17 / 06 / 2025 / Sofá À Venda*

Em Junho de 2019*, publiquei: “Vende-se um sofá para cachorros novos, que gostam de morder, roer e estraçalhar coisas como móveis, objetos de plástico e aparelhos eletrônicos distraidamente deixados por aí. Quase inteiro mesmo depois de ser utilizado pela Bethânia e pela Arya (na foto), com encosto preservado para ser devidamente devorado”.

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Quintal

Quando a minha mãe quis nos oferecer o terreno ao lado da nossa casa, também pertencente à família, conjecturou dividi-lo em duas partes. Eu respondi que preferia que ela o cedesse inteiro, nesse caso, para o meu irmão. Argumentei que sendo criado com quintal, caso fosse dividido, teria a configuração típica e opressora de casa assobradada e garagem para o indefectível automóvel com passagem estreita para a movimentação das pessoas. O meu irmão iniciou as obras para a fundação da casa. Sem recursos para continuar, cedeu a mim o terreno em troca da compra de uma casa já pronta.

Dessa maneira, idealizei desde o início a formação do quintal com uma área para um jardim intermediário e outro (fechado) na parte da frente. Lá, plantamos várias árvores frutíferas envasadas para não se desenvolverem demais, com exceção de duas bananeiras — uma prata e outra, nanica — além de jabuticabeira, mexerica, amoreira, goiabeira, ameixeira, pitangueira — além de abrigar muitas outros tipos de plantas, entre trepadeiras, como o “ora pro nobis”, “jiboias”, “sapatos de judia”, “costela de adão”, bem como ornamentais. Viver na Periferia me deu essa oportunidade de poder conviver com esses incríveis seres do Reino Vegetal.

A primeira visão que tenho ao acordar é o do quintal, tendo a Mangueira, rainha do meu espaço, moradia de pássaros que vivem nela, além dos visitantes eventuais. Vivemos a temporada de colheita e da chuva de mangas que despencam quando amadurecem. A cachorrada se refestela delas com vontade. Aqui, o cão chupando manga é lindo de se ver!

Ter uma árvore grande como a nossa mangueira implica em termos varrer sempre para não forrar o chão de folhas que caem em profusão. Essa mangueira já existia antes da construção da casa e fizemos questão de conservá-la, há mais de 30 anos. Ela nos retribui com um fruto saboroso, doce. Além comê-lo in natura, fazemos sucos que nem precisam ser adoçados. Sinto que é um agradecimento à nossa decisão.

Esse é o Alexandre. Resgatado há mais de dois anos, bem magro e descomposto, ganhou ares confiantes dignos de um Pincher do qual parece descender, misturado. Ele é o que toma a iniciativa de proteger o quintal, latindo para qualquer coisa que se move na rua. O seu latido é forte e encorpado. Não parece sair do seu pulmãozinho. Nem parece que passou duas semanas sem emitir um som quando chegou…

Outros frequentadores do quintal incluem desde o Tortuga, nosso jabuti de prováveis 100 anos (meu falecido pai que morreu com 82 anos o conheceu quando menino), passando pelos outros companheiros da turma — Arya, Bethânia, Dominic, Lolla, Alexandre e do velho Nego (que apareceu na foto da varrição) e, eventualmente, o Bambino, meu neto, que aliás está de visita. O Tortuga é bastante curioso e gosta de caminhar bastante. É mais rápido do que se imagina e “some” de uma hora para outra.

Na varanda junto ao meu quintal consigo apreciar o crepúsculo sempre que tenho oportunidade — esse registro foi feito hoje, dia 6. É um horizonte ainda não tomado por construções mais elevadas, mas considero que seja questão de tempo a chegada dos perfis alinhados de edifícios a tornar a linha uniforme e retangular.

Ao Sol se por ainda conseguimos delinear plantas como a jabuticabeira com floração que logo se tornarão apetitosas jabuticabas. É de uma hora para outra e muitas vezes não chegamos antes dos pássaros que não são bobos de bicá-las antes de nós. Capturei sem querer a Bethânia que não sei o que fazia parada no degrau da escada. As samambaias também comparecem, além de uma parte da mexeriqueira que, infelizmente, deixou de produzir…

Participam: Claudia Leonardi / Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli PedrosoSilvana Lopes

Tânia*

Tânia e eu, em 2018, completamos mais de 30 anos de mútuo “conhecimento”. Quando convivemos com alguém por tanto tempo, talvez possamos identificar certas características básicas e dizer: essa é fulana. No caso dela, eu diria que ainda se conseguisse elencar todas as suas capacidades, talvez não fossem esses os dados pelos quais ela gostaria de ser reconhecida como ser humano. Apesar de sabê-la capaz de várias ações, em várias frentes, algo me diz que os cursos que fez e competências nas diversas áreas de atuação não é o reconhecimento que quer.

Mulher do interior do Rio, soube enfrentar São Paulo e desvendá-la, a ponto de talvez conhecê-la melhor do que eu, que nasci aqui. Conseguiu avançar em proficiência e qualidade em sua atividade na área da Saúde, comprovada e certificada. Chegou a atuar no órgão máximo regional de sua profissão e continua a trabalhar, agora nacionalmente, para a melhoria das condições de trabalho de seus pares. Mas ainda acho que não seja por isso que gostaria de ser lembrada.

Sendo uma mulher de opiniões fortes, que não se escusa de colocar o que pensa, encontrou oposição e refutação às suas colocações. Combateu o bom combate de ideias sempre com clareza de posicionamentos e inteligência. Mostrou aptidão para saber conciliar as partes envolvidas em vários embates e não foge à luta quando é chamada para tal, defendendo quem com ela estiver ao lado. Por isso talvez seja rememorada, porém não creio seja apenas por isso que seu nome ecoará por ouvidos de combatentes futuros.

Ao acompanhá-la de perto por todos esses anos de convívio íntimo, percebi que ela tem mudado a perspectiva com a qual visualizava a vida, antes. Garotinha impedida de ter cachorros por seu pai, hoje se compadece por cada cãozinho que vê ao relento, perdido por aí. Começou a se aproximar de nossas amigas plantas e tem percebido cada vez mais fortemente que elas retribuem em energia o amor que a elas devota. Suas conversas têm sido cada vez mais frequentes. Mãe abnegada, com a mesma facilidade que briga com as nossas meninas — Romy, Ingrid e Lívia — se desdobra para realizar como puder suas necessidades e desejos. Acho que mora definitivamente nos seus corações.

Por fim, o que poderia dizer este seu companheiro de jornada em mais da metade de nossas vidas senão que nosso amor tem evoluído para formas simples/complexas de manifestação. Pode ser o mimo mínimo, apenas para agradar ou o esforço sem medida para fazer concretizar um sonho maior, como deixar nossa casa um lugar aprazível para recebermos amigos e amigos das filhas. Ainda temos arranca-rabos e terminamos muitas vezes como lagartixas que se recolhem no mesmo ninho, a espera que nossas partes perdidas voltem a crescer mais fortes. Enquanto tivermos essa dinâmica entrópica que criamos para sermos inteiros numa relação una, seremos um casal que se importa um com o outro.

Tenho certeza que é pelo amor que a Tânia tem espalhado pelo mundo ao cuidar, como Enfermeira, daqueles que sofrem, os curando ou, minimamente, aliviando suas dores, que terá o seu nome reconhecido. Pelo amor dos nossos amigos cachorros que receberam abrigo, alimento e carinho em sua casa, muitos que depois foram para outros lares e os que estão conosco que receberá lambidas eternas em seu coração. Pelo amor que devotou a quem está próximo, tão próximos que já não sabem viver sem ela em suas vidas.

*Texto de 2018, por ocasião de seu aniversário, a 24 de Novembro.

Visão Espelhada

Há muitas maneiras da realidade se revelar. No mínimo, devemos sempre contemplar pelo menos duas visões – a nossa e a do outro lado do espelho. A cada situação que se coloca como dilema ou dúvida, exercito a dualidade que se apresenta e costumo exercer essa prática mesmo em questões aparentemente simples e menos sérias.

Uma das oportunidades em que me senti provocado ocorreu quando em um vídeo, um homem diz para o cachorrinho: “eu tenho uma notícia prá te dar: você é cachorro, você não é gente” – após o que a fisionomia do companheiro denotaria surpresa. Postado no grupo da família, escrevi que “se souberem que nós somos gente e não cachorros, seria capaz de deixarem de nos amar…”.

Refletindo sobre isso, não acho que esses seres especiais considerem diferenças entre as nossas espécies como fundamentais. Aliás, movidos por sentimentos irreprimíveis de afeição, “sabem” que pertencemos ao mesmo grupo, sem nenhuma distinção. O elo que nos une é o amor demonstrado sempre que possível, mantido por fidelidade “canina”, apesar de nossas falhas.

A base de sustentação da frase dita pelo tutor parte da ideia de que ser gente teria uma importância superior à de ser um cão. A depender de certas premissas, isso é bastante discutível. Por mim, a surpresa do cachorro poderia se dar mais pelo fato dele fazer menção a uma circunstância que sequer deveria entrar no contexto. Ao amarmos um ser, o desejo é o de nos comunicarmos com ele, que o compreendamos e nos façamos ser compreendidos.

A comunicação pelo olhar em muitos casos é mais evidente do que por palavras e suas devidas gradações de tons. Assim como a linguagem gestual igualmente pertence ao rico diálogo entre nós. Essa relação só nos aprimora como seres humanos. As lições que nos dão são muito mais efetivas do que as impostas como mandamentos.

Antes desse episódio, em conversa com a Tânia, que reclamou do cheiro da Bethânia que insistia dormir em nossa cama, rebati que eles não se importam com o nosso cheiro, apesar de muitas vezes não nos parecerem tão bons para nós mesmos. Ao contrário, sentem falta de nosso “perfume” por ser uma das formas mais poderosas para nos identificar.

A partir daí, procurei não fazer tanta conta dos odores emitidos pelos cães, ainda que alguns não me agradasse eventualmente. A Bethânia tem um cheiro específico que mesmo após o banho, perdura. É famoso o odor de salgadinho de suas patinhas. Nós nos perfumamos com olores que não nos pertencem desde séculos antes, mesmo em grupos mais primários. Ainda assim, os cachorros conseguem diferenciar o nosso cheiro por trás de nossas manobras para despistá-los e nos amam ao sermos apenas nós mesmos.

Eu me sentiria bem triste se um companheiro canino me dissesse: “ei, tenho uma notícia para lhe darvocê não sabe amar como um cachorro!”.

Histórias de 17 de Julho*

Arrozal, em 2011

“A minha irmã acompanha o programa Sr. Brasil, com Rolando Boldrin, mais uma forma de homenagem à minha mãe, que adorava assisti-lo nas manhãs de domingo. Em certa passagem, o grande Boldrin conta sobre um padre que vê um caboclo adentrar à sua igreja à luz do dia. O padre pergunta ao tal: ‘Veio confessar?’ Ao que o sujeito responde: ‘Não! esperando juntar…’. Agora, eu pergunto: quantos pecados devemos juntar até nos redimirmos, afinal?”

Logo à frente, nesse caminho, se encontra um retiro da Igreja Católica, ao qual eventualmente comparecem grupos de jovens e seminaristas. Eu mesmo, quase ingressei na Igreja como seminarista franciscano. A minha intenção era utilizar a sua máquina para cumprir a missão ao qual havia me proposto ajudar ao próximo e buscar a trilha da humildade e da renúncia. Estudante de História, não desconhecia os desmandos da instituição, onde a Inquisição foi apenas um dos aspectos mais marcantes e cruéis.

Ainda continuo franciscano, mas casado, com três filhas, não participo de agremiações religiosas e faço de minha profissão de fé uma barafunda de ensinamentos de todas as vertentes e cantos do Mundo. A Luz tem muitas perspectivas.

Frida e eu, em 2017

“Não sou Diego Rivera, mas Frida me ama… Neste estranho mês de julho, tenho pensado muito em minha mãe, que nasceu neste mesmo mês, há 85 anos. Ela está conosco apenas em espírito desde 2010. Por uma dessas ‘coincidências’, chama-se Madalena, o mesmo nome de Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, que nasceu na mesma data de 6 de julho, 25 anos antes que a menina Nuñes Blanco. Frida, a minha, tem uma personalidade a ser desvendada por nós, que convivemos com esse ser com ‘olhinhos de avelã’, como dizemos. Todas as ‘nossas cãs’ tem nomes fortes Penépole (de Ulisses), Domitila (de Castro), Maria Bethânia (cantora) e Lolla (Corra) Lolla. São coisas do surrealismo que é viver…”.

Na legenda acima, fiquei pensando no que quis dizer exatamente com a correlação entre os nomes inspirados em artistas e o Surrealismo. Está certo que o movimento se caracterizava pela expressão livre do pensamento, regrada somente pelos impulsos do subconsciente, aparentemente desregrado. Eu me lembro do tempo em que os nomes dos nossos companheiros peludos se restringiam à características físicas que apresentavam ou referências normalmente episódicas. Creio que a crescente sensibilização quanto aos bichos de estimação nos trouxeram para mais perto da naturalização de nossas relações. Ou, segundo eu creio, para a nossa natureza animal ou anímica. Surreal?