14 / 05 / 2025 / A Rede

Aurélio, casado com Zélia, começou a namorar Marisa virtualmente numa das muitas crises de seu casamento. Mamãe havia criado o moço para se casar e ser fiel. O exemplo de seu pai de traidor contumaz criou nele a repulsa sobre esse tipo de comportamento. O ciúme da companheira também não dava margem para que ele olhasse para o lado com olhos de concupiscência (palavra dele, cultivador de termos não usuais ao conversar com a sua consciência).

Ao começar a fazer terapia, antes buscou ler sobre os termos que eventualmente serviriam para analisá-lo — vazio, gozo, desejo, pulsão, repressão. Começou a pesquisar sobre Freud, Jung, Lacan, Reich, Ferenczi e outros tantos. Em determinado momento, passou a seguir vários profissionais da psicanálise nas redes, preferivelmente femininas.

Uma delas, começou a respondê-lo de forma mais íntima. Disse que gostava das respostas às suas publicações e que queria conhecê-lo melhor. Que o achava bastante atraente e gostaria de trocar fotos mais íntimas. Aurélio quase não cria que dissesse a verdade, ainda mais que Marisa era uma mulher bastante atraente, “superlativa”.

Tomou coragem e enviou uma foto mais ousada, com o membro ereto. Os contatos se intensificaram. Aurélio, passou a experimentar sequências cada vez mais picantes. Ela retornava com vídeos simulando coitos com dildos, o chamando entre esgares e gemidos. Ao que ele respondia com filminhos se masturbando. Tendo um nome de prestígio a zelar, Aurélio tinha como certo que Zélia não se exporia divulgando essas imagens. Dessa forma, se sentiu seguro.

Aurélio não contava com uma trama do destino. Zélia conhecia Marisa. Ambas faziam parte de um grupo de mulheres que brincavam com homens através das redes sociais. No encontro semanal do grupo, Marisa mostrou as fotos e vídeos que trocara com Aurélio. Zélia a ouviu elogiar o marido como um “gostoso” que tinha a intenção de encontrar pessoalmente de boca e pernas abertas. A experiente médica preferiu manter a amiga de brincadeiras prazerosas, mas não tinha certeza sobre o marido.

A notícia no dia seguinte era a do administrador de meia idade que morrera com um fulminante ataque cardíaco durante o sono.

Foto por Vlada Karpovich em Pexels.com

BEDA / Casado*

casamento mulher grávida 5 meses
eu branco ela rosa
separados pais unidos na cerimônia
espanha arrozal volta redonda
são paulo leste norte família
família meu norte
primeira filha estranha sorte
deixei trabalho cuidado constante
fiquei parado ano e meio meia-lua no sangue
da menina mais linda que já existiu
corridas repentinas hospital
queda hemoglobina intervenções cirurgias
muitas vezes vaso oclusão
quase para o coração
dor… dor… dor… dor…
dela minha nossa da mãe avós de quem ama
com dor conviver sobreviver viver
segunda filha alento
alegria gordinha sorriso banguela
espevitada indômita amada
vida que segue que siga consigo
melhorar melhor ar para respirar
muito trabalho pesado estressado
como previ ainda garoto nasce a terceira
menininha quero carninha nossa miquinha
brilhinho no olhar lindinha
estava bem mal feliz infeliz
sem saber o que quis o que diz 
corpo sofre frustração somatizado
separação coluna cervical
gastrite hemorragia intestino
minha filha em crise pareci
6 de hemoglobina quase pereço
não me importa destino
amargo ressentido anjo torto
revivo renasço outra vez luto
permanente luto
por alguns dos meus eus
engordo feito porco 105 quilos
tomo coca 2 litros
misturo achacolatado açúcar
me afogo docemente meu corpo desfigurado
em silêncio desejo partir inflado exacerbado
monstro nervoso insuportável transformado
a minha secura sedento de morte
hiperglicemia setecentos e um quarto
termino internado u.t.i. um quarto
renasço querendo transformação
antes da extrema-unção
busco melhorar emagrecido agradecido
revisitar minhas prioridades
ultrapassar minhas idades
morrer não é ruim
pior viver sem ter fim
e não saber nada de mim.

*Poema de 2021

Imagem: Foto do casal, Tânia e eu, em 2009, aos 21 anos de casamento, dois anos após a crise hiperglicêmica.

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelin / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Dose de Poesia / Claudia Leonardi / Alê Helga