Comboio

C

carreadouro passeio de formiga rua de cafezal
corro por entre alamedas virgens de passos meus
violentadas pela indiferença com a qual inauguro mais uma visita
que terá de diferente nessas casas geminadas de famílias iguais?
o céu divisado por um olhar enviesado de sol inclemente
que invade janelas descortinadas e lambe portas fechadas
convidando ao não e ao talvez quem sabe haja
um mar particular quartos e histórias de dilúvios e aluviões
de minas auríferas platinas ou cristais
ou lama açude seco areia movediça pasto duro
salas de piso de antigos tacos que soltam e revelam relevos incongruentes
onde um dia crianças brincaram
indelicada a vida tripudia em vez de grandes planos urde mínimas ilusões
carrega no quengo concomitâncias com o sofrimento dos escravizados
o que era imposto antes agora não apenas é aceito
assim como é desejado – quero que me comprem – me consumam
um motivo para viver para beber para comer para querer para dever
porque eu não me basto como fogo me alastro e destruo o que vem
pelo caminho pelo desvio pelo sentido direção e chegada sem fim
permissão para fenecer expirar todo o ar dos pulmões enxarcados de vazios
desencarno os pés nas pedras hirsutas e candentes de sons inaudíveis
como vozes surdas e suspiros partidos intuo que perguntem
que será que sou
quem estou?

O

onde está que não responde?
dedicação de dez anos me usou fui útil agora passei
página virada curva fechada some no horizonte
o barulho das ondas na arrebentação parece se apequenar
em minha memória de sóis poentes e brisas mornas
areia macia pés de bailarina arcos impossíveis
manobras abissais nesses momentos dançávamos as mesmas notas
o último encontro únicos membros tantos quartos desocupados
eu dormia no catre ao som das trombetas de jéricó
d. pedro que levantava a espada e penetrava no âmago da liberdade
prazer que gemidos confirmavam eu ao telefone
enquanto me engolia edição de fotos que esbravejava
o golfinho como testemunha
mergulho abaixo às aguas transparentes da tarde que morria noite
a lua enluarava como se predissesse que não seria apenas o fim do mundo
mas também dos sonhos de eternidade amor em terna idade
houve momento em que pensou que iria morrer
a imensidão a cercando pouco a pouco como se o céu caísse em si
enquanto os seus olhos esverdeados se agigantavam
rompendo nuvens fendendo camadas alcançando
a derradeira circunferência de onde não mais voltaria
pedi para que lhe visse passar ao menos
tripudia de minha distância enquanto aumenta a dissensão
se transfere para outra dimensão e fico aqui
neste ponto em reticências…

M

mulher que bebeu de minhas melhores emoções refestelou-se
fui intenso fui imenso diante de seu corpo nu mais crescia
mais me apetecia jogar-me do alto do abismo
estive apaixonado uma vitória sobre minhas defesas ao chão
prendeu-me seu sorriso desbocado sem dentes naturais
feito prótese que o tempo tratou de compor mas amava
porque estava você a me beijar debruçada entre as minhas pernas
provando-me entre soluços de choro sentido estávamos finando
em cada tempo que imaginávamos recomeçar
foi como uma descida de um avião sem asas partidas em pleno voo
em dor espiral expirávamos em fogo e riso da lembrança do fauno
com os cascos sobre o balcão que disse: “ele está lá encima”
enquanto a banda marcial executava hinos pátrios
foi assim que adentrou ao átrio
com saltos altos que ouvia desde o corredor
eu a recebi à base de beijos línguas serpenteando seu hálito de cerveja
para tomar coragem de invadir a minha vida de vez
na segunda incursão do dia revelou o presente do primeiro encontro:
“eu amo você!” enquanto pensei ela não precisa de mim para chegar ao ápice
queria estar ali mesmo que somente como expectador
da performance da artista dedicada ao monólogo
o meu corpo como seu palco de atuação teatro moderno a plateia
como coator quase sempre contracenava sendo os outros que de mim saltavam
pelos poros em desespero de expressão como a gritarem – nós existimos!
comecei a sentir o poder do demiurgo
a corromper as minhas ações queria comer todo mundo
mas recuei me assustei como pode um ser empoderar tanto o outro assim?

B

benditos os que amam amar é radicalismo posto em prática
caminho sem volta quem amou um dia amará
para o todo o sempre congelado no tempo será a sua história
tão preciosa quanto dolorosa tão aguda quanto plana
tão simples quanto confusa tão extrema quanto definitiva
feito o ponto final posto na última palavra da última página
de um livro incompreensível que o cupim comeu
feito james joyce caminhando no chão forrado de carvão incandescente
como prova de humildade intelectual
apenas que não ocorre intervenção da mente na paixão é doença cerebral
obliteração dos sentidos os sentimentos invadindo as texturas
e fibras orgânicas as transformando em vetores sinergéticos
para entregar à oblação oferta em sacrifício no altar do gozo
tão fátuo quanto viciante desejo de voltar a ter
a mesma sensação da primeira vez viagem sem volta
mas talvez o esquecimento intervenha e venhamos a percebê-la
como cicatriz que coça de vez em quando mais ou menos
de tempos em tempos feito o sangue que passa pelo coração
percorre o corpo todo atinge o cérebro e repercute em algum ponto
da pele dedos cotovelos peito costas barriga coxas e entre as coxas
nada que uma das mãos não resolva…

O

ondas do mar invadem o meu peito atravessando as vértebras
e banham o meu coração de saudade ainda que não acredite nela
como algo que denota falta mas é presença na ausência
quando os meus pés ultrapassam as linhas aquosas fronteiras
entre as matérias me integro me entrego me torno água
perfuro fluo seguro o ar fecho os olhos as três dimensões se dissolvem
me santifico batizado pelo sal renovado as avarias lavadas retificadas
as pancadas silentes dormentes silenciosamente se curam
abençoadas pelo sol clemente beijando a minha tez indígena embranquecida
eu sou transfigurado pelo elementos desde a areia para a areia
não persigo mais a redenção pessoal sou redimido pela falta pelo vazio criativo
prestes a ser preenchido de nadinhas maiores e menores incisivas perfurantes
duras feito diamantes ainda a serem lapidados tudo me interessa
ninguém me acolhe me sinto só com o tudo a me costurar o mundo nas costas
carrego feito sísifo de quinta categoria o peso que rola a montanha abaixo
me cristianizo ofereço a outra face para que o sistema me esbofeteie
organizo a minha dor uma de cada vez em uma fila da qual não vejo o fim
porque redivivas sorriem como bebês satisfeitos após a mamada
espero que adormeçam para que continue a subir o morro
e morrerei curioso para encontrar a substância ou a escuridão abstrativa
isso é encontrar ou se desencontrar?
sei que irei para alguma cadeia molecular de carbono
ou que talvez integre átomos que se perfaça em flor
definitivamente serei deus…

I

independência não existe fome sim dependemos de nos alimentarmos
para sobrevivência isso nos torna fracos se dispersos egoístas
unidos podemos fazer tudo como destruir o mundo que nos nutri
mas criamos estratégias de dependência dos mais fracos a um sistema
abjetamente os despossuídos se integram ao paraíso como serviçais
tocam mas não podem possuir
cheiram mas não podem comer
veem mas não podem desfrutar
alcançam de forma indireta a fruição da possibilidade
isca lançada servem aos senhores dos meios e dos fins
a terra inteira destruída em nome do poder de alguns
até esses dependem de que a ilusão perdure para que continuem
a serem mandatários no entanto se todos tivessem os mesmos recursos
o planeta não suportaria tamanha pressão sete gaias não aguentaria
a demanda da podre riqueza feita de guerras messiânicas
acionadas de forma mecânica
para o aumento do fluxo sanguíneo que alimenta a sociedade organizada…

O

ocasional o meu futuro o meu presente é solidificado
sou o que sou ainda que não me conheça por inteiro
estou em construção e desmantelamento
agrupamento e dispersão
desencaminhado e perseguido por minhas dúvidas e questionamentos
continuo em contínua inconstância traço de causa consequência coerência
cansado de não perseverar não vejo saída a não ser prosseguir a ser
observador da vida que passa passo junto perpasso par e passo
sonhando ser pássaro em revoada mas fazendo parte de um comboio
acorrentado a vagos vagões viajando em trilhos sem rumo aparente
sabedor de minha nossa exiguidade não me sinto perdido
a não ser em mim sem sins jardins jasmins e festins
não sou enganado porque não estipulo cláusula pétrea para nada y nadie
mas carrego um traço de inocência que me deixa surpreso com muita coisa
coisa é algo incomensurável indizível coisada se acredito
acredito que a vida é um milagre seja sob que forma for
sem aforismos ou regras apenas fruição
se oro é para o deus mudança transformação transmutação
locomovido em locomotiva desgovernada maquinista despersonificado
me sinto como se fosse uma novidade no universo sem encarnações anteriores
mas com um fim consciente num tempo indeterminado pelo destino
se pudesse nomeá-lo que nome daria:
sorte de principiante?

Foto por Jalitha Hewage em Pexels.com

Três Dias Fora Do Tempo

Calendário Lunar do Século XVIII (Wikipédia)

A moça seguia
o calendário lunar.
Adepta de magia,
a cada ciclo a se encerrar,
vivia fora do tempo, três dias…
Sua jornada coincidia
com as fases da Lua,
sua amiga e confidente,
doidivana e consciente
de tudo e de nada —
aspectos plenos de suas limitações
e incongruências…
Encontrou nesse intervalo,
alguém que a amou.
E ela também amou a quem encontrou.
Mas ele não a entendia.
Queria que as coisas
tivessem sentido,
mas o sentido
que ela tinha não era o seu sentido.
Ela acreditava
que o que se sente não é conforme
ao Tempo disforme,
particular e diverso,
pessoal e intransferível —
átomo e universo.
Três dias fora do calendário
em que podia amar a quem quisesse
e logo após deixaria,
sem se ater que quem a tivesse
por tão pouco tempo,
pelo resto da vida a levaria
na lembrança
de todos os seus sentidos…