Recriação

Ofereço o veículo de Luz
acima do muro.
Para além dos fios.
Na linha do horizonte,
o óvulo solar gesta o seu ocaso.
Como se estivesse Yemanjá
presente no mar celeste,
boia a oferenda da tarde
que viajará até o outro lado do planeta.
Tantas vezes brigamos,
outras tantas, voltamos…
A cada despedida, aprofundamos a voragem,
a cada volta, aumentamos a voltagem…
Somos, todos nós, amantes –
eu, de você,
você, de mim,
nós – em que somos outros – de nós mesmos…
Apesar de viajarmos para fora dele,
amamos o mundo,
amamos no mundo…
Amor fecundo,
amor imundo,
amor sofrido
amor redivivo…
A minha mãe me pariu,
você, mulher, me recriou…
Sou pedaços dela,
sou inteiramente seu…

BEDA / Quando Os Ponteiros Desapontam

Vivemos pelos ponteiros do relógio…
Ainda que sejam digitais,
aparelhos nos apontam o tempo
que com suas digitais
marcam a nossa pele.
Eu não vivo aqui.
Vivo agora.
O marcador do tempo determina o valor?
Se durou pouco, é paixão?
Se perdura, é amor?
Sabemos quanto mais tempo dura,
maior a chance de frustração.
Amantes em série preferem o momento
violento e fugaz
ao gostar longo e em paz…
Amar deveria permitir
se apaixonar pela mesma pessoa, sempre.
E estar permanentemente apaixonado
pelo ato de amar.
Cinco, quinze, trinta anos…
Creio que possamos amar apaixonadamente
as diversas pessoas que são a mesma pessoa
numa única relação,
que é única por ser preciosa.
Se for outro o caminho,
que ao final de tudo,
não falte, ao menos, carinho…

Lunna Guedes / Claudia Leonardi / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Alê Helga / Adriana Aneli

Terapia Hormonal

Benício e Renata se amavam, disso o sabiam, mas a mulher estava passando pela menopausa de uma forma que transformava qualquer diálogo ou decisão do casal em discussões imotivadas. Ou, por outra, tudo era motivo para que viessem as altercações o calor, o frio, o vento, o sol, o latido do Filhote, irmão das crianças que se casaram.

Benício sentia saudade da Renata sempre alegre e positiva, sensualidade exuberante mesmo depois dos 50 anos 30, de namoro inesperadamente encerrado há dois anos com o início dos calores e mudanças bruscas de humor. Situação que piorou após a sua aposentadoria. Quis descansar um pouco depois de trabalhar muito. Quando desejou retornar, o mercado de trabalho havia mudado. Para Renata, o marido-príncipe se transformara em sapo, gordo e sem atrativos, a coaxar lamentos por seu comportamento.

Quando os dois, em um momento de bonança depois da tempestade, conseguiram conversar por meia hora sem se ofenderem, Benício sugeriu e Renata aceitou consultar um endocrinologista para a possibilidade de terapia de reposição hormonal. Renata tinha histórico de câncer na família e ouvira dizer que isso dificultaria um tratamento através desse recurso, que tivera bons resultados para algumas de suas amigas.

Após a realização dos exames necessários, seguida da consulta com o médico, este assegurou que Renata poderia fazer o tratamento sem problemas, acompanhado de exames periódicos para a verificação dos índices hormonais, de quantidades tão discretas quanto fundamentais no funcionamento do organismo humano. Porém, só isso não bastaria para que o tratamento funcionasse. Renata deveria iniciar um programa de atividades físicas regulares, mudança alimentar, corte de carboidratos e lactose etc.

Renata não era inativa, mas não era fã de exercícios físicos. Dr. Coimbra, no entanto, fora tão enfático na recomendação (que talvez nem ele mesmo seguisse, devido a circunferência de sua cintura) quanto aos benefícios como a diminuição do apetite, a melhora do humor, a diminuição de gordura, o enrijecimento dos músculos, a melhora da imunidade e o retardo do envelhecimento, que decidiu se matricular na academia perto de casa.

Na Cuore-Fit, Renata encontrou outras mulheres na mesma condição em que ela, constatada nas conversas entre um exercício e outro orientado pelo instrutor devidamente sarado que as acompanhavam. Não era um rapaz de rosto bonito, mas as proporções absolutamente equilibradas de seu corpo másculo e sua expressiva autossuficiência era o bastante para deixar as suas companheiras alvoroçadas.

Eduardo ou Dado era um profissional sério e sabia que qualquer desvio de comportamento poderia causar estragos em sua carreira há pouco iniciada. Muitas daquelas senhoras tinham idade para serem a sua mãe. Ainda que Renata lhe tenha impressionado por seu sorriso aberto, olhar vivaz e certa candura de menina, nunca passaria por sua cabeça se envolver com ela ou qualquer uma delas. Sentia-se compromissado com Betinha.

Passados alguns meses, Renata, bastante dedicada, progredira enormemente no alcance dos objetivos antes apenas sonhados por quem inicia a atividade física regular. O melhor era ter voltado a se sentir viva como antes, o que Benício agradeceu aos céus e ao anjo Dr. Coimbra. As brigas cessaram, as risadas voltaram a fazer parte do café da manhã e o sexo eventual, procurado por ela, voltou a ser gostoso. Não importava a hora que dormisse, acordava bem cedo e saía para correr ao mesmo tempo que ele saía para trabalhar, logo após ao café da manhã equilibrado entre frutas e alimentos a base de proteína vegetal e suplementos.

Benício não conhecia a importância do outro responsável por Renata ter chegado a essa condição Dado. Aliás, ela sempre evitou citar o seu nome. Tudo por causa de uma prosaica circunstância que demonstrou que o tratamento começava dar resultado, ainda que inesperado. A dedicação e incentivo do instrutor físico em sua melhora orgânica, que nunca deixou de elogiar o esforço e a busca da perfeição na execução dos exercícios, a enrubescia.

Para Dado, Renata representava o resultado material da teoria aprendida na faculdade. E quando o rapaz disse isso para ela, Renata sentiu sua calcinha umedecer imediatamente. Aturdida, Renata pediu licença e correu para o banheiro. Dentro do reservado, se tocou por dois minutos e alcançou um dos orgasmos mais intensos de sua vida. Chegada a noite, buscou o marido para realizar tudo o que pensava em fazer com o moço que a excitara daquela maneira. Foi bom, mas nada comparado ao que sentira pela manhã na Cuore-Fit.

Renata teve medo do que estava sentindo. Sabia que entre os dois não havia futuro, mas a paixão era um abismo tão atraente… A questão era saber se Dado abriria o coração, fecharia os olhos e saltaria com ela. As trocas de olhares entre os dois faiscavam a ponto de serem percebidas por uma ou outra aluna.

Naquela terça-feira, Renata madrugou e chegou antes do que quase todos. Dado foi um dos primeiros a chegar. Quando a viu, ele se alegrou como o menino que era. Gostava imensamente da companhia da mulher que remoçou diante dos seus olhos. Sozinha com ele, Renata conversou leviandades para chegar ao ponto que queria. Perguntou se mais tarde ele não gostaria de almoçar em sua casa, perto dali. Olhar e boca sorriram em aceitação.

Após a aula, Renata voltou para a casa se sentindo uma menina que se apaixona pela primeira vez. Com Benício no trabalho, aquilo que pretendia fazer não lhe parecia incorreto. Em seu pensamento, essa paixão era uma homenagem ao desejo do marido de querê-la bem. Preparou um almoço robusto o suficiente para repor as energias de um jovem em constante atividade. E ela pretendia ajudar muito no desgaste energético do moço parte dos pensamentos que a faziam rir sozinha.

À chegada de Dado, o almoço foi esquecido. Porta adentro, se abraçaram-beijaram como quem precisasse comer após prolongado jejum. Começaram no sofá e terminaram no tapete da sala, sob a observação de Filhote, que deitado em sua caminha, ouvia a sua humana a gemer-uivar, entre risos. Exaustos e excitados, iniciaram conversas lambuzadas, línguas adentrando os lábios. Conversação que durou quinze minutos.

Renata levou Dado para a sua cama. Ela queria que aquele local voltasse a ser o melhor lugar da casa. Totalmente entregue ao forte e atrevido amante concretizou todas as fantasias irrealizadas com Benício. Na sensação mais extraordinária que jamais experimentou, quis morrer naquele mesmo instante, feliz.

De alguma maneira, foi atendida. Depois desse encontro, cheio de promessas e perspectivas, tudo degringolou. Uma das outras mulheres, senhora enciumada do tratamento dispensado à Renata pelo instrutor, o denunciou por importunação sexual. Demitido, Dado decidiu voltar para Catanduva, onde nasceu. Há tempos recebera uma proposta de trabalho de uma academia daquela região que agora se tornara oportuna. Deixar Renata era como se lhe arrancassem o coração. Confirmaria o compromisso com Betinha, a namorada de meninice e tentaria esquecer o amor impossível. Era o mais certo a ser feito. No curso de Educação Física aprendera a suportar a dor do corpo, mas o que estava sentindo não estava nas estudos sobre o desenvolvimento da “mens sana in corpore sano”.  

Ao se despedirem, em silêncio, os dois amantes se recolheram a um canto reservado da academia e se renderam um ao outro, em pé mesmo, sôfrega e apaixonadamente, rostos úmidos, línguas com gosto de água salgada. Ao chegar em casa, Benício encontrou Renata como no auge da menopausa, imersa na tristeza e quietude que normalmente antecedia a tormenta. Ao perguntar sobre o que sentia, Renata correu para os braços reparadores do amor da sua vida e chorou como criança. De alguma maneira, Benício sabia o que estava acontecendo, mas a amava tanto que só queria vê-la feliz. Sem dizer palavra, a abraçou com força.  

Foto por Pixabay em Pexels.com

Amor, Será Que Quero Ser Seu Amigo?*

Amigos?

Duas pessoas que se amam, juntas há muito tempo, têm que tomar certos cuidados um com o outro. Um deles, é manter acesa a chama do desejo recíproco. Muitos dirão que isso não é uma circunstância controlável. De certa forma, concordo parcialmente. Pessoalmente, no entanto, creio que além da boa sorte de continuar a sentir atração pelo parceiro de longa data, algo de base indefinível, deve haver um esforço de ambas as partes, caso queiram permanecer unidos no relacionamento.

No decorrer da vida em comum, devemos nos predispor a ouvir a companheira ou companheiro nos momentos mais cruciais da união; no surgimento das eventuais crises; nos episódios em que um dos dois venha a falhar no cumprimento dos acordos feitos. Nessas situações, devemos controlar o ímpeto para não cairmos nas acusações vazias de parte a parte apenas para ganharmos pontos na rixa. Cicatrizes incuráveis podem sobreviver pelas existências afora, ainda que o casal se separe. O trauma de um relacionamento mal resolvido muitas vezes impede que um ou outro, senão os dois, possam ser felizes em novas relações. Na verdade, isso vem a ser o desejo secreto de muitos.

Porém, outra questão pode ser colocada em pauta — como manter a paixão mútua e ainda ser amigo de sua parceira ou parceiro? Ouço e leio que certos ingredientes da paixão vêm a inviabilizar que a vida amorosa dê lugar ao entendimento e/ou compreensão das coisas mais simples. O ciúme seria um desses componentes. O ciúme é uma emoção que perpassa pela História humana, desde a Bíblia, como no episódio do assassinato de Abel por Caim, a passar pela construção habilidosa da trama de Otelo, por Shakespeare e até surgir como temas de canções populares pelo mundo a fora.

A ser algo tão poderoso, oblitera a visão de quem o sente e devemos tentar domá-lo para que um relacionamento com paixão não venha a desencadear em crimes passionais de menor ou maior gravidade, de corações partidos a peitos rasgados por facas. No entanto, tentar compreender o companheiro, entender as demandas de lado a lado, além de um exercício de engrandecimento espiritual dos pares pode propiciar uma consequência indevida. O tesão talvez seja prejudicado. Essa é uma ponderação polêmica, mas não menos real. Passar de apaixonados e amigos (além de cúmplices) para amiguinhos é uma questão de dosagem bem tênue. Como manter o fogo no olhar a cada encontro, manterem-se amantes impetuosos e enamorados, sem prejudicar a relação de irmandade familiar e vice-versa?

Concluo que essa experiência é pessoal e intransferível. Deve ser vivida sem regras pré-estipuladas e sem adjetivações prévias. É uma viagem que cada casal deve empreender sem medo de ser feliz; sem que um e outro perca a individualidade. Se casais decidem elaborar um estilo de vida que seja mais ameno e sem sobressaltos, que seja. Se desejam manter a flama incandescente de namorados, que consigam alcançar a compreensão do amor sem ferimentos graves. Sem humilhações e a morte de consciências. Caso contrário, não há química que os faça ficar unidos…

Foto por Allan Mas em Pexels.com
*Texto de 2017

Filhos Da Tempestade

O Cristão e a Filha de Iansã
se encontraram em repartição pública.
Em comum, contas atrasadas,
vidas rasuradas,
documentos sem rubrica…
Na sala de espera,
sentados lado a lado,
confidenciaram reclamações –
“maldito governo”,
“febre terçã”,
“longo inverno”…
Sentiram mútua simpatia,
revelaram planos para o futuro,
fizeram confidências,
trocaram telefones…

Tiveram um segundo,
um terceiro,
um quarto,
vários quartos
em encontros…
Sempre furtivos…
Sempre breves…
Segundos era quanto parecia durar
o tempo que dispunham…
A paixão uniu os dois corpos,
acima das crenças
e das certezas…
Quando se confessaram amantes,
intensificaram a fé
em Jesus e em Olurum.
Ela, em devoção pelo bem querer.
Ele, em penitência pelo amor proibido.
A Filha de Iansã nunca dançou tanto no terreiro.
No templo,
o Cristão nunca cantou tão intensamente os hinos devocionais.
Acostumado aos rompantes da índole tempestuosa,
o marido dela aprovou o seu duradouro bom humor.
Acostumada à temperança sexual,
a mulher dele agradeceu ao Senhor
o fogo redivivo de início de casamento.

Até que, um dia, discutiram pesadamente…
Não foi por causa das entidades da Natureza
ou pelo mandamento contumaz de algum versículo da Bíblia.
Mas ciúme e sensação de incompletude,
por não se pertencerem completamente…
Em troca de mensagens,
ele passou por cima de seu habitual comedimento
e se declarou perdidamente apaixonado..
Ela, ao querer puni-lo,
agiu com a frieza de vento junino.
Disse, simplesmente: “Obrigada!”…
Com o peito dilacerado,
ele respondeu: “Por nada! Adeus!”…
Os corações empedernidos,
talvez por vontade de Deus,
não voltaram a se encontrar…
A Filha de Iansã não voltou ao terreiro…
O Cristão abandonou o templo…

Foto por Johannes Plenio em Pexels.com