#Blogvember / Amanhecer

E meu movimento primeiro é passear pelas ideias matinais (Flávia Côrtes

Voltando do trabalho, com o dia a amanhecer, no centro de São Paulo – uma das faces da Praça da Sé (2011)

Quando estou amanhecendo não estou necessariamente acordando. Muitas vezes, estou indo dormir, nessa lida de horários trocados que é trabalhar para a festejar a vida. Durante um bom tempo, eu que quis ser professor de História, fiquei pensando se o que eu tinha como atividade profissional tinha algum valor para a sociedade. Tratava o meu trabalho com o rigor de um asceta que realmente era.

A alegria alheia não me afetava, principalmente aquela movida pelo álcool. Decerto, bêbados me causavam enjoo. Eu era diretamente remetido ao tempo em que trabalhei no bar de minha mãe. Eu não entendia por que os homens se interessavam por aquelas bebidas de odor penetrante. Apesar de ter acesso a elas, nunca cheguei a me interessar em experimentar uma pinguinha sequer.

Gostava das cores, das texturas, das transparências e dos desenhos das garrafas, mas não ousava colocar em minha boca os líquidos que, mesmo adolescendo aos meus 12 anos, sabia ser o responsável por liquefazer famílias. O mal liquefeito. Nos meus eventos – casamentos, aniversários, congraçamentos, réveillons, formaturas – os abeberados se multiplicam. As máscaras caíam no decorrer da noite, gravatas eram retiradas, saltos altos era trocados por pés no chão, o acanhamento se transformava em atrevimento – “in vino veritas”.

Não foram poucas as vezes que via o sol nascer no horizonte ao me movimentar pela cidade enquanto o meu movimento primeiro era o de passear pelas ideias matinais, concebidas no lusco fusco artificial das luzes robotizadas e eventualmente transformadas em textos. Isso, quando não escrevia diretamente no computador durante o evento, depois que a sonorização ficava afinada. Principalmente após o meu ingresso na Scenarium, tornou-se uma rotina que deu vazão à minha voz inaudível, mas enfim materializada.

O Virgem

O virgem, bêbado…

Aquela foto da foto, de 40 anos passados.

Eu sou aquele que, queimado do sol de praia, sem pelos no corpo, virgem de corpo e alma, expõe a olhos nus sua ascendência indígena, com muito orgulho. Devia estar bêbado. Estava, de fato! Um dos poucos porres que tomei na vida.

Comigo na foto, em sentido horário, segundo a descrição da Tati: Yaimi, dois amiguinhos da Denisete, Soninha, Nadja, outro amigo da Denisete, Maria Inês, eu, Bahiano, Sérgio Taira. A maioria desses personagens se perderam em significado pessoal em minha memória randômica. Com certeza, comparecem em sonhos em que convivo com supostos desconhecidos.

Quem me enviou a foto, Tatiana Zimmermann, irmã da Tamara, era minha colega de classe. Sua família me recebeu muito bem e o garoto da Periferia começou a se sentir mais solto em um meio que não estava acostumado.

Sei quantificar e lembro de todas as ocasiões em que bebi e perdi controle mecânico sobre o meu corpo… Declaração estranha para quem alega ter lembranças esparsas sobre várias passagens da vida. Fiquei de porre exatamente três vezes. Em todas as ocasiões — pelo mesmo motivo — queria me libertar dos grilhões de minha timidez em relação às mulheres.

Na primeira vez, aos 15, uma linda moça queria ficar comigo. Estando sóbrio, eu só conseguia olhá-la sem conseguir articular uma sentença compreensível sequer. Bem, é dessa maneira que me lembro. Comecei a beber um garrafão de Sangue de Boi e só terminei quando o sequei. A consequência foi que mal conseguia andar. As últimas imagens que guardo é da moça falando comigo até eu adormecer na rede debaixo do abacateiro. Quando fui até a minha cama, senti o mundo girar em velocidade cada vez maior e apagar.

Na segunda e terceira vez ocorreram em festinhas na casa da Tati e Tamara. Uma outra bela moça, queria ficar comigo. Perguntei porque, já que a havia visto beijando outro rapaz. Respondeu que “não eram os seus braços, não era a sua boca”. Gostei do que disse (ou apenas estivesse desejoso), mas continuava preso. Comecei a fazer todas as misturas que se tem direito — vinhos, destilados e batidas. Iniciado o efeito desejado, cheguei a dançar agarradinho, a acompanhei por corredores em busca de um lugar para ficarmos mais à vontade e, sem sucesso, as últimas lembranças que tenho foram a de cair sobre ela. Carregado para o quarto, senti a minha camisa sendo retirada e ouvir uma última frase: “Nossa, parece o Tarzã!”.

Na terceira vez, sei que bebi muito — provavelmente o da ocasião dessa foto — e acordar (pleonasmo corretíssimo) “soltando os bofes para fora!” Passei dois anos sem poder sentir cheiro de álcool sem ficar enjoado e de estômago revirado. O que ajudou bastante a me afastar da bebida, além da ojeriza inicial à bebedeiras e bêbados que desenvolvi devido aos episódios de porre de frequentadores vivenciados no bar de minha mãe, onde trabalhei na adolescência.

Quanto ao “virgem” do título, apenas anos depois desse episódio deixei de sê-lo. Acabei casando com a moça que cometeu a proeza de me retirar do caminho do celibato.

B.E.D.A. / Maysa

Maysa (Larissa Maciel) canta Meu Mundo Caiu – Série Quando Fala o Coração

O meu pai tinha vários discos de 78 rotações, que eu comecei a explorar por volta dos 12 anos. Em certa ocasião, caiu em minhas mãos um que tinham de um lado “Meu Mundo Caiu” e, do outro, “Ouça”, com Maysa Matarazzo. Lançados no final dos anos 50, em 1973 eu os ouvi como se fossem hinos da melancolia que já começara a se esboçar em minh’alma juvenil.

Quando a audição de cada uma delas beirava a dúzia, os meus pais pediram para que eu parasse, “pelo amor de Deus!”. Desde então, os olhos verdes de Maysa se tornariam dois dos meus faróis. Por eles, passei a explorar esse lado gostoso da fossa de amores que eu nunca vivera.

O primeiro clipe que postei aqui é da série televisiva “Quando Fala O Coração” (2009), escrita por Manoel Carlos e dirigida pelo próprio filho de Maysa, Jayme Monjardim, que nela decanta os seus dramas pessoais e revela a força de quem ousou desafiar os limites impostos às mulheres à época que vivia. O segundo foi uma participação em um filme de 1958, o que era muito comum acontecer para divulgação de lançamentos dos artistas de então.

Após a sua “descoberta” por mim, acompanhei com sofreguidão todas as vezes que surgia em nossa televisão em preto e branco. Então, já vivia uma fase de decadência em sua voz, cada vez mais rouca devido aos excessos com bebida e cigarro. O que não impedia que continuasse a amá-la, como ainda a amo, mesmo depois de seu passamento, em um acidente em janeiro de 1977, ao perder o controle do Fusca que dirigia em alta velocidade na Ponte Rio-Niterói.

1977 continuou a ser difícil para mim. Em agosto, Elvis Presley morreu (ou não) e Charles Chaplin descerrou as cortinas em dezembro do mesmo ano.

Participam do B.E.D.A.:
Lunna Guedes
Adriana Aneli
Mariana Gouveia
Roseli Pedroso
Darlene Regina
Cláudia Leonardi