Nesta tarde, o meu irmão encontrou, na boca da Penélope, um pássaro… Morto… Talvez um canário. Talvez o mesmo que canta (ou cantava) toda manhã, aqui no quintal. A nossa bela e negra Penélope é uma caçadora. Nada escapa ao seu raio de ação quando se trata de gatos, ratos e seres alados… Ao retirar o bichinho da sua boca, o Humberto, conhecedor de pássaros pela passagem de parte de sua meninice no interior, decretou: “Vida de passarinho…”.
Então, vida de passarinho é assim — frágil, rápida e sonora. Alegre para quem ouve o seu cantar. Perigosa, para ele mesmo, pois o seu encanto atrai predadores, incluindo àqueles que se alegram com o seu canto.
A tarde fluía em seu primaveril caminhar, com o Sol a descer a linha do horizonte entre nuvens mais escuras da chuva intermitente… Diante desse espetáculo, tendemos a nos sentir como passarinhos na boca da negra e bela Eternidade. Um dia, ela nos abocanhará igualmente…
Texto de 2017*, incluído em meu primeiro livro — REALidade — de crônicas, lançado pela Scenarium Livros Artesanais.
Em 2015* foi chamado a publicar sobre as minhas influências musicais. Mesmo muito novo, a minha preferência sempre recaiu sobre a MPB. Mas não pude deixar de demarcar umas das que mais me marcou, lançando mão de um artista que se fez presente desde que comecei a “cantar”, no chuveiro, no meu quarto, no quintal, de mim pra mim, aos quatro ou cinco anos de idade.
Quase me propus postar algo referente aos grandes festivais da Record dos Anos 60, que também foram muito importantes para mim, porém, decidi pelo coração, contra o intelecto. Pois já andei de “Calhambeque”, já praguejei e disse “Quero Que Vá Tudo Para O Inferno”, desci perigosamente, a toda velocidade pel“As Curvas Das Estradas De Santos”, para encontrar a minha “Amada Amante”, “Quando” expliquei: “Por Isso Corro Demais”!
Eu poderia construir inúmeras histórias através do que cantou o Rei, como vários temas cantados por ele pontuaram a minha vida e, acredito, de quase todo brasileiro nos últimos cinquenta anos. Relevem um pouco o Robertoinstitucional dos últimos anos. A energia que ele gerou com a sua Turma da Jovem Guarda, antes, e posteriormente em carreira como cantor predominantemente de canções românticas, pelo menos até os Anos 80, permitiram que construísse uma carreira sem precedentes e, creio, sem nenhuma chance de que volte a acontecer novamente na MPB.
Eu, quando garoto, queria que a minha mãe comprasse calças “Tremendão”, do Erasmo Carlos e camisas de franjas, como as que o Roberto Carlos usava e imitava certos trejeitos dos meus ídolos. Anos mais tarde, um dos componentes da Jovem Guarda, Prini Lorez, tornou-se meu professor de judô e muitos anos depois, o encontrei, bem como a vários outros do movimento, em shows que sonorizei e iluminei, incluindo a Wanderléa (lembra, Sidão Yshara?). Tirando Roberto e Erasmo, creio que já tenha trabalhado com a grandíssima maioria dos componentes da Jovem Guarda, além de vários músicos que os acompanhavam. Foi um prazer impróprio para quem trabalha, já que é praxe que devamos sofrer para ganhar o nosso pão…
Apenas quem, como eu, viajou vinte e quatro horas seguidas de ônibus e se distraiu com fitas cassetes com músicas do Robertão, sabe a grandeza e grandiosidade da obra desse grande cantor nacional. A música que preferi escolher entre tantas é “Detalhes”, do disco de 1971 –– Robert Carlos. É um LP (Long Play) emblemático para mim porque foi o primeiro que a minha mãe pode comprar, já que a coleção que tínhamos era apenas formada por antigos “bolachões” e passávamos por uma difícil fase econômica na época. Além desse clássico tínhamos, nesse disco, as seguintes faixas: “Como Dois E Dois”, “A Namorada”, “Você Não Sabe O Que Vai Perder”, “Traumas” (que a minha mãe adorava!), “Eu Só Tenho Um Caminho”, “Todos Estão Surdos”, “Debaixo Dos Caracóis Dos Seus Cabelos”, “Se Eu Partir”, I Love You”, “De Tanto Amor”, “Amanda Amante”. A grande maioria, clássicos da carreira do Rei! A grande maioria, sei cantar até hoje, “decór”!
*Há dois anos, em 2023, Rita Lee, se encantou definitivamente. Deve estar lá, entre os seus amigos extraterrestres, brincando com as estrelas que brilham tanto quanto ela no firmamento da eternidade da qual somos feitos… Por ocasião de sua passagem para outro estado de ser, escrevi:
RITA LEE, como é que você se sente em se tornar imortal? Como é ser um ser total? Não bastava ser a mais completa tradução de Sampa? Ser a mulher que traduziu como ninguém uma mulher, em “Cor-De-Rosa-Choque“? Não bastava reverenciar a vida de modo libertário, como em “Lança Perfume“? Não bastava cantar o inconformismo e a inadequação de todos os adolescentes e muitos adultos –– homens, mulheres, mais que mulheres, mais que homens –– em “Ovelha Negra“? E muito além, para quem não se adequa ao mundo? Homenagear o amor em “Mania de Você” e em tantas outras composições? De ser mutante, iconoclasta, vibrante, permitiu-se deprimir quando acontecia, expor as suas vísceras e surgir renascida. Maior personagem de si mesma, entre tantas identidades que assumiu. Não bastava ser maior que a Vida, você tinha que ser imortal, a partir do momento que nos deixa fisicamente. Rainha, padroeira da liberdade, entre outras rainhas, uma mulher, principalmente. Nosso amor imortal, vá reinar em outra dimensão!
dois ônibus ir dois voltar atravessar cidade universidade mãe orgulhosa pai exultante dizia para amigos meu filho uspiano afastado não ajudava madalena sozinha pagava transporte quatro passes por dia dinheirinho lanchar xerocar saía cedo voltava noite quinze minutos de atraso multiplicado tempo por quatro trabalhos feitos nas coxas papel caneta trepidação asfalto irregular letra estranha hieroglifo pessoal egiptologia primeiro desafio professora boa severa o tema é este se virem biblioteca lugar preferido mudei maneira exposição regrei pensamento conheci colegas artistas ratos de porão ira! piscina plataforma dez metros saltos prova de coragem futebol campo oficial médio volante que batia corridas cem metros diversão um dia fiquei preso trânsito parado dormi meia hora acordei mesmo lugar preferi hora mais ficar entre livros no retorno augusta noturna mulheres lindas altas curvilíneas especiais volumosas homens quis cantar no coral rejeitado maestrinho novo filho de maestrão cargo indicado o vaidoso queria distinção contrário anúncio não precisava saber cantar feliz ano velho figurante de filme pensei ser ator colega cabelos dourados desfilava pelos corredores guardava o sol na cabeça iluminava meu olhar seu sorriso outra noiva que desejava convite bicicleta Ibirapuera timidez atroz medo escapei outro amor do colégio estudava nutrição invadi sala entreguei cartas declaração admiração paixão recolhida encontro noite estranha eu não conseguia falar o que desejava ela disse você não pertence a sua família mãe irmãos dissemelhantes como se fosse adotado aumentou sensação de alienígena quando a busquei de novo comportamento muito ruim passei limites me senti diferente de mim mas era eu mesmo assim dissociação perigosa inescrupulosa um dos meus avessos quis ser frei franciscano quase três anos caminho visita seminário agudos santo antônio frei luiz não quis mais um ano sabia frei não seria de história entrei curso português sonhava ser escritor mudei opinião conheceria mulher tingi cabelo amarelo trabalhar carnaval encontrei namorada que veio de longe rasguei peito abri coração perdi virgindade transei primeira vez mudei curso rumo caminho história 27 anos engravidei casei a vida acontece apesar da vida.