A Camisola

o descaso distancia as pessoas como se vivessem
em mundos diferentes
não quero que esse descaso me abrace
a ponto de viver longe de mim
quantas vezes não me surpreendo em me rever
diferente do que imagino ser?
se eu perdoo qualquer um ao se sentir impróprio
não devo me perdoar?
o que sinto é uma tremenda compaixão pela fraqueza
ou isso será capacidade de ser fiel à mim mesma?
para isso acontecer fiz um caminho penoso mas muito simples
não mentir para mim foi o primeiro passo
mas não deixo de desejar estar com outro
nele visto a fantasia como se nascesse com ela
a minha pele a lavo e a perfumo
estendo a camisola de seda que vestirei
leve como o ar que respiro
no quarto escuro
é quando vejo melhor abraço a minha fantasia
passearei com ela pela madrugada afora
a de hoje é de estar com dois
sei que farão o que me dará prazer
luminescentes vibram ao meu toque

separo três taças de vinho
levanto a camisola
e os deixo tocar as minhas reentrâncias
brinco com a possibilidade de me evitarem
de meu braço se distanciar a minha mão não tocar
o sino que me acordará para o gozo
quero fluir em rios de aventuras
meus brinquedos são melhores que homens
preocupados em serem dominadores
em troca de carinhos
eu era estuprada e fingia orgasmo
quase sempre

quase sempre
respondia com beijos desencarnados
salivados em seus paus desidratados
logo queria que fossem embora
que me deixassem só mais só
do que quando me encontravam
desisti de me entregar a estranhos seres
morfologicamente machos
instintivamente monstros
preferi me tornar só minha…

Foto por alirezamani wedding team em Pexels.com

BEDA / Scenarium / A Criança Que Eu Fui… Sou!*

A criança que eu fui… sou! Aos quatro anos (?)

A criança que eu fui sei que está aqui em algum lugar de minhas fibras corporais e frequências mentais. De vez eu quando, eu sonho a criança e, outras tantas vezes é a criança que sonha a mim. E ela me sonha um homem melhor… São os melhores sonhos que eu-ela-nós temos… No entanto, ainda que eu a deixe aflorar no adulto (eufemismo para um corpo velho) que sou, a tornar o meu olhar mais poético, quero preservá-la dos ataques da realidade insana que insiste se abater sobre nós. Tento recolhê-la a um canto de mim e peço a ela que se esconda. No máximo, observe. Mas como é curiosa e criativa, inventa(mos) versões fantasiosas sobre tudo o que nos rodeia. Tenho apreço e saudade dessas histórias. Porque mostra o que fui e sou de mais puro.

O menino contador de histórias era pobre, mas tão rico! Muito mais rico do que eu sou agora, ainda que consiga pagar todas as contas e possa comprar brinquedos de adultos como os que considerava impossível ter um dia. Porque para ele-eu-nós estava claro que viveríamos no limite dos gastos básicos, em nossa casa de piso de “vermelhão” e janelas de madeira, a puxar água de poço, a tomar banho de canequinha a base de sabão de côco, com água esquentada na laje pelo sol, a expulsar os cavalos que insistiam em comer a cerca de bucha, a cuidar de galinhas e patos.

O adulto tem consciência que deve manter a criança viva a qualquer custo! É uma luta inglória, pois se até o adulto mal consegue manter a sanidade diante de tantas solicitações… “Não seja infantil, Obdulio!” – é o que me dizem quando o adulto não sabe lidar com os assuntos “importantes”. Os assuntos que são grandes demais, segundo a avaliação de tantos, me causam estranheza. Cumpro as regras, obedeço ao ritual e, nesses momentos, me sinto falso, me traio… Mas são nesses momentos que o menino me salva… É quando vejo a criança surgir ligeira e suja de lama a correr pelos gramados-terrões recém-molhados-enlameados pela última chuva, a jogar bola, a empinar pipa, a sorrir contra o vento, a ouvir a voz de minha mãe – mais viva do que nunca! – a ralhar comigo… Nesses momentos, me torno um ser mais íntegro… Eu me sinto integral…

*Texto de Outubro de 2016, em crônica publicada pela Scenarium.

BEDA / Participam: Cláudia Leonardi / Alê Helga / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Darlene Regina