Arte (Ou Artifício) X Vida

A discussão da vez entre os intelectuais à esquerda e à direita diz respeito ao comercial da Wolksvagen veiculado a partir do mês de junho deste sagrado ano de 2023. Através da Inteligência Artificial, Elis Regina aparece rediviva cantando com a sua filha, Maria Rita. Quanto ao tema, aqui farei o papel de Advogado do Diabo, que consiste em contrapor os dois lados de maneira imparcial (ou quase).

Tirante o fato de que o filme publicitário teve a autorização da família da eterna cantora para ser produzido e publicizado, o efeito causado em uns e outros do público que o assistiu, variou da emoção em rever a sua cantora favorita atuante à indignação por “conspurcar” a imagem de Elis vendendo um produto, neste caso, veículos da fábrica alemã. Algo que, supõem, jamais seria feito por ela. Lembrando ao apoio dado ao Golpe de Estado de 1964 pela montadora.

Há outras razões. A Wolksvagen participou do movimento nazista na Alemanha e nunca deveria ser perdoada por isso. Creio que são os mesmos que escrevem em computadores desenvolvidos com a grande participação da IBM na sua formulação. Para quem não sabe, “a IBM, por meio de suas máquinas Hollerith e de sistemas de cartões perfurados, equipou a máquina burocrática que o regime nazista desenvolveu para prender e matar milhões de pessoas”.

Outro dado é que o uso da IA, através de Deep Fake – em que o rosto de alguém é “colado” a de outra – como ferramenta para o desenvolvimento da peça publicitária, roubando a identidade original. Nada que o Cinema não tenha utilizado desde o início para a criação das ilusões nas quais embarcamos com emoção. Ou premiando atores que se transmutam em personagens históricos. Ou usado como expediente para colocar um candidato à Governador numa cena de sexo e desaboná-lo. Comentário lateral, para certos grupos, isso o ajudou a ser eleito. Como também não é inédito o uso de filtros para mascarar defeitos físicos em fotos.

Outra questão levantada pelos quem reprovaram a propaganda é que a letra da bela canção de BelchiorComo Nossos Pais – era de posicionamento ideológico contrário ao status quo e que não deveria ser usada para vender algum produto. Deixaram de levar em consideração que o contraditório compositor (como qualquer grande artista o é) “se vendia” para continuar vivendo através de seus shows e discos e, portanto, estava inserido no Sistema contra qual proclamava.

Na letra da música há uma passagem quanto à vinda do “Novo”: “Você me pergunta pela minha paixão / Digo que estou encantado / Com uma nova invenção / Eu vou ficar nesta cidade / Não vou voltar pro sertão / Pois vejo vir vindo no vento / Cheiro de nova estação / Eu sei de tudo na ferida viva / Do meu coração…”. É uma composição complexa quanto ao entendimento do que queria expressar.

Ele usava muitas imagens em contraposições aparentemente opostas – o que muito me influenciou –, criando perspectivas que demonstram o quanto vivia o sentimento discrepante do poeta que queria expor o que pensava em contraponto ao meio que explorava a sua arte. Para o Marxismo é uma típica situação conflitante quanto aos mecanismos produtivos e as relações de produção.

Como prestador de serviço em sonorização e iluminação, fui chamado a participar de um projeto em que Belchior faria vários shows num circuito universitário, onde mantinha muito prestígio. Infelizmente, ele já não estava em um bom estado psicológico. Ele ou a assessoria pessoal dele, não concordou com o projeto. Não é difícil de entender o porquê de no final da vida ter despirocado.

Voltando à peça publicitária, eu me lembro de, ainda garoto, ter visto uma propaganda numa revista da bicicleta Monark. Nela, aparece uma bela moça com uma rosa desenhada no rosto, ao estilo do movimento Hippie. Fiquei indignado por terem utilizado um movimento contracultural para vender um objeto de consumo. Com o tempo, vim a perceber que o Sistema utiliza do surgimento de caminhos alternativos a ele para fortificá-lo. É quase como se fosse uma condição sine qua non de sua constituição encampá-los, ao mesmo tempo que aplacam a sua força original.

Para quem me acompanhou até aqui, talvez acredite que eu não apenas perdoo como louvo esse processo como ideal. Não, ao contrário, eu sou um inconformado com os caminhos que a Humanidade encontrou para chegar até este momento e que a levará consequentemente à extinção. A minha filosofia é utópica – o Anarquismo – ao qual muitos tentaram implantar com violência, a ponto dele se tornar sinónimo dela. O meu modelo de Anarquia propõe que o ser humano tenha consciência plena do uso da Liberdade em observância precípua do respeito ao outro. Mas não deixo de observar que as forças que se erguem contra o que acontece dificilmente serão suficientes para reverter o desenvolvimento de tempos sombrios à frente.

O último lance nesse jogo entre permissão e permissividade artística foi o acionamento do CONAR Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – por fãs de Elis, posicionados aqui como consumidores que vem a questionar se é ético ou não utilizar IA com o objetivo da propaganda, apontando questões sobre o “respeito à personalidade e existência da artista, e veracidade”. Questionam ainda que na propaganda da Volkswagen, há a possibilidade de causar confusão entre ficção e realidade para algumas pessoas, principalmente crianças e adolescentes. Creio que este último argumento não condiz com o costume da nova geração ao uso dos efeitos especiais virtuais.

Os Jogos Eletrônicos estão entre os de maior aceitação entre os jovens. Para eles, a realidade simulada é cotidiana e perfeitamente aceitável. De fato, desejável. Quanto mais “real”, maior preferência. Visionário, Belchior antecipou com as polarizações encontradas em “Como Nossos Pais”, o cumprimento do futuro: “É você que ama o passado / E que não vê / Que o novo sempre vem”. Para depois arrematar: “Nós ainda somos os mesmos / E vivemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos como os nossos pais”. Nossos filhos, não mais.

O que constato é que estamos vivendo mais anos, mas com menor tempo de vivência real. Prevejo que a polarização entre as várias questões aqui levantadas deixarão de ter razão de ser. Serão sem sentido porque estaremos muito mais pobres em riqueza cultural.

Nossos Corruptos Favoritos

A 25
Viaduto Florêncio de Abreu


Bem, chegamos onde sempre pensei que chegaríamos – até este momento crucial – o da escolha. Porque, segundo a minha previsão, desvendados os olhos de todos nós sobre como funciona o sistema político-partidário brasileiro, totalmente imiscuído com interesses econômicos voltados a projetos pessoais, sob a denominação de “sociais”, “culturais”, “econômicos” ou de outra ordem, uns e outros que gostam, seguem, defendem e lutam por uma visão ideológica ou por um representante político atuante no cenário atual, começarão a raciocinar segundo a premissa de que, em sendo todos iguais, devemos apoiar nossos corruptos favoritos. Afora aqueles que prefeririam que não houvesse sequer chance de escolha.

Há uns trinta anos, eu e meu irmão, que ainda não éramos sócios em nossa pequena empresa de locação de equipamentos de sonorização e iluminação, fomos chamados a realizar uma espécie de comício. Um vereador, sabedor de um projeto de construção de moradias populares na região da Vila Nova Cachoeirinha, propagandeou que era o autor da emenda e acabou por reunir pelo menos duas mil pessoas em torno de si. Propagou o seu nome, alardeou as suas características de servidor público e revelou que estava a reunir pretendentes ao bendito teto. Eu sabia que não passava por sua intervenção a obtenção da vantagem pretendida por aquele povo que, desesperadamente, começou a se acotovelar para chegar o mais próximo possível do redentor que poria o seu nome na fila. Em determinado momento, temi por nossa integridade física e senti o quanto aquela circunstância era tenebrosa em vários sentidos… Comecei a perceber o quanto a classe composta por nossos representantes era suspeita.

Anos mais tarde, a Ortega Luz & Som realizou uma série de “Showmícios” – mescla de comícios com shows – na região de Guarulhos. O público era atraído pela apresentação de números musicais e, lá pelas tantas, o candidato se apresentava sob tais e quais características, sempre edificantes, a criticar outras visões políticas, diferentes das suas. Nos cerca de trinta comícios que realizamos, visitamos muitas regiões afastadas e me surpreendi com a carência de recursos da segunda cidade em população do Estado de São Paulo e quarto PIB. Era comum encontrarmos muitas crianças com os pés no chão, sem ao menos um par de chinelos para protegê-las das pedras e do lixo em terrenos baldios. Em outro desses showmícios, em reuniões prévias, tivemos que pedir permissão ao chefe do tráfico de drogas da região para que houvesse o evento. Fomos observados à distância por homens armados. O candidato que me contratou não foi eleito, apesar do sucesso de suas manifestações populares. Na verdade, em uma eleição suspeita, apenas um vereador foi trocado na Câmara de Vereadores. Anos depois, soube que como secretário de alguma pasta, o tal fora exonerado por suspeita de corrupção.

Já intuía antes, mas a experiência que tive com alguns homens públicos, me fez ver que não era o valor social de uma ideia que movia o político profissional, mas o quanto ele poderia angariar em repercussão midiática e/ou financeira (na verdade, uma coisa leva a outra). Ficava intrigado a conjecturar a razão que levaria um candidato a gastar um valor tão alto para se eleger, sendo que apenas ao final de seu possível mandato, o salário auferido serviria para cobrir somente uma parte de seus gastos. Talvez, eu ainda acreditasse em espírito público, mas já desconfiava que algo não se enquadrava nas justificativas apresentadas, todas de alto valor moral. Até recentemente, uns doze anos antes, eu ainda lutava para manter a minha fé, mas ficava cada vez mais difícil conseguir o meu intento. Logo lembrei do tema de “Adeus Às Ilusões”, nome recebido no Brasil do original, “The Sandpiper”, filme que eu amo – com Elizabeth Taylor e Richard Burton, conduzidos por Vincent Minelli. Que me perdoem por vincular os seus nomes a um assunto tão penosamente sujo…

A corrupção está no cerne da formação humana. Com o advento da civilização em suas diferentes formas de organização, a dominação do homem pelo homem tornou-se cada vez mais insidiosa. Vimos prosperar variadas maneiras de corromper-se. Caim matou Abel. Somos seus filhos. Após milhares de anos, guerras, revoluções, reis, imperadores, ditadores e mandatários centralizadores, criou-se a Democracia, imperfeita, mas que, ao meu ver, dentre todos os mais diversos sistemas de governo, é a que apresenta a maior capacidade em atender os pleitos dos vários grupos de interesse. Dentro dela, se um desses grupos quer impor sua visão sobre todas as outras, a crer que será por ela que o ser humano se expressará em toda a sua potencialidade, ainda que sem a devida liberdade, já que não deverá haver desvio à conduta imposta, usará de táticas escusas para alcançar o poder. E, no meio do caminho, algo poderá vir a se perder… Afinal, o condicionamento de milhares de anos não se refreia assim tão facilmente.

Em contato com as benesses que o poder propicia, atenua-se o fogo interior que leva um partido e seus membros a buscarem as mudanças sociais para o bem do povo, assim como começa a ser justificados possíveis desvios em nome de supostos projetos coletivos, mas que atendem somente a interesses patrimoniais. É uma estratégia comum atrair em torno de si grupos que defendem causas e bandeiras justas, que acreditam que o Capitalismo seja um sistema de produção que apenas escraviza os seres humanos – corpos e almas. No entanto, não se fazem de rogados em usufruir das dádivas que o sistema propicia, a angariar sinecuras, a administrarem áreas de influências para abarcar simpatizantes e aliados, o exercício do elitismo como padrão.

Desde o advento da República, vivemos neste País um Capitalismo de compadrio, atrasado. Só poderemos superá-lo até chegarmos a algo parecido à socialização da riqueza se, ao menos, alcançarmos muitos dos benefícios que propicia. Da maneira que se estabelece em terras tupiniquins, é predatório, excludente, conduzido por capatazes. Fascinado por Biologia, cedo descobri que perto do predador tubarão, rêmoras se refestelam de seus restos.

Ao meu ver, o principal caminho para potencializarmos nosso desenvolvimento é o atendimento do mais importante de todos os direitos, depois da vida – a Educação de qualidade. Com um projeto de ensino desenvolvido, todo o resto começaria a ganhar corpo. Os planos para melhorarmos a qualidade de vida da população se realizariam com maior sucesso e boa parte de nossas demandas atingiria um melhor nível. Em vez disso, ao contrário de todos os outros métodos já testados como mais eficazes, perdemos tempo em lutas menores, já que a visão dominante deva ser aquela determinada por entidades ou agentes que apenas visam se aferrarem ao poder.

Quando ouvimos certas locuções como “honrar compromissos”, “contrapartidas”, “recompensa de esforços”, bem longe dos pressupostos de equilíbrio social, percebemos que o que é dito para o público externo, a refutar esse termo como denominação de um método inclusivo, a vemos aplicada ipsis litteris nas relações do poder político com o econômico. Quem poderia supor que expressões como “balcão de negócios”, “é dando que se recebe”, “ações proativas”, entre outras, pudessem ser entendidas como ideais para atender as prerrogativas dos membros dos três poderes da República e de seus subgrupos?

Idealmente, sou anarquista. Porém, sei que é utópico que cheguemos ao Anarquismo que defendo, que pressupõe tal desenvolvimento civilizatório que cada um perceba que o seu direito termina onde começa o do próximo, a incluir o uso da liberdade com respeito por toda a vida existente sobre a Terra, sem a necessidade de um governo central que estabeleça a busca do bem-estar público. Apesar de meu idealismo, o que parece restar é a escolha dentre todos os corruptos, os meus favoritos, cair na descrença de que nada mudará. Determinar que não vale a pena atuar na vida pública sem ter que vender a alma ao diabo. Ou, radicalmente, defender uma revolução sangrenta que venha a mudar o caminho que atualmente trilhamos.

Como estudante de História e por experiência própria, sei onde nos levaria revoluções violentas. De fato, segundo minha filosofia pessoal, devemos, verdadeiramente, nos revolucionarmos. Ao darmos a chance para que a Educação de qualidade desenvolva melhores cidadãos, edificaremos a estrutura ideal que impedirá que continuemos a viver essa política corsário, que nos envenena a alma de ceticismo e cinismo.

Que lavemos permanentemente essa sujeira toda!