos, o meu corpo mudou de forma. De 105 Kg passei a 75 kg, desencadeando um processo estranho – eu me assustava sempre que ao espelho não reconhecia o meu rosto. Mais jovem, na primeira fase de emagrecimento, ocorreu o contrário. As pessoas me olhavam assustadas por minha magreza – choque inevitável decorrente da adaptação à nova alimentação – enquanto cria que continuava com o mesmo corpo. Ou seja, havia desenvolvido distúrbio de imagem. Corriam os anos 80, época do advento da AIDS e muitos me olhavam com desconfiança. Não ajudava em nada a minha iniciativa de raspar a cabeça. Alguém chegou a dizer que eu parecia um refugiado de campo de concentração.

Essas experiências me levaram a escolher a Educação Física para compreender os processos metabólicos e as possiblidades do desenvolvimento do corpo através de processos mecânicos propiciados pela atividade física. Porém, eu nunca voltaria à faculdade se não fosse o incentivo da Tânia, preocupada com o meu semblante um tanto tristonho. Decretou que eu estava sofrendo sintomas de “Síndrome do Ninho Vazio”, caracterizado pela perda da função de pai, diante da ausência cada vez mais acentuada das minhas filhas em casa.

Além disso, especulou a possiblidade de que pudesse vir a ganhar muito dinheiro como eventual técnico de Futebol, assim como Muricy Ramalho, cotado na época para um salário de 500 Mil Reais mensais no Palmeiras. Na realidade, as funções exercidas pelo profissional de Educação Física são mal remuneradas em todas as suas vertentes, incluindo a do professor, a não ser que o profissional alcance o reconhecimento como personal trainer ou atue em uma carreira como técnico esportivo de algum esporte popular em um clube de projeção. Isso, depois de muito tempo de atuação e aprimoramento técnico

Normalmente, assim como ocorre até com os médicos em início de carreira, o processo de proletarização das profissões é cada vez mais acentuado. As mudanças no perfil das mais antigas, além do surgimento de novas atividades profissionais tem alterado o mercado de trabalho. A tendência é o do desaparecimento de muitas delas, mas creio que o de transmissor de conhecimento continuará a ser essencial, como se provou na Pandemia. Por isso, já em nos Anos 80, quis me tornar professor, mas de História. Nessa minha segunda incursão, mudei radicalmente ao escolher algo ligado à atividade física. Porém, se enganam os que creem que não seja requerido o uso da mente, do raciocínio, do estudo para isso. Depois dos três anos de Licenciatura, quis fazer o Bacharelado. Estava decidido em terminar a graduação básica. Como qualquer área de conhecimento, o aprendizado nunca termina. Vale para o estudo, vale para a vida. 

Terminei o Bacharelado em 2013. Havia a possibilidade de até exercer a profissão em um projeto que fui chamado a participar, mas no mesmo período aumentou bastante a minha atividade como locador de sonorização e iluminação. Até pouco tempo antes, além de me ajudar a compreender a biomecânica corporal e ter tido contato com jovens que me estimularam com a sua energia, tinha dúvidas do real valor da minha passagem pela faculdade. Até que começou a pipocar as publicações de lembranças em que meus colegas de curso me buscavam para tirar dúvidas em relação às matérias, trabalhos e até passar indicações de estudos. Eu não era o melhor aluno da classe, mas era bom na escrita, estruturação de textos e formulação de trabalhos escritos. Nesse quesito, ajudei a vários dos meus colegas na conclusão do curso e sinto ter cumprido o meu papel.

Outra consequência que observei é que a passagem pelo exercício da escrita, ainda que tenha sido eminentemente técnica no curso de especialização profissional, me proporcionou a retomada pelo gosto de escrever novamente. Dois anos depois, ingressei na Scenarium, Eu me beneficiei do conhecimento adquirido nesse período, o que é mais do que se pode esperar da maioria das coisas que aprendemos ao longo de nossa existência. O estímulo pessoal provocado pelo contato com o pessoal da Educação Física também me ajudou na revitalização de ideias, melhoria na qualidade de vida concomitantemente ao desenvolvimento de consciência corporal. E como já disse Beda, um pensador britânico, existem três caminhos para o fracasso: não ensinar o que se sabe, não praticar o que se ensina e não perguntar o que se ignora. E eu continuo um eterno curioso sobre a vida.

O Filho Do Porteiro

O meu pai teve várias profissões em sua vida. Foi feirante se considerarmos uma banquinha com produtos de higiene uma “barraca de feira” , torneiro mecânico, marceneiro, pesquisador do IBOPE, almoxarife e porteiro num jornal de economia, na Martins Fontes. Às vezes, eu ia encontrá-lo para vê-lo, já que ele já não morava mais conosco e a mulher que estava com ele não gostava de nossa presença, assim como a minha mãe não gostava que fôssemos à casa deles. O que eu mais gostava é que o Sr. Ortega me entregava quase sempre um exemplar do Jornal da Tarde. Além das páginas de esportes, adorava as de cultura e as crônicas de Lourenço Diaféria.

O jornal acabou por enfrentar problemas financeiros, deixou de publicar em papel e hoje apresenta somente a edição eletrônica. Na época, um jovem que tentava entender o mundo, fiquei intrigado porque uma publicação especializada no setor financeiro não tenha conseguido contornar os efeitos econômicos das sucessivas crises pelas quais passamos. Para se ver que o Brasil não é para amadores ou nem mesmo profissionais. Hoje, eu sei que era o início um processo de modificação no setor de comunicação impresso, que apesar de ainda não haver a concorrência massiva da Internet, decaía por uma razão óbvia para mim: a leitura de modo geral decaiu na mesma proporção da decadência do ensino, em movimento iniciado na Ditadura como projeto de desmonte da educação.

Na época, tanto professores quanto alunos eram encarados como entes que causavam extrema desconfiança. Afinal, o aprendizado requer que pensemos, pensar requer questionar, questionar requer filosofar, especular, contestar o status quo e os esquemas pré-estabelecidos. Nada é mais desesperador para o conservador que, como diz a Lunna Guedes, é um ser preguiçoso, do que ocorrer a revolução dos costumes, a transformação dos tempos, a contestação das classes dominantes, a busca da mudança dos parâmetros políticos. O arejamento do ambiente social para torná-lo mais saudável, tentar encontrar soluções para a diminuição do imenso desnivelamento socioeconômico da população brasileira.

Como bem nos fez ver o atual Ministro da Economia, o Sr. Paulo Guedes, ao objetar a chegada do filho do porteiro ao ensino superior através dos programas públicos de incentivo à educação como o FIES, isso é uma temeridade para pessoas que, com ele e o chefe dele, formam a quadri… a equipe de (des)governantes então no poder federal. Ao educar o filho do porteiro, como eles terão ao seu dispor outros porteiros que, ainda que recebam um baixo salário, possam servir aos deleites dos eleitos: abrir e fechar portas, carregar as suas sacolas de grife, receber as suas correspondências, controlar a circulação de pessoas indesejáveis, recepcionar amigos, distinguir e fazer mesuras aos cidadãos de primeira classe e cuidar de sua segurança?

No início dos anos 80, eu entrei na FFLCH-USP, no curso de História, prestando vestibular. O filho do porteiro então só tinha dois passes para ir e dois para voltar da Zona Norte até a Cidade Universitária, na Zona Sul quatro horas entre ida e volta e um dinheirinho para comer alguma coisa. Eu levava iogurte, maçã e comprava um salgado na lanchonete. Havia o “bandejão”, mas eu preferia economizar para poder tirar cópias dos textos necessários para fazer o curso, já que comprar livros era impensável, devido ao alto custo. Fiquei seis anos frequentando a Cidade Universitária, participei como figurante de “Feliz Ano Velho”, com Malu Mader e Marcos Breda, além da belíssima Eva Wilma; iniciei um curso de Italiano com os alunos de Letras; bati com gosto nos adversários, como médio volante do time de futebol da História (muito fraco); escrevi para o jornal do grêmio da faculdade, fui censurado por usar a palavra “tesão” em um poema (amar como um artesão, com arte e tesão…); escrevi muitos trabalhos literalmente nas coxas (tirei uma das melhores notas de Egiptologia num texto escrito durante o percurso de ônibus); e decidi deixar o curso para começar o de Português, na mesma FFLCH_USP, fazendo um outro vestibular, no qual passei.

O filho do porteiro estava feliz por poder ter contato com a Literatura de uma forma mais intensa. No entanto, “engravidei”. Tudo mudou. Tive que abandonar a faculdade para poder trabalhar integralmente. Eu já trabalhava com eventos, mas como empregado de uma banda. Dois anos depois, eu e o Humberto, montamos a Ortega Luz & Som. Voltei a fazer faculdade apenas aos 47 para 48 anos bacharelado em Educação Física quatro anos em que reencontrei o prazer de estudar, apesar de dormir pouco. Vivi a mesma situação da maioria dos estudantes que precisam fazer os seus cursos e trabalhar para financiar os seus estudos. Fiquei muitas vezes no negativo. O que me movia era poder ter uma opção de trabalho, mas a minha pequena empresa ganhou musculatura e atuar como “personal” ou professor de Educação Física em uma escola foi ficando em segundo plano, principalmente por perceber que a falta de atividade na profissão causa uma defasagem às vezes intransponível. Essa é uma outra questão que os que legislam sobre a educação não entendem estudar é um processo permanente.

O conhecimento exige esforço e demanda recursos. O aprimoramento é fundamental para que o educador possa fornecer subsídios atraentes para que seus alunos prosperarem no aprendizado. O estímulo para quem professa o ensino como missão (me perdoe, Professora Marta Scarpato, que odeia esse termo) deve se dar em uma estrutura adequada, recursos midiáticos, compatíveis com os tempos atuais e a capacitação constante. E, é mais do que claro, salário não apenas digno, mas muitíssimo sobrevalorizado ao que se apresenta hoje. Porém, em se apresentando uma plataforma de governo que adota o Regime Militar como modelo, ou seja, de desmonte da educação, isso não acontecerá. Piorará. É um ciclo vicioso e viciado, pustulento e infectante de doenças do século passado. Isso não é conservadorismo. É putrefação.