Careca

Nasci no início dos Anos 60. Vivi, garoto, a efervescência do movimento da Contracultura. Entre as miríades de transformações, esse tempo foi marcado pela rebeldia contra o Sistema Capitalista e da busca de filosofias que pregavam o desapego material. Uma das consequências visíveis foi alteração do modo de comportar-se, vestir-se e apresentar-se à Sociedade, influenciado pela postura Hippie de ser. Filosofias, roupas e badulaques à parte, no aspecto visual, o que mais me marcou foi o cabelo. Desde cedo, deixei os meus crescerem. Durante 40 anos, deixar o cabelo comprido servia como marca registrada de alguém que eu queria preservar e homenagear – o rapaz que queria mudar o mundo.

Desde os meados anteriores aos cinquenta, passei a cortar os cabelos bem rente. Não deixei de querer deixar um mundo melhor para os que vierem depois de mim. Tendo já criado as minhas filhas, as preparando para enfrentar o Patriarcado de cabeças erguidas, quero que os meus eventuais netos (os netos de qualquer um) venham a viver um planeta Terra mais equilibrado – ambiental, social e economicamente. A minha luta continua, mas não mais com o meus antigos e longos fios. Agora, careca, com a quantidade de cabelos cada vez mais reduzida e com o que resta embranquecido, continuarei a ostentar a minha rebeldia contra o Sistema. Ainda que esteja careca de saber que não verei um País melhor antes de morrer…  

A Cabeleira

Eu e meu irmão, Humberto, em Matão, no início dos 80′.

Sempre fui uma pessoa passadista. Desde garoto, gostava de viajar por tempos idos, buscando e encontrando a minha identidade em outras épocas. Isso não me impedia que fosse para um futuro imaginado. H.G. Wells, Monteiro Lobato e Júlio Verne, entre outros, além de filmes de ficção científica, me descolocavam para outros lugares e idades imaginados.

Lendo muito, visitei versões de Grécias, Romas, Pérsias e Egitos. Decidi fazer o curso de História, ao mesmo tempo que era atraído por Filosofia, Psicologia e Sociedade. Definitivamente, eu era um sujeito de Humanas, ainda que os números me fascinassem. Apenas porque me eram incompreensíveis. Embora, perfeitos per si só.

O fato é que quase nunca estava no Presente e no mesmo Espaço do meu corpo. Ausente das pessoas, passeava distraído da minha própria presença, numa espécie de alienação que me custou lembranças apenas resgatáveis por imagens e relatos de terceiros. Como nesta foto em que estamos, meu irmão e eu, na praça central de Matão, para onde fomos para rever terras que foram da família adotiva de meu pai, no início dos Anos 80.

Os meus cabelos desgrenhados tentavam tanto refletir os ecos cada vez mais distantes do movimento Power Flower, como denotava a influência do movimento black. Eu era atraído pela Soul Music e o R&B norte-americanos, bem como pelo samba-rock, uma vertente brasileira do Funk de James Brown, que também apreciava.  Chegava a usar garfos para pentear os meus fios, assim como no banho, os lavava com sabão de coco, baixava a cabeça e deixava a água cair para os deixar encaracolados.

Porém, outra utilidade da cabelereira era me proteger. Sentia-me normalmente desambientado e em contrapartida não fazia nenhuma questão de me entrosar. O que o futebol com os amigos e colegas de classe contrapunha para que não fosse uma situação mais grave. Ligado à espiritualidade oriental, o meu desejo sempre foi o de transcender em vida. Um erro, já que a minha evidente inexperiência se transformou em profunda inaptidão para a vida prática. Mas talvez por minha aparência alternativa, chamava a atenção. Os meus sempiternos óculos ajudavam a bloquear olhares que o manto peludo deixava apenas entrever.

Para evitar possíveis gozações, mantinha uma postura marrenta e um tanto distante. Enfim, um rapaz esquisito que amava as mulheres tanto quanto fazia questão de mantê-las afastadas. Sentia-me inseguro quanto ao que dizer e quando falava alguma coisa, receava que fosse inadequado por não usar o jargão cotidiano da turma. Afinal, Machado de Assis era o meu escritor favorito e volta e meia utilizava termos que os olhares denunciavam incompreensão ou estranhamento jocoso. Que fosse considerado estranho era menos doloroso do que me acharem doido ou, pior, causasse dó.

Consegui ultrapassar todas essas barreiras erguidas por mim mesmo e chego até aqui podendo versar sobre essa época em que estava sempre por um fio em minha sanidade. Não no sentido de loucura, mas de saúde mental mais prosaica – ansiedade – que descobri que tinha desde pequeno, além de “crises existenciais” seguidas por saber que não conseguiria me contrapor ao Sistema. Quando decidi abandonar o projeto de me tornar Frei Franciscano, empreendi o caminho de cumprir o destino de pai de família, microempreendedor e, finalmente, escritor. Pertenço ao Sistema ao qual sempre defenestrei, mas sei que com amor tudo pode ser diferente.

BEDA / Anti-Sinais

sinais são importantes
a eles devemos ficar
atentos
caetano
               perguntado se respeitava sinais disse
claro
          são sinais
                          pergunto
por que queremos desrespeitar
                                                  o que nos sinalizam?
propaganda de cremes anunciam
serem anti-sinais
como se quiséssemos
apagar
                                               a nossa trajetória
aos meus 14
                     uma senhora disse para seu filho
no ônibus
                 deixa o moço passar
fiquei espantado
                           eu me tornara um moço
barba branca no rosto
atendentes me chamam
                                      de moço
sei que é uma maneira
                                     de afagar a vaidade
estratégia de recepção ao cliente
mas o meu espanto persiste
sou velho demais
                             para ser chamado
                                                          de moço
cabelo rareado
                         redemoinho falhado
para suavizar discrepâncias
raspo a cabeça
                         cheia de mentais
                                                     reentrâncias
reafirmo a queda inevitável
palavras caducam?
tenho evitado escrever algumas…
sempre
              e
                 nunca
tenho as considerado definitivas demais
aliás
         tenho tentado evitar também
                                                        demais
aliás
         também
                       e aliás
e sempre
               é logo mais
o nunca
              nunca mais
porque viver nos ensina que marcar
coisas como definitivas
não pertence
                      ao nosso mundo
imediatista
                   impermanente
se me contradigo aqui
é por falta de opção
                                 como não há opção
para a morte do corpo
                                    como sei que a energia
é infinita
                enquanto este universo existir…

Foto por SHVETS production em Pexels.com

Participam do BEDA: Suzana Martins / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Darlene Regina

BEDA / Os Leoninos

Caetano & Romy – leoninos…

Segunda-feira para terça, um dia depois do aniversário de 80 anos de Caetano, estava na cozinha quando a leonina da casa, a Romy, chegou me dizendo que estava se sentindo menos culpada por não ler o que eu escrevo, a confirmar para mim o velho ditado que pronuncia que “santo de casa não faz milagre”. Perguntei a razão e ela respondeu que acabara de ver a entrevista do Caetano com Pedro Bial na qual os filhos, questionados sobre a obra do pai, disseram não a conhecer por inteiro, talvez bem menos do que vários fãs.

Os da minha geração, que acompanham o magnífico compositor e intérprete neste último meio século, temos as suas canções entranhadas em nossa memória afetiva. Quantas vezes suas letras não disseram tudo o que devíamos ouvir, no momento exato ou, mais ainda, quantas vezes elas não se tornaram necessárias para preencher lacunas de ideias, emoções ou sentimentos insuspeitos, aclarados pela voz apalavrada do baiano de Santo Amaro da Purificação?

O filho de Dona Canô, também mãe da imensa Maria Bethânia, tão querida por mim que nomeia a minha filha de quatro patas, em determinada época provocou uma situação inusitada – levantaram a hipótese de que os irmãos fossem a mesma pessoa. Parecidos, os cabelos expandidos de Caetano, feito a juba de Leão que era, fazia-o semelhante à irmã mais nova que, aliás, deve seu nome a ele, originário do título de uma linda canção que conheci na voz eterna de Nelson Gonçalves.

O cabelo era simbólico de sua atitude em que as aparências eram determinantes para estabelecer critérios discricionários pelos padrões vigentes. Sua postura andrógina, tanto quanto de Maria Bethânia causavam estranhamento ao rígido Patriarcado. Dançava com a molemolência e a delicadeza exuberante de alguém que não se enquadrava ao Sistema. Acabou preso, também por isso. Além de pensar rompendo os limites pequenos das cercas ideológicas, surgia como péssima influência para os jovens. Creio que isso não ocorreu apenas à Direita. Meu pai, atuante personagem da Esquerda, a ponto de ter sido preso e torturado pelo Regime Ditatorial, recriminava os mesmos cabelos feito juba que eu usava e ficou enfurecido depois que passei a usar brincos.

A Romy citou também passagens em que Caetano mostrava o seu lado leonino, ao dizer que era bonito, sim, que não tinha a falsa modéstia de não demonstrar que não sabia disso. Obviamente, se identificou plenamente com o criador de Sampa. Nessa canção, ele revela que achou feia a cidade que “ergue e destrói coisas belas”, porque “Narciso acha feio o que não é espelho”. Essa auto aceitação vaidosa é, para mim, fantástica. Principalmente porque eu me considero sempre “culpado”, como se o Pecado Original não tivesse sido perdoado pelo batismo. Do qual não me lembro, mas que não faria a menor diferença, já que fui ao longo das idades acumulando “culpas” por circunstâncias normalmente incontroláveis.

Os leoninos, tanto Caetano quanto a Romy, assim como outros aos quais fui conhecendo em minha jornada, carregam o poder de levarem o Sol a cada lugar que chegam, como já versei em poemas. Chamam (ou fazem por onde chamarem) a atenção sobre si. Resilientes, seguram firme a carga pesada de serem o que são. Apesar de “saberem” que o mundo gira em torno deles, conseguem se solidarizar com os desvalidos, com os oprimidos, os que são atacados por serem frágeis ou diferentes.

Para deixar a minha cria menos compungida disse à Romy que não precisaria se preocupar em me ler, por enquanto. Chegará o dia que terá essa necessidade. Por hora, sei que está tentando se equilibrar entre as dores físicas e as mentais que sente por viver em um mundo tão poluído de caráteres aviltantes. O que escrevo se insere na mesma dinâmica. É uma necessidade premente de saber de mim e dos outros, tentando freneticamente me reconhecer como um ser humano que pertence ao topo da cadeia alimentar, vítima de abuso perpetrado por outros homens, mas igualmente um destruidor do planeta pelo estilo de vida que refuto, mas vivo.

Quanto a Caetano, chorei com ele pela emoção aflorada por cantar Terra, uma das suas canções que resume magnificamente o poder de se conectar com o Todo, mesmo quando se “encontrava preso na cela de uma cadeia” e ver “pela primeira vez as tais fotografias, em que apareces inteira, porém lá não estava nua e sim coberta de nuvens – Terra, Terra…”. Assim como quando lembrou de quando alguém lhe falou no exílio forçado sobre o lugar de origem, “onde o azul do céu é mais azul”. Fiquei preso nessa frase dita à visão de seus olhos marejados e me senti quase absolvido por amar leoninos de graça.

Participam do BEDA: Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Suzana Martins / Roseli Pedroso / Darlene Regina

Notas Sobre A Vida Em Janeiros Passados

SOBRE OS JESUÍTAS (2019)

Este painel se encontra à esquerda do saguão de entrada da Casa de Portugal. Mostra o jesuíta português Manoel da Nóbrega entre os gentios da terra, em postura de força impositiva, apesar de apresentar, humildemente, os pés descalços. Se visitarmos um estabelecimento oficial espanhol em São Paulo, lá encontraremos a figura do espanhol José de Anchieta, a catequizar os nativos dos Campos de Piratininga. Oficialmente, os dois jesuítas foram os responsáveis pela fundação desta cidade que hoje completa 465 anos de nascimento, na inauguração da choupana que servia de escola e moradia. Por uma confluência de fatores, São PauloSampa, para os íntimos — tornou-se o que é. Qualquer definição que se dê a ela, em pouco tempo deixa de ter sentido, pois a metamorfose permanente é seu único traço definitivo e definidor. Em São Paulo nasci, vivo e espero morrer, a saber que já fui muitos e serei outros tantos até o fim — quando dispersarei meus átomos por esta terra que me formou.

SOBRE IMAGEM (2019)

Subo ao coletivo, passo a catraca, me sento junto à janela, a qual deixo entreaberta para sentir o vento e me refrescar neste dia quente. Começo a suar mais do que devia e percebo que a janela do meu lado estava fechada. Imaginei que tivesse acontecido pelo movimento do ônibus. Voltei a abri-la. Mais alguns minutos, a vejo novamente fechada. Estranhei e olhei para o banco de trás, onde havia uma moça que sorriu amarelo e murmurou: “o vento estava bagunçando o meu cabelo…”. Realmente, ela estava com os fios retos postos lado a lado como se fossem desenhados. Sorri de volta, outro sorriso amarelo. Não tive coragem de dizer a ela que a sua maquiagem, devido ao calor, estava escorrendo um pouco…

IN PLANET OF THE APES (2020)

“A primeira foto data de 2014. Treinava regularmente. Faz três anos, justamente em janeiro, que não entro em uma academia. O ritmo de trabalho aumentou tanto que não tive mais tempo para sentir a dorzinha gostosa da atividade física regular. Quando estou em casa, me dedico a escrever ou a realizar tarefas caseiras. Quando subiu a primeira imagem, de seis anos antes, percebi que usava a mesma camiseta — uma das minhas favoritas. Registro feito, não imaginava que a camiseta fosse tão velha. Já o velho, tenta viver um dia de cada vez. In Planet Of The Apes…”. Dois meses à frente, o mundo pararia…

463 ANOS (2017)

Nesta imagem, homenageio a minha cidade. Eu a produzi às 6h da manhã do horário de verão, ao passar pela Ponte da Freguesia do Ó. Quis captar a Lua, em sua fase crescente. Quase não conseguimos percebê-la. As luzes das Marginais roubam a cena, separadas pela escuridão do leito do Rio Tietê. De forma indireta, é uma maneira de reunir símbolos importantes desta metrópole — um rio morto pela poluição, vias de locomoção que estão normalmente congestionadas, luzes que nos confundem em vez de revelar, a beleza dos astros, esmaecida pela fumaça. Contudo, não viveria em outro lugar.

CLIMÁTICA (2017)

E o dia entardece como ontem. Depois de um dia nublado e/ou chuvoso, a luz deu o ar de sua graça sobre a terra paulistana dos quatro elementos e diferentes climas cotidianos.

FILME NOIR (2015)

Ao lado do Hotel Manchete, a Lanchonete E Bilhar Ideal. Com esse aspecto de filme noir dos anos 40 ou 50, já imagino que o cidadão sentado à frente da entrada seja um exímio jogador à espera do próximo “pato” a ser depenado em uma aposta — “bola sete na caçapa do meio!”.

SOBRE O LIXO (2016)

Sem cabeça para ficar… Sem pés para onde ir…

NOTAS SOBRE JANEIRO DE 2022

É bem significativo e nada contraditório (no Brasil) que o Carnaval seja transferido para o dia em que se comemora o enforcamento e esquartejamento de um homem que lutou pela liberdade. Assim como seja tradicional que Judas seja malhado no Sábado da Aleluia por ter cumprido o percurso da Paixão daquele que pregou o perdão.

Prestes a ser comemorado o aniversário da cidade de São Paulo, podemos ver a reprodução atualizada dos grupos de homens e mulheres da terra, nômades se reunindo em coberturas em torno do Pátio do Colégio. A diferença é que há 468 antes, elas eram eficientes por ser o estilo de vida que as comunidades dos originais da terra conheciam. Atualmente, as tendas são moradias improvisadas, a única maneira que os desvalidos da terra encontraram para se abrigarem das intempéries.

Como a conta sempre chega, os não vacinados ou com vacinação incompleta contra a Covid-19 ocupam mais de 80% dos leitos de UTI e Enfermagem, retirando espaço de outros tratamentos. O Negacionismo ocorre em todas as frentes — social, econômica e psicologicamente — o que não impede que a realidade sempre se imponha, não sem muitas dores.