O Caminhante

Passou por mim um rapaz muito alto que caminhava de fora inusitada. Usava chinelos gastos, talvez pequenos demais para os seus grandes pés, que escorregavam toda a vez que pisava a calçada. Apesar da discrepância de seus passos com o padrão comum, que fazia com que chamasse a atenção para si, somado a alguns risos, percebi certa composição jazzística, uma nota de harmonia assimétrica em seu andamento. Configurava-se como uma dança imprecisa e contundente, que o fazia seguir muito mais rápido do que eu, com o meu andejar regular e simples. Os braços subiam e desciam uniformemente em contraponto ao movimento criativo, propiciando equilíbrio e coesão, como a compor um contratempo na surda canção que parecia ouvir. Eficiente, o rapaz muito alto vencia os metros diante de si com um avanço impiedoso de quem coreografava o seu percurso com um destemor do incomum. Atuava, como caminhante, de forma diferente da maioria. Com um simples ato de andar, destoava da multidão que marchava ao lado. Bailava enquanto se deslocava. Com as suas pernas compridas e seu corpo desproporcionalmente grande para o seu rosto de menino e, muito provavelmente, inconsciente de tal fato, acabava por revolucionar o mecanismo de trasladar o espaço. Rápido, isolou-se à minha vista e ganhou uma distância suficiente para dobrar uma esquina em alguma rua adiante e desaparecer, sem que eu soubesse onde, exatamente. Restou o registro de minha memória e uma foto roubada daquele caminhador. Uma imagem que registra um milésimo de segundo congelado, a demonstrar como a vida pode ser ludibriada por instantes isolados e incompletos da nossa visão.

BEDA | Pés

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Pés, para caminhar…

Nós, seres humanos, somos bípedes. seres caminhantes, desde que alinhamos a coluna vertebral, nos primórdios de nossa evolução. Eu sou, além disso, um pedestre. Parece estranho distinguir essa condição, mas por estarmos cada vez mais motorizados, realço a minha profissão de fé em caminhar. Obviamente, me utilizo de automóveis para me deslocar de um lado para outro, tanto profissionalmente quando para outros compromissos. Apesar de “ideologicamente” rejeitar o carro como a melhor opção de transporte, depois dos 30 anos, casado, me senti impelido a fazer aulas de direção. Mas não me tornei motorista autorizado. Não consegui passar nos exames. Falhei três vezes. Não insisti mais.

Quando fiz 18 anos, a primeira decisão que tomei para me sentir descompromissado com o status quo foi o de não tentar tirar carta de motorista – documento emblemático para o ritual de passagem da adolescência para a vida adulta. Para corroborar minha atitude, em certa ocasião vi uma exposição fotográfica no Instituto Goethe, a respeito da cultura do carro, da construção de vias preferenciais, “autobahns” e de como somos condicionados a utilizar veículos motorizados individuais como indicativo de autonomia, quando, na verdade, criamos dependência, além de uma relação quase pessoal-amorosa com o objeto-icônico – motivo de altercações leves a violentas, a culminar com crimes de morte por simplórias questões de trânsito.

No atual estágio, apesar de haver crescimento dos alternativos, o carro é um “ser” poluente, excludente (aparta as pessoas em vez de congregá-las) e assassino. Já ouvi dizer que se quisesse cometer o crime perfeito, um atropelamento seria a forma mais viável. Horrível, mas verdadeiro. Basicamente, é aço contra carne. E tudo isso, em nome de um suposto conforto, à custa de muito desgaste emocional e financeiro. Mas, enfim, precisamos continuar a movimentar a Máquina.

Ontem, foi o Dia Internacional do Pedestre. Data instituída no mesmo dia da feitura da famosa foto que mostra a travessia dos The Beatles por uma faixa de segurança, capa do “Abbey Road”, de 1969, 12º e último disco da banda de Liverpool. Afora o mérito do lançamento dessa obra, que gerou especulações de todas as ordens, ser pedestre é quase uma profissão de fé. Sobrepondo uma questão a outra, um sonho meu será fazer a caminhada de São Thiago de Compostela. Juntarei o desejo de visitar a terra de antepassados ao sentido de fazer valer a direção que tomei na vida.

Depois de décadas sofrendo com o encravamento de minhas unhas dos pés – principalmente dedões –, comemoro a doma e a estabilidade proporcionada pelo tratamento com a Milena, minha podóloga. Graças à sua intervenção, posso caminhar sem dor. Calçar um sapato sem a perspectiva de retirar um instrumento de tortura é um alívio e tanto. Além disso, mostrar os pés nus sem ofender o olhar dos outros, já garante a despreocupação de caminhante-pedestre por função e opção. Rendição à imagem, mas igualmente signo de liberdade.

Participam:  Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari