24 / 01 / 2025 / Careca De Saber

Eu sempre soube, apesar de ter tido durante boa parte da minha vida muito cabelo, que um dia eu ficaria careca. Em fotos em PB de meu pai, bastante calvo aos 29 anos, pressenti e depois confirmei que assim seria, já que era fissurado por Biologia e assuntos afins decorrentes, como a genética. Quando falava isso para a minha mãe, ela dizia que eu havia puxado a família dela. O que não ajudava muito, já que boa parte de seus irmãos também eram calvos. Citava sempre o Tio Serafim que até o final da vida ostentou uma bela cabelereira, mas se esquecia que o Tio Arsênio e seu irmão caçula, Benjamin, igualmente calvos. Aliás, numa foto recente, estou bastante parecido com este último. Fiquei feliz, pois era o tio mais próximo de nosso núcleo familiar e eu o tinha em alta conta. Era um sujeito todo-coração.

Enfim, me preparei mentalmente para quando viesse a queda inevitável de meus cabelos os ostentando sempre compridos, mesmo depois de casado. Uma identificação com o movimento Flower Power do final dos Anos 60 e início dos 70. Em determinada época, fascinado com o movimento Funk e Rhytmin Blues da música negra americana que aqui desaguou no chamado Samba-Rock, comecei a lavar o meu cabelo com sabão-coco, que o deixava mais duro. Usava os garfos que os blacks também usavam para fazer um penteado arredondado, a la Black Power. Desisti de insistir porque não durava muito e os caracóis retornavam, pendentes. Atualmente, talvez me acusassem de apropriação cultural indevida…

O fato é que assim como utilizei o meu cabelo como forma de expressão, também estou usando a minha calvície como tal. Uso bandanas, bonés, chapéus, boinas para preservar a pele sensível do cimo de meu corpo, aquele pelo qual expilo a maior parte do calor, além de protegê-lo dos raios solares, sempre perigosos para qualquer parte do corpo, principalmente nestes tempos de queda de proteção da camada de ozônio. Como sou curioso e estou sempre buscando conhecer o mundo que me rodeia, tenho recebido como elogio o termo “careca de saber”. Porque que adianta envelhecermos se não acumulamos saberes, ainda que percamos cabelos?

Careca

Nasci no início dos Anos 60. Vivi, garoto, a efervescência do movimento da Contracultura. Entre as miríades de transformações, esse tempo foi marcado pela rebeldia contra o Sistema Capitalista e da busca de filosofias que pregavam o desapego material. Uma das consequências visíveis foi alteração do modo de comportar-se, vestir-se e apresentar-se à Sociedade, influenciado pela postura Hippie de ser. Filosofias, roupas e badulaques à parte, no aspecto visual, o que mais me marcou foi o cabelo. Desde cedo, deixei os meus crescerem. Durante 40 anos, deixar o cabelo comprido servia como marca registrada de alguém que eu queria preservar e homenagear – o rapaz que queria mudar o mundo.

Desde os meados anteriores aos cinquenta, passei a cortar os cabelos bem rente. Não deixei de querer deixar um mundo melhor para os que vierem depois de mim. Tendo já criado as minhas filhas, as preparando para enfrentar o Patriarcado de cabeças erguidas, quero que os meus eventuais netos (os netos de qualquer um) venham a viver um planeta Terra mais equilibrado – ambiental, social e economicamente. A minha luta continua, mas não mais com o meus antigos e longos fios. Agora, careca, com a quantidade de cabelos cada vez mais reduzida e com o que resta embranquecido, continuarei a ostentar a minha rebeldia contra o Sistema. Ainda que esteja careca de saber que não verei um País melhor antes de morrer…