B.E.D.A. / Professor

Professor acordou naquele sábado ainda com a angustiante lembrança de sua morte. Em sonho. Era tão forte a sensação que teve certeza que ocorreria no correr das próximas horas. Tomou o café da manhã com a filha, sem coragem para lhe falar que passaria desta para melhor. Sem muita certeza que a passagem fosse assim tão boa como se dizia — talvez algo dito para a consolação dos que ficavam. Homem culto, professor de Português em escola pública, conhecia inúmeros textos da morte versada em todas as suas possibilidades e expressões, em todos os tempos. Pouco religioso, preferia citar às mitologias egípcia e grega — Osíris, Hypnos e Morfeu — a santos que viessem a lhe dar alento.

Saber que morreria lhe trouxe certa paz e tranquilidade, sentimentos pouco comuns nos últimos anos. Na manhã invernal que se anunciava tépida, pediu para a filha um pouco de dinheiro. Disse que desejava comprar algumas frutas. O salário que recebia da pensão deixava todo para a sábia Sophia administrar, que fazia jus ao nome dado. Viúvo, ela era a luz de sua vida. Sentia-se responsável por ela nunca ter se casado. Intuía que fosse por sua causa, alcoólatra que não bebia há dez anos, mas que antes disso era motivo de preocupação. Uma diversão de final de semana — beber com amigos no Bar do Chico — tornou-se programa diário após a aposentadoria. Decidiu parar quando, embriagado e desconexo, caiu na frente dos ex-alunos em um evento comemorativo de uma antiga turma que o elegera como patrono.

De Professor Carlos, passou a ser chamado somente pelo título. Dos tempos que os alunos se levantavam quando entrava, sua força expressiva impunha esse ritual mesmo depois de cair em desuso nas escolas de relações modernizadas. Aposentado, homem esguio e elegante, preto de cabelo branquíssimo, sua figura lhe fazia parecer uma entidade. Ajudava a aumentar a fantasia em torno de si o uso da bengala, devido ao joelho vago e o chapéu branco — marca registrada dos tempos da escola — mesmo quando moço.

Ciente que morreria, Professor decidiu beber a isso. Ao contrário de tantas vezes em que apenas saudava aos frequentadores do Bar do Chico, quando passava em frente. Dessa vez, tornou seu corpo à esquerda e invadiu o espaço sagrado do balcão de madeira antigo e liso por milhares de passadas de mãos, braços e copos.

Chico, surpreso, o saudou incrédulo. Alguns de seus antigos companheiros de copo presentes tampouco criam que Professor estava sentado junto a eles. Incluindo os três jogadores de dominó na mesa de metal em sempiternas partidas. Chegaram a paralisar por instantes as suas jogadas. Como se há apenas uma semana antes bebesse entre eles, Chico perguntou:

— O de sempre?

— Sim, o de sempre!

Habilmente, Chico preparou em um copo especial — guardado há dez anos — privativo do Professor, a mistura com 50 ml de cachaça, 25 ml de vermute tinto, 25 ml de Cynar, com um twist de limão Taiti. Serviu com reverência ao professor de seus três filhos, homens de bem que o amavam como a um segundo pai. Sua luz desviou vários alunos do caminho do crime, tão comum na Periferia.

Após várias horas de rabos-de-galo, risadas e causos que sabia contar como ninguém — versões adaptadas por ele de histórias da Mitologia greco-romana e de Guimarães RosaProfessor anunciou que era hora de partir. Desacostumado a sentir tanto prazer, embriagado de alegria, sentiu-se preparado para morrer. Ao puxar da carteira, Chico pediu para que a guardasse. Ressaltou que era um prazer servi-lo.

Ergueu-se como se não tivesse bebido nada, o que surpreendeu a todos. Tomou um último gole e deixou um restinho para o santo. Caminhou para a rua pela última vez, com o Sol declinante de agosto no horizonte a lhe conferir tons de âmbar na pele brilhante. Desapareceu no lusco-fusco sem deixar pistas.

Participam do B.E.D.A.:
Adriana Aneli
Mariana Gouveia
Lunna Guedes
Cláudia Leonardi
Roseli Pedroso
Darlene Regina

B.E.D.A. / EMM – E=mc²*

Foto do casarão da Escola Municipal de Música, na Rua Vergueiro, 961, até junho de 2012.

A minha alma apresenta zonas escuras pela qual caminho de vez em quando. Devo supor que não só a mim assaltam presságios de agouros silentes, porém penetrantes. Como também, igualmente, não apenas a mim sinto chegar massas de energia que são transmitidas por pessoas, coisas e lugares. Creio que ocorram momentos dessa natureza com cada um de nós alguma vez na vida, em que sentimos vibrações benéficas ou maléficas que derivam de eventos e indivíduos.

Passei por várias situações em minha vida em que antecipava com a certeza de quem tinha os presenciado fatos que viria a saber, oficialmente, algum tempo depois. No entanto, isso não é algo que aconteça com tanta frequência comigo. O mais comum é que na maioria das ocasiões eu esteja alheio a acontecimentos que se desenrolam diante do meu nariz.

A introdução acima foi para apresentar uma dessas situações em que as minhas antenas apontavam fortemente em direção a um determinado ponto. Desde que comecei a frequentar a unidade da UNIP do Paraíso, em agosto de 2012, alternava a opção de descer nas estações Paraíso ou Vergueiro, sendo que achava mais interessante a última, por poder me desvencilhar o quanto antes da lotação dos trens do metrô de todas as manhãs.

Todas as vezes que caminhava em direção ao prédio da faculdade e passava em frente a um determinado imóvel na Rua Vergueiro, o meu olhar se desviava para a esquerda e eu sentia uma tremenda necessidade de desvendar o bloco que se apresentava por detrás do alto tapume de metal. O que dava para perceber é que se tratava de uma casa antiga, mas que não apresentava nenhum aspecto especial que a destacasse de outros casarões que estavam sendo abatidos na região, um após outro, substituídos por torres de vidro.

Prometi a mim mesmo que usaria alguns dos instrumentos disponíveis na rede para visualizar o local fotograficamente e saber quem vivia ali antes. Por uma dessas situações que não sei identificar o porquê, fui protelando meses seguidos essa providência. O número “1” do “961” chegara a cair e outros detalhes do imóvel se deterioravam paulatinamente. Percebi a urgência de realizar a averiguação, o que finalmente se concretizou em meados de abril de 2013. Pude, então, identificar qual a história daquele lugar que emitia uma carga vibracional que me lambia todas as vezes que eu passava por ali.

Quando acessei as informações, me surpreendi, mas nem tanto. O fato de sentir aquela vibração especial irradiada por detrás do tapume não era vã. Ali funcionou, até junho de 2012, a Escola Municipal de Música. Essa instituição que agora funciona no Centrão, na Avenida São João, foi fundada em 1969. Não sei se operou desde o início naquele lugar. Eu fui aluno, por pouco tempo, da E.M.M., trinta anos antes, na unidade que funcionava na Rua Machado de Assis, ali perto. Talvez fosse a mesma escola, não sei. De qualquer forma, na época que frequentei não pude continuar porque não sabia tocar um instrumento razoavelmente. Talvez nenhum…

Passei em uma prova que foi feita para ser a mais democrática possível. Quem tem ouvido musical, passa com certa facilidade. Segundo a proposta da E.M.M., “A escola tem por missão formar músicos profissionais, com destaque para os instrumentos de orquestra. Atende interessados de todos os instrumentos de uma orquestra sinfônica, além de regência, canto, saxofone, cravo, flauta doce e violão. Os cursos têm duração variável, de 2 a 12 anos, e o ingresso se dá por seleção interna, com inscrições sempre na primeira semana de outubro. Os cursos são gratuitos, e as exigências para ingresso são publicadas geralmente na terceira semana de setembro em edital no Diário Oficial da Cidade de São Paulo. A seleção de alunos é feita em duas etapas, sendo a primeira um teste auditivo realizado em grupo e a segunda uma prova prática individual, frente a uma banca examinadora”.

Dividida em várias escalas de classificação, o sistema de seleção da grade ensino me jogou para o 1º Ano Teórico. Quando fiz a primeira aula, me senti totalmente deslocado. Todos os alunos já tinham conhecimento teórico e sabiam tocar algum instrumento, quase sem exceções, muito bem. Pedi que me transferissem para um patamar abaixo e fui para o 1º Ano Básico. Não era muito diferente da classe anterior. Quando o nosso professor, Mário Zaccaro, foi fazer uma demonstração de notação musical e pediu para que um aluno tocasse algo ao piano, um jovenzinho “debulhou” nas teclas pretas e brancas, de modo que percebi o quanto seria difícil me equiparar àquele pessoal.

Ainda tentei entrar para um dos cursos – me restava o canto – que sabia também ser quase impossível. No dia do teste, o professor selecionador foi muito gentil, me ajudou na postura e observou a minha entonação de “Cio da Terra”, de Chico Buarque, com atenção. Enquanto isso, os outros candidatos se revezavam em peças de Verdi e Puccini. Lá, permaneci um bimestre, tirei a nota mínima na aula teórica (7,0), mas senti que não daria para continuar. Músico frustrado, mas amante incondicional da música e admirador de bons músicos, o meu trabalho gira em torno dessa “raça” diferenciada. São seres especiais, sem dúvida.

Não me admira que aquele lugar projetasse tanta energia para fora do tapume. Lá, foram formados alguns dos melhores músicos do País. Naquele lugar se estudou uma arte que carreia a possibilidade de viajarmos para fora de nós mesmos rumo a planetas formados por frequências harmônicas. Uma arte que privilegia e busca a união entre instrumentos e corpos para produzir beleza. Ali, pessoas conjugavam os seus melhores esforços para alcançar a plenitude em produção de música. E aquele ponto de encontro de força criativa, mesmo depois dos envolvidos no processo terem-no deixado há vários meses, ainda emitia o seu quantum de energia.

Logo após eu descobrir todo o histórico da casa, ela foi abaixo. Desapareceu qualquer traço visual identificador de que ali funcionou um centro de arte. Rapidamente, fora retirado o entulho resultante, tijolos de história enchiam as caçambas. Foi escavada a terra que fundava o casarão que conectava o chão ao lar de cultura. Mais um tanto de tempo, reinará naquele trecho de rua a mesmice visual e a carga energética burocrática e plana de mais um prédio comercial. Não creio que alguém desviará a cabeça para observar mais uma torre envidraçada comum a tantas…

Fachada uniforme e comum a tantas do edifício no local de onde emanava a energia que sentia.

*Texto de 2013

Participam do B.E.D.A.:
Roseli Pedroso
Mariana Gouveia
Adriana Aneli
Darlene Regina
Lunna Guedes
Cláudia Leonardi