passava quinze minutos depois da meia-noite a carta chegou colocada por debaixo da porta do quarto estava acordado e percebi uma sombra se afastando pelo corredor do hotel não era a primeira vez e me levantei do sofá a tempo de ver alguém dobrando a esquina era mais um texto quase indecifrável porque a letra era trêmula e oscilante não sei qual a pretensão do autor ou autora do texto mas entendi se tratar de um aviso sobre a minha esposa que ficou em casa o fato de ser uma carta tradicional deu um tom de coisa solene e grave feito um drama de novela de amor daqueles com sobressaltos e revelações de traição e denúncia de amores não correspondidos ciúme e dor nada disso eu senti sabia que mariana tinha alguém com quem se reunia nas minhas ausências por viagem de negócios eu mesmo deixei de amá-la há algum tempo mas não tenho ninguém apenas casos avulsos encontros fortuitos mulheres que são amigas e com quem tenho identificação mariana de saber aliás ciúme já não há levamos a vida dessa maneira solta sem ataduras compreensão de nossas faltas e predicados amigos casados e satisfeitos com a desunião de corpos…
Bethânia foi resgatada em dia de chuva. Abandonada à própria sorte, parecia estar em busca de ajuda, pequena feita um rato orelhudo, esquisita por certos padrões, quando chegou em casa, tomou um banho, após comer algo, lhe ofereci o primeiro colo. Adormeceu profundamente. Desde então, tornou-se ligada a mim e eu, a ela. Na minha ausência de um mês no início de 2021, era dela que sentia a maior falta. Com os seres humanos, conversava diariamente. Com ela, apenas conexão mental.
Crescida, foi demonstrando o seu ciúme, superprotetora, a ponto de dormir à porta do quarto do casal. Isso, quando não nos descuidamos e a descobrimos entre as cobertas pela manhã. Sofre muito com o frio. Tem o pelo curto e, muito musculosa, tem pouca gordura. Exímia saltadora, utiliza a mureta da varanda para acessar a laje da vizinha, minha irmã, andando feito cabra montanhesa por sua beirada. De lá, observa o movimento da rua abaixo, denunciando a passagem de cães intrusos.
Fixada em pedras do jardim, costuma colecioná-los, tendo a sala como ponto de exposição. Ultimamente, apaixonou-se por bolinhas com as quais brinca quando as deixa no alto da escada até vê-los cair em sua direção. Mesmo adormecida, procura se certificar de que não fiquem longe de sua atenção. Impulsiva, “cheia de manias, toda dengosa”, ocupa o nosso dia com as suas expressões quase humanas e latidos ricos em referências e significados. Sincera, fala pelo olhar muito mais do que certas pessoas. Quase diria que é o meu ser senciente favorito…
Post Scriptum: esqueci de seu pendor para roer zíperes das almofadas. Reclamação constante da Tânia, que agora mesmo está consertando mais uma de suas proezas.
Na imagem, atrás da Bethânia, quase despercebida, a carinha da Indie, que foi doada.
Ciúme, o seu nome é Maria Bethânia. Quando começo a acarinhar as outras, ela logo se põe a protestar veemente. Chega a morder a minha mão e atacar fisicamente as demais do grupo, não importando os tamanhos dos alvos, diante de sua contrariedade desmedida.
Quando quero chamar a sua atenção ou quando a chamo e ela não me atende imediatamente, uso sempre o expediente de passar a mão pelas cabeças das amigas, o que é suficiente para transformá-las em oponentes, vindo em nossa direção, a enfrentá-las, ainda que saiba que são maiores e mais fortes do que ela.
De onde deriva esse ciúme, afinal? Sou aquele que não deve dividir a minha dedicação e zelo com mais ninguém? Ela se sente minha proprietária? Um sentido de territorialidade natural exacerbada talvez explicasse a sua reação, no entanto, o seu cuidado não se estende tão fortemente à sua cama nem ao pote de comida, aliás, quase nada.
A contrariar o fato aceito de que somos a nós a possuí-los (a determinar-lhes o destino), quem decide levar a cabo os melhores cuidados a esses seres especiais, sabe que somos nós a sermos possuídos por eles. Será que chegam a ter consciência que seja um pecado sério dispensar atenção a mais alguém além deles, da família dos canídeos e de outros seres humanos?
O meu desejo de expressar em palavras as minhas suposições foi motivada por um episódio. Quando fui à casa da minha irmã, que mora ao lado, logo na entrada acarinhei a Vitória e a Dominique. Qual não foi a minha surpresa ao ouvir um latido lastimoso vindo da minha varanda. Lá estava a Bethânia, a demonstrar o seu desacordo em relação à minha afetividade por aquelas que conheço há anos. O seu olhar era quase desesperado. As suas orelhas eriçadas quase tocavam o céu!
MariaBethânia foi resgatada da rua por uma das minhas filhas humanas a pedido da minha companheira, Tânia. Em direção ao trabalho, ela a viu a correr sem rumo por nossa vizinhança e quase entrar debaixo de seu carro, condoeu-se de sua condição. Era um sentimento novo para ela, que nunca foi tão achegada aos cães. A experiência de acompanhar a Dorô em sua jornada de combate ao câncer que finalmente a vitimou, lhe trouxe a inesperada percepção da nossa imensa conexão com esses seres únicos.
O meu interesse pela origem do ciúme de MariaBethânia é quase antropológico – no sentido que o cão é um ser que tem, ao longo dos tempos, adquirido comportamentos assemelhados ao do Homem. De modo geral, além da inteligência básica, são seres-repositórios de emoções e sentimentos puros e sem medidas. Amor e ciúme, sem dúvida, estão entre eles. Nos cães, a força da irracionalidade se expressa, então, de maneira mais acintosa. Amor, ciúme, posse — onde começa um e termina outro?
Há a eterna discussão se o amor é uma construção sociocultural ou uma condição intrínseca aos seres humanos; se a sua base é espiritual ou físico-química; se é algo substancial a ponto de ser verificado expressamente ou uma ilusão mental… Creio que a ligação que desenvolvemos com os outros animais, principalmente os mais próximos de nós, “aculturados”, possa dizer muito sobre a própria condição humana. Talvez possa vir a desvendar se amor e as suas emoções subsidiárias, como o ciúme, revela-nos animais básicos ou, basicamente, que somos animais confusos demais para sabermos o que sentimos, quando sentimos…
*Texto de 2017, constante de meu primeiro livro de crônicas lançado pela Scenarium — REALidade
ela é uma mulher apaixonada pela vida e se apresenta apaixonada por mim mas não sou toda a sua vida e nem quero que seja quero acrescentar não completar duvido de mim eu não me sinto suficiente ciente que estou de meus vazios minhas faltas minhas incompletudes mas com ela me sinto bem quase outro esse outro é bem melhor chego a sentir ciúme dele… ainda que seja eu em pele carne osso pensamentos perfil estrada calçamento meio fio do caminho que desejo trilhar ainda que seja no meu terço final quero alcançar o arco-íris multicolorido feito casario colonial navegar com os olhos pelas águas da veneza tropical submergir na cultura do lugar meu coração ao compasso pulsante em pífanos cantos violas enluaradas maracatu caboclinhos coco-de-roda ciranda samba afoxé frevo caminhar por boa viagem reconhecer a mim o que ama amante aquele que se atreve a ser e ao tê-la em meu braços me ter…