23 / 06 / 2025 / O Cachecol Listrado

Ontem, o meu pensamento girava em torno de um sofá acolhedor, de onde assistiria à Copa de Mundo de Clubes e assistir a uma das séries que acompanho. Trabalhei por vinte horas no dia anterior em um evento no interior do Estado, mais propriamente em Cerquilho. Deixei-me dormir demais já que não havia nenhum compromisso agendado para o dia, a não ser o citado acima. Eis que lá pelas 14h fui informado que a família sairia, à pedido da mais nova que iria a uma festa junina perto de onde reside, no Tatuapé.

Este homem de família se sente impelido a interagir, mesmo quando não se sente à vontade para isso. Normalmente, estou ocupado nos finais de semana devido à minha atividade de sonorização e iluminação de eventos. Ontem, eu estava livre e lá fomos nós atravessar a cidade da Zona Norte até à Leste em dia de retorno de feriadão de Corpus Christi prolongado e de Parada Gay.

Excesso de veículos na Marginal Tietê, além de trechos interditados, chegamos além do horário programado, mas à tempo de aproveitar a quermesse de rua da igreja local. Noite tépida, 16ºC. Muita gente em movimento constante e em filas para consumir as guloseimas oferecidas. A decoração, colorida, girava em torno das franjas e bandeirinhas de papel, balões alegóricos, fogueiras de luzes. Percebi que paulistano gosta de pagar caro para comer comida em pratos de plástico, vasilhas térmicas e copos descartáveis. Uma jovem bandinha de garagem tocava músicas dos Anos 80. Uma volta no tempo em uma rua que ainda preservava construções da época em uma região que passa por um forte processo de gentrificação. Aliás, como em toda São Paulo.

Consumi um bom caldo verde. Após pegarmos mais um salgado, visualizei um brechó aberto entre as barracas. Visualizei um cachecol listrado que me chamava desde dentro da loja. Ele me remeteu a um quê de nostalgia de algo que não havia vivido, mas sendo de brechó, alguém o usou com propriedade e ocasião. Aproveitando que esfriava, logo o coloquei. Eu me senti distinto. E esquisito, segundo o resto da família.

Mas o calor que me protegia o pescoço compensava qualquer observação adversa. Quando fui pagar, a senhora perguntou se eu era músico. Respondi que trabalhava com eventos musicais. Ela disse que era atriz e sabia distinguir os tipos envolvidos em arte. Já em casa, a Romy me agradeceu a noite. E eu, com o meu cachecol listrado, intrigado conjecturei que simplesmente estar presente tenha sido suficiente pelo agradecimento. O que remeteu ao meu pai, um senhor ausente.

21 / 06 / 2025 / Mudanças Climáticas*

Em 2015, escrevi: “Dia de sol inclinado e temperatura fria. O inverno chegou! Mexericas ainda não colhidas, revelam as bicadas dos pássaros e as picadas dos insetos ou, ainda, apodrecem no pé. Podemos até desenvolver um sentido de desperdício quando nós, os humanos, não aproveitamos o máximo das potencialidades que a vida nos oferece, mas outros seres, dos alados aos rastejantes, talvez discordem disso…”.

Outra imagem semelhante registrei nas primeiras horas do Inverno primaveril de 20 de Junho de 2024* e escrevi: “As árvores, confusas com o calor tépido, florescem fora do tempo devido. É como não descansassem e os outros sinais de veranico fora de época nos mostrasse que o processo de mudanças climáticas se acentuarão dia a dia. Quando vim para esta região da Zona Norte, no final dos Anos 60, os morros do entorno amanhecia neste período com a vegetação coberta de geada, transformando o amanhecer em um espetáculo de múltiplas cores produzidas pelo reflexo solar. Hoje, o mesmo local está recoberto de moradias”.

Li que esta geração será a última a ter visto vaga-lumes a voarem por entre as plantas. Os machos da espécie sofrem a concorrência das luzes artificiais e não conseguem mais fecundar as fêmeas. Assim como as abelhas que também sofrem com as anomalias produzidas pelos homens, estamos nos condenando gradativamente à extinção. Pior para nós, melhor para todas as outras milhões de espécies animais do terceiro planeta desde o Sol — desde insetos até as maiores — terrestres e marinhas.

10 / 06 / 2025 / Tempo & Tempo

Vivemos um minuto após o outro,
entre chegadas e partidas
de dores e amores.
Em tempos como estes,
caminhamos de metro em metro,
quentes ou frios,
em meio a gentes boas e estúpidas.
Que saibamos escolher quais merecem
o nosso melhor esforço… e nosso calor.

18 / 04 / 2025 / BEDA / Se Não For Para Causar, Nem Me Caso*

Maria, figura esfuziante e autossuficiente, trazia o sol atrás de si onde quer que chegasse. Era desejada por homens e mulheres, mas não se prendia a ninguém. No trabalho, sorriso aberto, conseguia conduzir aos seus comandados com facilidade e seriedade. Ao chegar de sextas à noite, saia com um grupo de amigos, muitos, antigos colegas de escola. Todos a amavam. Quase todos a tiveram nos braços, mas sabiam que ela era quase um patrimônio da humanidade. Como conseguia equilibrar tantas emoções que provocava, era um mistério que nunca conseguiram desvendar. Ou se aceitava Maria ou se afastava para tentar nunca mais vê-la. Porém, tamanha a sua força atrativa, poucos a deixavam. Era fogo que aquecia.

José, recolhido e triste, enviuvara há pouco tempo, sem filhos. A sua personalidade plasmada em gesso sem acabamento, ganhou feições de grandiosidade de um deserto aberto. No entanto, sempre prestativo, era querido por muitos. Gostavam de tê-lo por perto porque era aquele que parecia concordar com tudo o que fosse dito, calado que era. Poderia se dizer que fosse uma figura decorativa, porém indispensável. Eficiente em suas funções de contador, não sabia contar quantas dores já sentira na vida, sensibilidade à flor da epiderme mais basal. Era gelo que não queimava de frio.

Ora, pois então, deu-se que um dia acabaram por se encontrar em uma tarde de outono, Sexta-Feira Santa. Maria, reservava um dia por semana para estar só ao sol – amigos estelares que eram. José, ainda que companheiro silente preferido de muitos, se sentia melhor quando confirmado em sua solidão tranquila. Ela, a buscar a luz por entre o arvoredo do parque; ele, a se sentir acolhido pela sombra oferecido pelas folhas – encontram, peito com peito, distraídos dos dois, absortos pela Natureza. Olhos nos olhos, antes da queda… ou quase, já que ele, em um movimento de insuspeita agilidade, a segurou nos braços. Fogo e gelo em pleno Horto Florestal. Desculpas recíprocas. O sorriso dela a queimar a pele dele. A profundidade do olhar dele a abarcar a energia dela.

Tão diferentes, que não se estranharam. Antes, curiosos por viajarem por terras tão distantes, se sentiram atraídos pela aventura de se conhecerem. Decerto, não era algo que faltasse a uma e outro. Ambos se sentiam completos, ao seu modo – uma, pela opulência; outro, pela falta. Perceberam que não precisavam trocar palavras ou gestos efusivos. Apenas o dançar suave de mãos e olhares, jogo de silêncios e risos sem motivos aparentes. Ela, em sua presença, brilhava ainda mais; ele, na dela, se aprofundava mais firmemente em sua segura e sólida guarida. Longe da multidão que os cercavam, no entanto, se reconheceram amantes de si para si. Já, naquele dia, o finalizaram em batismo de fogo e gelo. Queimaram e umedeceram os lençóis noturnos e, mais tarde, matutinos. Final de semana prolongado da Paixão.

Celulares religados, mensagens e chamadas perdidas os fizeram perceber que o mundo os queria por perto – familiares e amigos, carentes do corpo caloroso de Maria e da presença refrescante de José. Logo, perceberam que não queriam se separar, talvez não conseguissem. Ambos estavam surpreendidos pela força que os uniam, ainda que não precisassem o que fosse ou como denominar aquilo que sentiam. Talvez fosse amor, uma doença grave ou uma dependência psíquica e mental, vício imediato, feito crack. Decidiram revelar ao mundo entorno de um e de outro que, a partir daquele instante, estariam juntos… Quase em uníssono, se perguntaram, como se tivessem uma plateia a inquiri-los: “Até quando? ”… Quase que imediatamente, se responderam: “Não sabemos! ”… Riram gostosamente.

Feita a excursão por seus respectivos planetas, souberam que a aliança entre as partes não seria facilitada por seus habitantes. Seguiram em frente, alheios ao antagonismo – puro egoísmo de quem se acostumara a companhia constante de seres tão especiais. Com o tempo, a percepção de que ambos os lados não perderam uma amiga ou um amigo, mas ganharam outro, trouxe paz ao sistema solar.

A contrariar todas as expectativas e as suas próprias convicções pessoais, quiseram fixar um núcleo central. Um lugar de reconhecimento como sendo a casa do Sol e do Gelo. Um ponto de referência. Já que não precisavam casar, porque não casarem? Reuniram a turma e anunciaram o enlace. Com o seu jeito faceiro, ela completou: “ Se não for para causar, nem me caso! “… “ E quando será? “… “ Está a ser ”… E foram declarados: Vida e Paixão

Foto por Abraham Aguilera em Pexels.com

*Conto de 2017

29 / 03 / 2025 / Farfalla

Farfalla cumpre o destino
após tanto tempo no casulo autoimposto
não se faz de rogada Farfalla fala
nasci neste dia quero festa quero cumprimentos
não desejo votos de isentos
desejo beijos ainda que distanciados
quereres bem-intencionados  
calor humano
a suplantar o calor deste litoral
em que voo sobre as águas sob o Sol
sou amiga sorridente bailarina no jardim
absorvo o néctar de flores
enquanto me afasto das lembranças de dores
revoo aprecio a paisagem que me renova
volteio não fico no meio alcanço as fronteiras
sou da vida bela ainda que dela nada se leve
sou leve asas abertas passeio por multicores
de plantas absorvo doces fragrâncias
escrevo o meu caminho em poemas
em cantos em danças em delicadezas
um dia pousarei hoje não que não quero
descansarei ao raiar do dia de nova hora
cercada pela flora sonora de abelhas que lhes beijam
ao cintilar solar da aurora…

Foto por Joseph M. Lacy em Pexels.com