Cheiro De Mulher*

Domingo frio e chuvoso e, logo cedo, começo a pensar, por efeito dos poemas que postei ontem e no dia anterior, que faziam parte de um projeto musical que não foi adiante, sobre a possibilidade de um homem conseguir se colocar no lugar de uma mulher e tentar descrever emoções e sentimentos que são tão particularmente delas, que só podemos, como homens, arranhar.

A minha voz é masculina e, ouso dizer, para horror de algumas pessoas que confundem essa consciência masculina de macho, com machismo, que eu me sinto muito confortável em ser um homem, ciente de todos os defeitos que isso possa acarretar, incluindo a não percepção correta do mundo como um todo. Ainda que a vergonha causada ao meu gênero pelos machistas de plantão me entristeça profundamente, quando não me enoje de tal maneira que penso em pedir desculpas a cada mulher que passe.

Eu não me importo ou, de outra parte, até apoio quando alguém se aceita não conformado com o seu gênero e decide se identificar como de outro gênero. Todos mais próximos de mim sabem o quanto admiro quem tem essa disposição em ser aquilo que sente ser. Tenho amigos queridíssimos que se declaram, se posicionam, “se vestem” e se mostram aquilo que sentem ser. Eu, de minha parte, amo às mulheres e tenho certa inveja de alguns predicados especiais que elas detêm, como o de sentir cheiros, por mais discretos que sejam. Adiante, no último poema da trilogia, sou eu, homem, que expressa se apaixonar por um cheiro de mulher.

CHEIRO DE MULHER

Passei pela multidão e entre tantos, a senti
Entretanto, ao procura-la, não a vi
Absorvi seu aroma por minha narina
Respirei um novo ar, que mudou minha sina

Não era Chanel Nº 5 ou qualquer outro perfume
Era o seu cheiro de mulher, em profundidade e volume
Envolvente, penetrante, extasiante e traiçoeiro
Porque logo que o senti, o perdi, o tomei por derradeiro

Como encontrá-la, como procurá-la no povaréu?
Como perseguir a fragrância que me deixou ao léu?
Quem sabe, um dia, em meus braços não a tomarei?
Então, em vez de possuí-la apenas por um sentido, por inteira a sentirei…

*Texto publicado no Facebook em 2015

Visão Espelhada

Há muitas maneiras da realidade se revelar. No mínimo, devemos sempre contemplar pelo menos duas visões – a nossa e a do outro lado do espelho. A cada situação que se coloca como dilema ou dúvida, exercito a dualidade que se apresenta e costumo exercer essa prática mesmo em questões aparentemente simples e menos sérias.

Uma das oportunidades em que me senti provocado ocorreu quando em um vídeo, um homem diz para o cachorrinho: “eu tenho uma notícia prá te dar: você é cachorro, você não é gente” – após o que a fisionomia do companheiro denotaria surpresa. Postado no grupo da família, escrevi que “se souberem que nós somos gente e não cachorros, seria capaz de deixarem de nos amar…”.

Refletindo sobre isso, não acho que esses seres especiais considerem diferenças entre as nossas espécies como fundamentais. Aliás, movidos por sentimentos irreprimíveis de afeição, “sabem” que pertencemos ao mesmo grupo, sem nenhuma distinção. O elo que nos une é o amor demonstrado sempre que possível, mantido por fidelidade “canina”, apesar de nossas falhas.

A base de sustentação da frase dita pelo tutor parte da ideia de que ser gente teria uma importância superior à de ser um cão. A depender de certas premissas, isso é bastante discutível. Por mim, a surpresa do cachorro poderia se dar mais pelo fato dele fazer menção a uma circunstância que sequer deveria entrar no contexto. Ao amarmos um ser, o desejo é o de nos comunicarmos com ele, que o compreendamos e nos façamos ser compreendidos.

A comunicação pelo olhar em muitos casos é mais evidente do que por palavras e suas devidas gradações de tons. Assim como a linguagem gestual igualmente pertence ao rico diálogo entre nós. Essa relação só nos aprimora como seres humanos. As lições que nos dão são muito mais efetivas do que as impostas como mandamentos.

Antes desse episódio, em conversa com a Tânia, que reclamou do cheiro da Bethânia que insistia dormir em nossa cama, rebati que eles não se importam com o nosso cheiro, apesar de muitas vezes não nos parecerem tão bons para nós mesmos. Ao contrário, sentem falta de nosso “perfume” por ser uma das formas mais poderosas para nos identificar.

A partir daí, procurei não fazer tanta conta dos odores emitidos pelos cães, ainda que alguns não me agradasse eventualmente. A Bethânia tem um cheiro específico que mesmo após o banho, perdura. É famoso o odor de salgadinho de suas patinhas. Nós nos perfumamos com olores que não nos pertencem desde séculos antes, mesmo em grupos mais primários. Ainda assim, os cachorros conseguem diferenciar o nosso cheiro por trás de nossas manobras para despistá-los e nos amam ao sermos apenas nós mesmos.

Eu me sentiria bem triste se um companheiro canino me dissesse: “ei, tenho uma notícia para lhe darvocê não sabe amar como um cachorro!”.

BEDA / Scenarium / Sofá Com Pimenta*

SOFÁ COM PIMENTA
Bethânia, a inocente

Qual o limite do amor? Ou, como prefiro expressar – o limite de amar? Uma das fronteiras que facilmente podemos averiguar ultrapassadas se dá visualmente em nosso sofá. Um sofá com pimenta… e rasgos.

Dado o fato que as “meninas” da casa, especialmente a Bethânia, começaram a morder os cantos do sofá, passamos a colocar pimenta para evitar que continuasse a rasgá-los. Pelo visto, Bethânia entendeu o condimento como se fosse um incentivo, porque outras partes do sofá começaram a ser devidamente abocanhados.

Quando a pegávamos no ato da transgressão, a admoestávamos, dávamos tapinhas de contrariedade, mas parece que a memória dela era menor do que a vontade imensa de deixar as suas marcas em um local tão frequentado por nós, seus humanos, com os nossos cheiros.

Afora os pelos deixados pela mais velha, Penélope, com 13 anos, que tem o privilégio de dormir dentro de casa apesar dessa tosquia involuntária, dos xixis esparsos, nós nos desdobramos para deixar a casa menos bagunçada e limpa. Em outros tempos, principalmente para a Tânia, seria motivo de desespero apenas a ideia de um pelinho no chão.

Podemos estar, aos olhos externos, menos asseados, mas creio que ganhamos em registro de fragrantes fulgurantes do amor. Por fim, apesar da precariedade e do desequilíbrio de conceitos, podemos ver crescer a apreciação que amar também é aceitação dos defeitos e das fraquezas de quem está conosco, humanos ou não.

*Desde esse texto de 2017, a degradação do sofá progrediu a ponto de não ser mais possível recuperá-lo. Não apenas esse, o maior, como os outros dois, individuais. Tivemos que comprar outros para substituí-los. Usados. Os atuais estão resistindo bravamente, muito devido ao fato de a Bethânia ter ficado mais velha e mudado o seu comportamento.

Beda Scenarium

Décio*

DÉCIO

Quando vejo qualquer imagem, ouço qualquer palavra, experimento qualquer sabor, cheiro qualquer olor ou aprisiono em minhas mãos qualquer objeto, desenho na parede da minha imaginação a linha reta que desvirtua a realidade, aperfeiçoando-a. Traço o meu caminho colocando cada pedra devidamente plana em direção ao abismo. Homenageio o poeta que não sou e não serei, erijo a porta que não ultrapassarei. Existo e hesito em reconhecê-lo.

No entanto, a expressão do que sinto insiste em se fazer presente, mesmo que seja o sol da manhã emparedado. Esta é a minha singela homenagem a Décio Pignatari, que ajudou a despertar em mim, com a sua obra, o gosto pela brincadeira de escrever.

* Dos tempos que não acreditava ser escritor.