como se entrasse num labirinto dei de me perder nos olhos dela parece que me tragavam para dentro de um mundo novo perdido em antigas tramas de atração fatal embarcado em nau amarrado ao mastro central ouvia como que um canto de sereia em calmo mar da boca que movia os lábios como se fossem ondas de luz das águas profundas de seu olhar meu coração batia como se montado em corcovo de indomável cavalo selvagem em campos de pleno sol bastava ver bater os cílios de seus olhos em miragem de morte como se buscasse sugar a minha seiva de depauperada árvore que tomba como se tivesse cortados caule e ramagem forças naturais que se avultam em poder e vingança ao mundo que tenta destruir a vida que palpita no meu peito de homem velho parte daqueles que sangram o sangue de escuro vermelho marcando o chão da estrada na caminhada da terra de perdido brilho…
Quem partiu, em verdade, não se foi… Apenas não os vemos porque a cortina de nuvens criada por nossa mente impede que vejamos o brilho do Sol espiritual…
Cauby Peixoto, se apresentando no antigo salão social da S.E. Palmeiras, por ocasião do aniversário do clube, em 2005.
Grandioso. Estrela no palco. Protagonista na vida. Voz cristalina, mesmo com o corpo envelhecido e alquebrado. Donde suponho que a sua voz incrível não era daqui. De onde quer que ela tenha vindo, voltou para onde veio… A minha mãe brincava que poderia ter sido o meu pai… Por vários motivos, sabemos que seria impossível…
Mas Deus me deu a oportunidade de estar algumas vezes com ele, ouvindo-o de perto, através do meu trabalho. Uma de suas características era falar bem baixinho quando não cantava, tanto para se comunicar quanto para se fazer ouvir entre as canções. Na ocasião da foto acima, um dos espectadores reclamou que a sua fala estava quase inaudível, ao que respondeu que não era nossa culpa, mas porque ele tinha o costume de preservar a sua voz o máximo que pudesse, a não ser quando cantava. Para ouvi-lo no camarim, tínhamos que nos aproximar bastante devido a essa precaução.
Outro de seus costumes era o de chamar de “professor” a cada um dos colegas de trabalho – incluindo músicos e técnicos – equiparados num título de deferência. Educado e apesar de no final de sua carreira estar perdendo a audição, não saía fora do tom equilibrado. A minha admiração por ele crescia conforme o tempo o debilitava, ainda que mantivesse a excelência no canto. Provavelmente um artista de ouvido absoluto, num projeto do qual participei, observou discrepâncias nos arranjos que estavam sendo montados para os shows. Foi a única ocasião em que o vi se alterar um pouco, ainda que mantivesse a elegância.
Que seja bem recebido de volta às outras estrelas, ao brilho que tentava reproduzir em suas roupas. Obrigado por compartilhar conosco da sua magia, Cauby!
*Texto de 16 de Maio de 2016, por ocasião do passamento de Cauby Peixoto, um dia antes, aos 85 anos.
Sentado numa cadeira na varanda, esperava o entardecer avançar sobre nós. Ansiava que nuvens, que até então não se faziam presentes, viessem a adornar o crepúsculo de final de outono. Sempre a provocar excitantes e variadas formas como pano de fundo que avivam a imaginação. Uma brisa fria me deixava desperto ainda que o Sol intenso me forçasse a fechar as pálpebras-cortinas do palco de 80% da minha percepção sensorial. Sobre elas, a luz dos olhos meus não competia, mas adivinhava o brilho daquela estrela que emprestava o calor gerador da vida na Terra.
Observar o entardecer era um ritual que repetia sempre que estava em casa, mas que consegui exportar para outros lugares sempre que o tempo e o horizonte aberto me permitissem presenciar o efeito da revolução terrestre que — cotidiana e silenciosamente — ocorre sem que os seres que se dizem inteligentes a sintam. Sapos, tubarões, viúvas negras, borboletas, abelhas, alces e elefantes, golfinhos e beija-flores a sabem por uma questão de sobrevivência. As aves, seres revolucionários, descendentes diretos dos senhores do planeta por milhões de anos — os dinossauros — a conhecem para poderem migrar de um ponto a outro do hemisfério ou até entre os hemisférios. Baleias, salmões e tartarugas a usam para encontrarem o lugar ancestral para procriarem. Resta a mim, como um mísero animal ignorante dessa sofisticada ciência, aplaudir os ocasos como mapas de percurso.
Como era sábado, outros rituais humanos menos silenciosos que o meu, principiavam. Para além do estímulo visual, a audição ganhava preponderância. O som de gêneros musicais diversos e seus praticantes — forrozeiros, sambistas, sertanejos e funkeiros— competiam para ver quem venceria uma batalha perdida. Era como se para se deslocarem da vida comum necessitassem de colossais massas sonoras para se transportarem. O Sol, tão distante quanto pode ser um astro-rei, se despregava de seu ponto ilusório até outro. Abstraído-encantado, me ausentava de onde estava, surdo para as brigas de casais, o molejo da morena, as descidas até o chão e arpejos de sanfoneiros — verdadeira barafunda de acordes em desacordos.
Mal pude acreditar quando pela chegada discreta da nebulosidade e do vento alto que a dispersava, a visão do entardecer se transformou em obra impressionista, em que fios de cabelos luminosos vangoguiavam a paisagem. Por mais furioso que tivesse o volume sonoro, nada impedia que me sentisse embevecido pela Natureza a reproduzir na tela rota da Periferia de Sampa, pinceladas do triste e belo pintor holandês, ao ritmo do pancadão.
*Blogagem Coletiva Tema: o que faz brilhar seus olhos?
Em 2020, entre o equinócio do Outono, que se deu em 20 de Março, e o equinócio da Primavera, que se dará em 22 de setembro, o Brasil viveu e vive a experiência da Pandemia da Covid-19, causada pelo novocoronavírus. A previsão macabra é que no próximo equinócio alcancemos a marca de 140 mil mortos pela gripezinha, como um dia nomeou o pandêmico J.M.B., atual presidente da República Federativa do Brasil. Enquanto isso, os dias passam como se fossem iguais, mas irregulares, como se fora um sonho perplexo-randômico-estático a cada dia que amanhece, entardece e anoitece.
Sol de verão nos últimos dias de Inverno. Alijei seus efeitos luminares na fímbria do mar-preto-do-morro. E eis que se vê a mostra um crepuscular Sol da meia-noite deslocado de seu tempo. Absoluta bola avermelhada de fogo cristalizada.
Júpiter e Saturno se apresentaram em conjunção visual com a Lua nos últimos dias de Agosto. Astros distantes entre si, brincaram unidos no firmamento. Ausente um equipamento que pudesse captar a majestade do momento, registrei o brilho lunar emprestado do Sol entre folhas de bananeira e goiabeira, como se fosse uma fruta de luz.
Dias secos. Minhas plantas clamam silenciosamente por água. Eu, que tenho ouvido vozes inaudíveis para muitos, as compreendo e as banho com o líquido vital. O rejubilar das folhas se me assemelham a aplausos. Com a espada d’água, as reverencio.
No equinócio do Outono, eu estava no litoral sul de São Paulo. Foi decretado o fechamento das faixas de areia, o comércio, o funcionamento de pousadas e hotéis e foi impedido o translado entre as cidades. Fiquei preso junto à imensidão do mar. Após retornar a Sampa, voltei outras vezes para a Baixada. Por algum motivo singular, a visão da Serra do Mar — a Muralha — vinha a ganhar um significado inaudito.
Despudoradamente, os sapatinhos-de-judia se abrem também à noite. Ao sair para o quintal, uma delas me encara como cara de quem não sabe o quanto é atraente. Ou apenas dissimula a sua inocência para oferecer beleza íntegra, a narcísica flor.
Forçado a deixar de trabalhar fora de casa, passei a ser uma “dona-de-casa” modelo. Ou pretendi. Sei que o termo usado entre aspas carrega o peso de uma função que no patriarcado significou o máximo que uma mulher poderia alcançar como status social. Tirante as “donas-de casa” que tinham empregadas domésticas. Neste período pandêmico, as tarefas caseiras que fazia para ajudar, tornou-se minha função primordial. O que sempre acreditei, se confirmou: a louça se reproduz incessantemente.