24 / 06 / 2025 / Minta

eu desejo que minta
diga que me quer tomar por inteiro
neste abrasador janeiro
pela última vez neste quarto de quinta
que sujamos os lençóis de fluidos
seres que somos — excluídos
não fazemos conta na multidão
somos dos últimos os derradeiros
aqueles que ninguém gosta
ainda que queira ser percebida como distinta
desista
não gostou quando lhe comparei a uma gimba
de cigarro fumado ao meio
é que não estava presente quando o homem
em andrajos a encontrou jogada no chão
junto ao muro
e em um tênue murmúrio
a desejou entre os lábios
a aspirar sua fumaça cancerígena
perguntou a mim que passava por ele
se eu tinha fogo
se decepcionou quando eu disse que o meu fogo
ardia apenas no coração
praguejou: “caralho, você é mais maluco que eu!”
ficaria feliz a me juntar a ele e esquecer de mim
viver a andar a esmo sem rumo sem destino
em desatino
longe de mim de você que vive em mim
mas agora quero apenas que minta
que finja que simule gozar para mim
que se sinta tão limpidamente suja
como a puta que se vende por pena pura
e sequer dinheiro fatura
se assim for então nunca mais me verá
jamais passarei de novo por perto de sua presença
sei que não sentirá a minha ausência
mas quem sabe sinta uma espécie de vazio
como um calor tépido de uma febre que se perpetua
a fome de algo que lhe caiu bem mal
talvez sinta falta do pavor que lhe causava
como o gosto de sal na comida rala
ou uma topada que lhe lembrava que a dor não é opcional…

Foto por Aleksandar Pasaric em Pexels.com

02 / 05 / 2025 / Só, Mas Acompanhado

caminho só mas acompanhado
circunspecto
quem bem eu quero não está por perto
sei que ela pensa em mim
assim como penso nela sim
em nossos encontros esporádicos
erráticos
arrancados feito saborosas goiabas no pé
aos quais nós comemos até o caroço
deixamos os lençóis em alvoroço
passeamos sem culpa por avenidas e ruas
baixo a sóis e além de luas
quase alcançadas mas nunca vivenciadas
quem sabe um dia?
enquanto isso nos servimos de ambrosia
para mitigar da distância as dores
para nos alimentarmos de sabores
saudosos de beijos e ventanias
que nos abatem por onde formos
porque somos o que somos
a soma de desejo e paixão
e bem querer em demasia
em cortejo de procissão
adoradores do coração
caminhantes e amantes
se quero uma vida alternativa a que tenho
vou em frente não me detenho
sonho e componho
na ausência do toque de sua boca
um poema que me acompanhe…

Foto por Vika Kirillova em Pexels.com

O Preço da Saudade

O Preço da Saudade

Um dia depois de retornarmos de viagem, no Natal do ano passado, fui limpar o piso do quintal dos resíduos habituais: poeira, cocô dos peludos, seus pelos, folhas, ramos, muitas mangas – inteiras ou chupadas. Quem não viu um cão chupando manga, se sentirá decepcionado, principalmente se for um que se deixa levar por preconceitos. Talvez pinte até certa inveja ao perceber o quanto é hábil no mister de deixá-la limpa até o caroço.

Em uma das casinhas, encontrei um dos meus sapatos devidamente “customizado” por algum dos cães, dos quatro que ficaram em casa – Bambino, Domitila, Dominic e Arya. Lolla ficou com a “avó” e Bethânia foi conosco. Além do sofrimento normal de ser apegada a nós, ela fica transtornada com os fogos que insistem em espocar em uma data que deveria ser de silêncio e reflexão – utopia minha.

O par de sapatos foram deixados em uma mureta para serem limpos na cobertura onde fica a lavanderia. Encontrados, foram usados para brincar, acalmar os nervos e, eventualmente, mitigar a saudade. Por eliminação, suponho que tenha sido um dos mais novos – Arya ou Bambino – eles têm folha corrida de antecedentes. Domitila não tem esse costume e a preferência da Dominic é roer panos e cobertores. Ela chega a retirá-los todos das casinhas e roê-los com gosto até ser advertida. Porém, não é o caso de encontrarmos um “culpado”.

Todas as vezes que nos ausentamos por mais tempo, temos que montar uma rede de assistência para que os bichos sintam o menos possível a nossa ausência. Nesta oportunidade, foi o meu irmão, Humberto, que os alimentou e cuidou para que tivessem atenção e a presença humana. Na noite de Natal, pedi para que deixasse a porta da sala aberta para que se sentissem mais abrigados e confortáveis. Bambino, que tem histórico de refugiado, segundo o Humberto, tremia inteiro a cada rojão estourado. Domitila também sofreu bastante. Em jogos de futebol, é comum ela associar o som do locutor a gritar “goool” a fogos explodido e começar a arranhar a porta para entrar.

Nós, da parte humana da família, nos sentimos responsáveis pelo bem-estar dos nossos cães. Qualquer afastamento tem que ser programado e ponderado de modo que não inflija tanto desgaste. É o preço a se pagar ao nos tornarmos cuidadores desses seres inigualáveis. Quanto ao valor do sapato, por maior que seja o prejuízo material ou o dinheiro gasto, será amplamente compensado pelos ensinamentos que nos proporcionam de fidelidade, para além das demonstrações de amor e carinho.

BEDA / Auto

 

Auto

Vivemos frequentemente situações que condições externas nos impõe restrições de movimentação e de visão. Em uma longa viagem de ônibus ou metrô, temos rostos de estranhos postados tão próximos quanto o de amantes. Paisagens repetidas tornam-se, com o passar do tempo, visões de quadros de artistas sem talento. A solução mais ao alcance de nossas mãos, olhos e ouvidos, tem sido nos distrairmos com a leitura de um livro ou, mais assiduamente, utilização de aparelhos de nexos – ou dispersão.

Vez ou outra, podemos até realizar outras ações nas raras vezes que conseguimos sentar. Lembro-me que um dos meus melhores trabalhos na Faculdade de História foi feito, literalmente, nas coxas, na hora e meia que me levou de casa à USP. No entanto, era outra época, no final dos 80, e os trabalhos podiam ser realizados à mão e as distrações  talvez fossem menores.

Estamos cada vez mais vinculados à Rede,  onde quer que estejamos. Se a Nossa Senhora  das Conexões nos permitir, através dos instrumentos eletrônicos de mediação, como celulares e computadores, podemos jogar contra adversários virtuais de países amigos, recebermos mensagens do além Rio Tietê, nos inteirarmos de novidades que temos urgência em sabermos antes que se tornem antigas na próxima hora, ouvirmos canções de amores perdidos-encontrados e conversarmos com pessoas do outro lado mundo, enquanto o próximo ao seu lado está sendo sonoramente ignorado.

Há alguns anos, ao estar ouvindo o noticiário matutino pelo celular, com os fones de ouvido enterrado nos ouvidos, fui facilmente furtado da minha carteira e de outro celular por um heterogêneo bando de mulheres dentro do ônibus. Foi um perfeito trabalho de equipe – enquanto uma das moças impedia que eu avançasse (uma baixinha que mal alcançava a barra de cima) outras duas se assenhoravam do conteúdo da bolsa de couro que usava para ir à faculdade.

Logo que fizeram o serviço, desceram rapidamente, deixando uma bem vinda clareira na área em meu entorno e na minha bolsa. Com certeza, teria percebido a movimentação estranha se estivesse com meus sentidos em alerta. Enquanto recebia notícias dos tumultos na França, a ação perniciosa de algumas pessoas tumultuava a minha vida.

Outro dia, mais recentemente, ao tentar descer no meu ponto, solicitei ao rapaz à minha frente, em voz alta, que me desse passagem. Como ele não se movimentava, toquei em seu braço como se a minha vida dependesse daquela oportunidade e ele me olhou com a expressão de quem estivesse sendo agredido por um monstro. Percebi, de imediato que ele estava com fones de ouvido. Os dois ou três segundos que se passaram nessa “conversa” de sensações, foram o suficiente para que o ônibus fechasse as portas e, célere, saísse em seguida para aproveitar o semáforo sinalizado em verde. Desci apenas no ponto seguinte.

Fiquei plenamente desconcertado com a situação. Na época, havia deixado de usar dos fones de ouvido, desde o furto que sofrera. Ajudou-me a decidir admoestações da minha mulher, que se sentia ofendida com a minha “ausência”, mesmo quando estava em casa. Por um tempo, abri mão daquele instrumento. Voltei a usá-los mais assiduamente nos últimos anos, desde que deixei de atender clientes no tempo devido em algumas ocasiões. Para meu desgosto.

Ao empregarmos o tempo ocioso dessa forma, nos distanciamos do mundo real… ou do que chamamos de mundo real, que eu traduziria livremente como a arena em que jogamos as nossas individualidades. Como contraponto, podemos começar a exercitar a conversa “ao vivo” com quem esteja presente, ali, do lado. Porém, quem se permitiria ser invadido dessa forma por um desconhecido?