Domingo de Futebol

Domingo de Futebol

Eu jogava futebol com meu amigo Beto desde garoto. Depois do tempo da escola, continuamos juntos no time do Seu Aléssio em disputadas partidas em campos de várzea. Findo o tempo dos Contras, durante anos, passamos para o tradicional futebol de domingo de manhã toda a semana, junto a outros amigos e conhecidos. Foi assim por por uns dez anos. Parei e fiquei outros dez anos sem frequentar os campos de Society com a turma. Mas voltei há a atuar durante certo período há cinco anos, mais ou menos, de manhã.

Quase na mesma hora que teria que levantar para ir jogar, frequentemente estava voltando dos eventos nos quais trabalho. Quando mais jovem, até aguentava o tranco, quando não havia evento no mesmo dia. Com o aumento da demanda e do acréscimo dos anos às costas, ficou cada vez mais difícil conciliar trabalho e prazer, ambos cansativos fisicamente. Na época, tive dengue. A musculatura, sofreu com a doença. Frequentemente, me contundia. Deixei novamente de jogar. Hoje, apenas sonho que jogo, cada vez menos…

Aprendi a gostar do meu trabalho e jogar era dor-prazer-lazer. No trabalho, carregar, montar, ajustar som e iluminação, fazer a passagem do som, encontrar colegas talentosos no canto, na dança ou narração não deixava de ser prazeroso, porém se revestia da característica do dever a ser cumprido da melhor forma possível. Durante um tempo, não conseguia relaxar tanto quanto hoje, em que consigo me divertir até com a função de subir os equipamentos até segundos ou terceiros andares dos salões, muitas vezes sem elevador. No futebol, o corpo sofria o estresse por correr, se alongar, se contrair, se atirar para executar um movimento mais amplo, saltar mais alto para alcançar a coisa mais desejada da vida naquele momento – a bola.

Durante o tempo de jogo, nada acontecia fora das quatro linhas. Não que me esquecesse de todos os problemas do mundo. Simplesmente, não havia um mundo fora dali. No futebol, as regras externas se diluíam, não havia diferenciação social ou qualidade física que não fossem superadas pelo talento no jogo. O office-boy, o estoquista, o microempresário ou o dono de posto de gasolina, em boa forma física ou acima do peso visavam conseguir, juntos, trocar passes, se movimentar, defender sua meta e assinalar gols. Todos desejavam congregar e chegar à vitória. E caso contrário, perder também fazia parte do pacote. Muitas vezes, eram mais valorizadas a derrota bem jogada contra um timaço do que a vitória “mamão-com-açúcar” contra um time “meia-boca”.

A linguagem usada no campo de futebol também era alternativa e restrita. O vocabulário se resumia a dez ou doze palavras e poucas expressões, sempre acompanhadas das indefectíveis “porra” e “caralho”. Essas termos tanto podiam ser usados como substantivos ou adjetivos, além de servirem eventualmente como pronomes. Havia muita discussão e entreveros entre nós e os adversários, bem como entre nós mesmos, que se encerravam depois que saíamos do campo e íamos para o bar comer porcarias e beber umas (várias) cervejas. Bem, eu nunca bebi álcool, mas participava do grupo com as minhas opiniões “papo-cabeça” acompanhadas de uma legítima Coca-Cola na garrafa de vidro, a melhor…

De vez em quando, esposas, filhas e namoradas acompanhavam alguns jogadores, mas, na maioria das vezes ficavam conversando à margem assuntos que não tinham nada a haver com o que acontecia dentro do campo. O sacrifício que faziam em acompanhar os seus parceiros devia ser comparável ao do deles em acompanhá-las às compras.

Em uma das últimas ocasiões que joguei, teríamos um churrasco depois do jogo. Eu não poderia ficar porque tinha coisas a fazer, mas não sei se ocorreu realmente o congraçamento, já que o responsável pela carne e acompanhamentos, brigou com o pessoal por não ter sido colocado no time e parece que foi embora antes do final da partida. Infelizmente, no intercâmbio de dimensões, um mundo acabou por invadir o outro…

Interpretação

INTERPRETAÇÃO
Coração de luz…

Todos nós interpretamos – estabelecemos signos, deciframos significados, nos desentendemos por significantes. Todos nós interpretamos papéis – vivemos, acontecemos e fazemos acontecer. Os meios pelos quais realizamos essa intermediação se dá pelos sentidos em vários níveis de sensibilidade, gerando sensações, emoções e sentimentos. Nossas atuações ocorrem neste palco, a Terra, em diferentes cenários – oceanos, continentes, países e nações. As nações são compostas por etnias, religiões, ideologias, gêneros, divididas por classes econômicas – vestimentas usadas por cada pessoa que as carregam – nós, os atores.

Atuamos baixo a organizações sociais – famílias, amigos, grupos de trabalho – que se interpenetram e se interpretam. Muitas vezes de forma pacífica e produtiva, outras de maneira violenta e desintegradora. Desenvolvemos, ao longo dos séculos, formas complexas de comunicação que deveriam facilitar a convivência em conjunto. Porém, parece que, como quaisquer ferramentas, são utilizadas para destilarem o ódio e ajudarem a implantar sistemas de castas blindadas – vertical, horizontal, perpendicular e circularmente.

Acresce-se que a falta de uma boa interpretação de texto, auxiliada por preconceitos que distorcem sons e embaralham imagens, acabando por tornar tudo uma questão de versão. Transformamo-nos em uma espécie de torcedores de times de futebol em política e em outros assuntos fundamentais que regem nossa vida. Essa distorção, nos faz prisioneiros de manipuladores-diretores, que se beneficiam desses embates. Estabelecer dinâmicas que sejam equilibradas torna-se quase impossível, se não estivermos preparados para comandar nossas próprias visões.

Ressalve-se que o nivelamento de ideias pela média também não é uma boa saída. Muitas vezes, criam-se unanimidades “burras”. Nelson Rodrigues sintetizou exemplarmente essa característica – uma ideia, ao se tornar hegemônica, passa a ser aceita sem muitos questionamentos, deixando-se de pensar sobre ela, gerando um efeito-manada. Para mim, as diferenças e as minorias, assim como os animais em extinção, devem ser preservadas – como exemplo histórico (ainda que negativo) ou como repositório da riqueza humana. Nada é tão simples. Tudo apresenta um custo. Para os pensamentos inusitados, tolerância. Para os que ameaçam a vida, eterna vigilância.

Nesse momento, entram em jogo interpretações dos diversos grupos que se digladiam para implementarem soluções que julgam ser eficientes e permanentes. A linguagem da violência é um poderoso argumento em situações se apresentam no limite entre o bem e o mal. Aliás, na minha interpretação, essa é uma alegação falaciosa. Não existe um tempo sequer onde o bem e o mal não se faça presente na vida de qualquer ser humano, particular e coletivamente. Aliás, os critérios que determinam o “bem” e o “mal” são igualmente “interpretativos”. Soluções finais surgem de tempos e tempos para eliminar essa característica humana que existe desde que Caim matou Abel – seu lado obscuro. “Deus” chegou a enviar um dilúvio para combater o mal que se propagou por sua criação. Parece que não foi tão bem-sucedido.

Em busca das origens que ameaçam as pessoas em sua segurança física, as causas mentais se sobrepõem. É comum muitos as chamarem de espirituais. As Crenças – transformadas em instituições físicas – organizadas secularmente, apesar de propagarem o “Espírito” como cerne de suas pregações, são usadas como sustentação de teses que referendam posições de antagonismo à liberdade de ser. Dessa forma, busca-se formatar comportamentos desviantes como responsáveis pelo “mal”. Não aceitam o contrário, o contestatório. Como conviver com tantas diferenças não é fácil, incitam a intolerância e tentam matar, no nascedouro, ideias diferentes do que julgam reto. O olhar de ódio é o seu pressuposto. A violência, a sua manifestação.

A História, tão desprezada no Brasil, a tal ponto que preferimos gastar mais dinheiro na lavagem de carros oficiais do que na manutenção de nossos museus, nos revela caminhos que já trilhamos antes, como seres viventes neste mundo. Muitos de nós, testemunhamos diretamente muitos desses acontecimentos – manchas em nosso tecido social. Sabemos no que desembocará se persistirmos em percorrê-lo – o abismo. Pergunta-se: aos oponentes do poder estabelecido, segundo um antigo general-governante, deverá ser aplicada a máxima de “prender e arrebentar”? Atulharemos todas as prisões de “desviantes” dos preceitos reguladores estabelecidos? Torturaremos os renitentes?

No entanto, se em vez do olhar prepotente e eivado da raiva congênita humana, adotarmos outra arma? Essa arma não é material, mas transforma a matéria em vida. Não é violenta, mas aplaca com eficiência o violento. É uma arma pessoal e coletiva. Pode ser usada por todos, indistintamente: homens, mulheres e outros perfis de gêneros. Crianças, jovens e velhos podem empunhá-la, usá-la de todas as maneiras. Em vez de seguirmos a herança de Caim, nos revolucionaremos pelo amor. Quem se imbui de olhar amoroso apresenta uma postura mais tolerante e mais compreensiva. O que proponho, já foi tema desde versículos da Bíblia (compêndio de três igrejas hegemônicas) a livros de “profanos”. É um olhar ingênuo, no melhor dos sentidos. É de curiosidade, no mais amplo alcance que possa ter. É um olhar pasmo*, a ponto de ver materializado um coração de luz a bater na parede do banheiro – sol poente na janela d’alma…

*O Meu Olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar…

Alberto Caieiro – Heterônimo de Fernando Pessoa