03 / 12 / 2025 / Carta Ao Velho Que Sempre Fui

Eu nasci velho. Banguela, meu sorriso de menino era de quem suspeitava que as coisas aconteceriam como se fosse uma reprise. Eu, quando comecei a crescer, encarava como se vivesse um dèjá-vu diário. Não era incomum que me imaginasse revisitando situações já vividas. Quando novo, já havia decidido não me casar. Não queria participar de um jogo de cartas marcadas, mesmo porque nunca fui bom em carteado. Aliás, pouco aprendi a viver e a jogar. Cheguei à vida adulta totalmente despreparado para viver sob as regras de um homem maduro. Aliás, quando me vejo em situações de adulto mais velho, como aquele que estou a me tornar, percebo que sou mais sensato do que os que jogam sob as regras do Sistema. A medida é não passar por cima das pessoas para me sentir melhor, como é comum acontecer frequentemente. Tanto no trânsito, quanto nos espaços que frequento como cidadão. Ser homem deveria ser uma vantagem neste mundo, mas como me envergonho muitas vezes de pertencer a esse gênero, tento passar despercebido como tal. É claro que sendo alguém que não se permite deixar de ver as degradações de nosso País, protesto, escrevo textos, converso a respeito, me coloco como antípoda desse processo degradante sob o qual vivemos. Mesmo que soubesse que dificilmente as circunstâncias mudassem radicalmente — estudante de História desde sempre — já tive esperança de que mudássemos de rumo, mas o animal humano não consegue deixar de ser autodestrutivo. É bem possível que essa capacidade nos leve à extinção. O pior é carregar conosco todos os outros seres que compartilham o planeta como residência. Eu sei que podemos desejar nos matar. Já passeei por essa trilha. Sei o quanto podemos visitar a escuridão e o desejo (mas já não mais) de cessar tanta dor.

Registro de 2019, com a presença de Cheetara.

BEDA / A Mariposinha

Deixei um pouco o meu computador de lado e quando voltei havia um pedaço de folha seca sobre o teclado, das muitas das plantas daqui de casa. Quando fui limpá-lo, saiu voando, deixando um pouco de pó como lembrança. Tratava-se de uma pequena mariposa. Do ângulo que eu a vi, a confundi devido à sua cor, semelhante. Isso ocorreu há poucos dias. Há dois dias, eu a encontrei finalmente pousada, asas recolhidas, em repouso eterno. Até que seus átomos se dissolvam e retornem em outras formas de ser-não-ser, coloquei o seu corpo no solo do jardim. Viva, quando a toquei, senti a solidez de um algodão, mas a sua força sei que residia no percurso da sua transformação. De lagartinha a pupa, da pupa à eclosão em mariposa. A origem do seu nome é pura poesia. “A palavra “mariposa” é de origem castelhana e é composta de uma apócope de ‘Maria’ (Mari) e do imperativo do verbo posar (em português pousar), ‘posa’”. (Wilkipédia)

A Vida é assim – alada. A sua companheira, a morte, muito mal falada. No entanto, uma não tem fundamento sem a outra. São imbricadas e complementares. Aliás, eu creio firmemente que a expressão da energia vital não se atem apenas aos seres que se movimentam. Pedras falam tanto quanto humanos. As suas formas de nos contar uma história tem outra ordem. E o sentido de eternidade ganha uma linguagem incomensuravelmente mais ampla. As plantas têm essa qualidade, também. São os seres vivos mais fascinantes que conheço. São organismos que se diversificam em formas e maneiras de se apresentarem quase infinitas. E a inteligência que que demonstram ainda mal mensurada.

Quando aprendemos na escola sobre os Reinos (nome fantasioso e atraente) – Animal, Vegetal e Mineral – descobrimos que eles são restritivos. Aprendemos que o do Seres Vivos apresentam cinco categorias: animal, vegetal, fungi, protista e monera. Há muitos mais. E um certo sujeito chegou a dizer que seu reino não era daqui. Sem querer entrar no mérito do invisível por se tratar de outras dimensões e frequências, a energia vital se espraia por tudo que existe, desde o ponto infinitesimal que gerou todos os universos. E todos podem caber no sentido e compreensão no voo e morte de uma mariposinha. Sempre em direção à Luz, sua sina. E a nossa…

Texto constante de BEDA: Blog Every Day August

Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Bob F / Denise Gals / Claudia Leonardi / Lunna Guedes / Suzana Martins

#Blogvember / Hominhos De Lata

“Entalhadas nas nervuras do corpo ser — semente — flor”, por Nirlei Maria Oliveira, em As Estações

Lembro de ter aprendido na escola que fazemos parte do Reino Animal. Que somos mamíferos, da Ordem dos Primatas, da família Hominadae. Para completar o nosso lugar no mundo, nos autodenominamos Homo sapiens sapiens. Não basta nos chamarmos de homens sábios. Somos além de sábios, sábios por termos desenvolvido autoconsciência, racionalidade e sapiência. Mas não somos tão sábios a ponto de não percebermos que isso nos afasta dos outros seres do nosso reino, assim como do Reino Vegetal e Mineral. A nossa espécie surgiu a cerca de trezentos mil anos e já fizemos um estrago considerável ao nosso planeta. Por nossa intervenção, extinguimos várias outras espécies vivas – animais e vegetais.

A grandeza da devastação provocada pelo Homem à Terra só é comparável a de um Câncer terminal a uma pessoa. Ou a um vírus invencível que infecta um corpo. Ou ao meteoro que extinguiu os dinossauros há 66 milhões de anos. Cedo em minha vida, percebi a nossa conexão com as forças da Natureza. Que o desequilíbrio de forças em marcha poderá finalmente nos extinguir como espécie, apesar de nos jactarmos de nossa invencibilidade. Sem se dar conta que nossa semente poderá um dia não se transformar em flor.

Somos fascinados pelas máquinas que inventamos e construímos. Modernamente, tem sido muito mais fácil nos identificarmos com as suas qualidades do que nos compararmos positivamente aos seres vivos. Sou admirador de árvores e plantas. Percebo que a sua aventada mudez é substituída por demonstrações óbvias de formas de expressão não percebidas. Em RUA 2, cheguei a colocar uma personagem a conversar com uma sábia árvore de uma ilha central da Avenida São Luiz.

Em 2016, invadi o reino inanimado das construções humanas para brincar com a nossa tendência em humanizar carros, ferramentas e objetos de uso pessoal. Escrevi:

“Numa dessas ocasiões, eu estava a caminho da academia, sempre a passar por ele. Desde que o vi pela primeira vez, havia simpatizado com o Hominho de Lata. Porém, naquele dia, algo mais aconteceu – lhe puseram óculos. Pronto! De imediato, me senti identificado. Eu “nasci” de óculos… Ou melhor, não me reconheço sem os óculos, figurativamente… A saber que as coisas mais intensas que faço são na penumbra, sem rejeitar a luz que se instaura…

Ali estava a mim mesmo, consubstanciado – homem que nasceu para ser nuvem, mas que se tornou lata – enrijecido pelos tempos a fora, em pose de quem carrega o peso e a função de sorrir, ainda que o mundo lhe envergue as costas… Boa sorte a minha de tê-lo como companheiro de percurso, a lembrar de minha (nossa) pequenez, Hominho de Lata!”.

A continuarmos a nossa saga de fugirmos de nossas características que nos liguem à Natureza, é bem possível que tenhamos muito maior parentesco com futuristas homens de lata do que com os seres vivos. Enfim, desumanizados.

Participam: Suzana Martins / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Guedes

Histórias de 17 de Julho*

Arrozal, em 2011

“A minha irmã acompanha o programa Sr. Brasil, com Rolando Boldrin, mais uma forma de homenagem à minha mãe, que adorava assisti-lo nas manhãs de domingo. Em certa passagem, o grande Boldrin conta sobre um padre que vê um caboclo adentrar à sua igreja à luz do dia. O padre pergunta ao tal: ‘Veio confessar?’ Ao que o sujeito responde: ‘Não! esperando juntar…’. Agora, eu pergunto: quantos pecados devemos juntar até nos redimirmos, afinal?”

Logo à frente, nesse caminho, se encontra um retiro da Igreja Católica, ao qual eventualmente comparecem grupos de jovens e seminaristas. Eu mesmo, quase ingressei na Igreja como seminarista franciscano. A minha intenção era utilizar a sua máquina para cumprir a missão ao qual havia me proposto ajudar ao próximo e buscar a trilha da humildade e da renúncia. Estudante de História, não desconhecia os desmandos da instituição, onde a Inquisição foi apenas um dos aspectos mais marcantes e cruéis.

Ainda continuo franciscano, mas casado, com três filhas, não participo de agremiações religiosas e faço de minha profissão de fé uma barafunda de ensinamentos de todas as vertentes e cantos do Mundo. A Luz tem muitas perspectivas.

Frida e eu, em 2017

“Não sou Diego Rivera, mas Frida me ama… Neste estranho mês de julho, tenho pensado muito em minha mãe, que nasceu neste mesmo mês, há 85 anos. Ela está conosco apenas em espírito desde 2010. Por uma dessas ‘coincidências’, chama-se Madalena, o mesmo nome de Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, que nasceu na mesma data de 6 de julho, 25 anos antes que a menina Nuñes Blanco. Frida, a minha, tem uma personalidade a ser desvendada por nós, que convivemos com esse ser com ‘olhinhos de avelã’, como dizemos. Todas as ‘nossas cãs’ tem nomes fortes Penépole (de Ulisses), Domitila (de Castro), Maria Bethânia (cantora) e Lolla (Corra) Lolla. São coisas do surrealismo que é viver…”.

Na legenda acima, fiquei pensando no que quis dizer exatamente com a correlação entre os nomes inspirados em artistas e o Surrealismo. Está certo que o movimento se caracterizava pela expressão livre do pensamento, regrada somente pelos impulsos do subconsciente, aparentemente desregrado. Eu me lembro do tempo em que os nomes dos nossos companheiros peludos se restringiam à características físicas que apresentavam ou referências normalmente episódicas. Creio que a crescente sensibilização quanto aos bichos de estimação nos trouxeram para mais perto da naturalização de nossas relações. Ou, segundo eu creio, para a nossa natureza animal ou anímica. Surreal?

O Último Da Espécie*

O ÚLTIMO DA ESPÉCIE

Numa dessas manhãs indecisas – de transição do verão para o outono – que não sabem se se vestem de sol ou se enublam de frio, ouvi a triste notícia. A última girafa branca do Quênia fora abatida por caçadores. Não apenas ela, mas igualmente seu filhote de sete meses. Ainda que o sol de março começasse a se impor a ameaça nebulosa outonal, meu dia escureceu.

Quando garoto, já achava incompreensível meninos competirem entre si para ver quem matava mais passarinhos com o estilingue. Nunca participei de nenhuma incursão e comecei me afastar da ideia de que o ser humano fosse a máxima expressão da vida na Terra.

Por que alguém abateria um ser inofensivo e incomum? Talvez um Mark Chapman assassino que quisesse unir o seu nome ao de uma das pessoas mais proeminentes do planeta. Ser raro é um atrativo suficiente para decretar a sua morte? Apesar da distância física do Quênia, presenciei as quedas dos belos exemplares africanos, vi jorrar sangue dos circunspectos ruminantes, ouvi os últimos batimentos cardíacos dos mais altos dos mamíferos, morri um pouco com eles…

“Cientistas acreditam que a girafa fêmea branca sofresse de uma condição chamada leucismo, que é uma peculiaridade genética, devido a um gene recessivo na maioria dos casos. O leucismo dá uma cor branca a animais que  exibem originalmente uma cor diversa. Podendo se apresentar de maneira parcial ou total, com apenas algumas partes do corpo do animal com a coloração branca. Diferente do albinismo, no leucismo os olhos mantêm a pigmentação normal e não são excessivamente fotossensíveis. Pelo contrário, eles parecem ser ligeiramente mais resistentes ao calor do que os indivíduos normais, porque a cor branca permitiria a maior reflexão da radiação incidente, reduzindo assim a absorção térmica.” – https://extra.globo.com/noticias/page-not-found/unica-girafa-femea-branca-do-quenia-abatida-por-cacadores-24296689.html

O mais incrível é que os dois espécimes raros foram abatidos na Reserva Ambiental de Ishaqbini Hirola, na região de Ijara, no Leste do país africano. O cadáver do animal, juntamente com o do filhote, de 7 meses, foi achado quatro dias após a morte, de acordo com guardas florestais.

“É um dia muito triste para a comunidade de Ijara e para todo o Quênia, disse Mohammed Ahmednoor, gerente de conservação da reserva, de acordo com o Daily Star. “A sua morte é um duro golpe nas medidas tomadas pela comunidade para conservar espécies raras e únicas e um alerta para o apoio contínuo nos esforços de conservação”, acrescentou.

Agora, só resta um espécime desse tipo em todo o mundo. Chego a desejar que fôssemos nós, seres humanos, a estar nessa condição de eminente extinção…

*Texto escrito no início de Março…