BEDA / O Leitor De L.I.V.R.O.

O exercício da leitura sempre me fascinou, mas como me deixei levar demais por seus “descaminhos”, vivia mais literariamente do que literalmente. Não que a obsessão pela leitura costume causar esse tipo de efeito, mas em mim causou. Adolescente, comecei a perceber que não me enquadrava no ambiente que vivia. Era um garoto da Periferia que era mal compreendido por falar um português mais rebuscado e que não estudava muito para não ficar adiante demais em relação à sua turma, pois como todo adolescente, desejava me enquadrar de alguma forma. Gostar de futebol, fez com que ficasse menos isolado e o fato de ser esforçado e tecnicamente razoável, garantiu que estivesse em contato constante com os garotos da escola. As meninas, as deixava compulsoriamente destacadas como objetos de paixões platônicas.

Em determinada época, substituí a leitura compulsiva por escritura compulsiva, antes mesmo de conhecer vários clássicos que me impediriam que eu buscasse reinventar a roda a todo o momento. Acabei ficando com uma base de segunda mão. E depois, quando percebi que nada disso me garantiria que eu tivesse uma vida “normal”, algo que eu pudesse construir que tivesse substância, como família e filhos, deixei de escrever. Por quase vinte anos, não me senti impelido a buscar caneta e papel para me expressar. São reviravoltas que talvez não fossem necessárias, porém para mim significava estabelecer marcos que indicassem claramente a minha escolha e a estrada a percorrer.

O advento da Internet e das redes sociais, acabou por ser um impulso forte o bastante que recomeçasse a me aventurar pelo uso da palavra escrita. Porém, ainda sou maravilhosamente “desencaminhado” pela leitura, do qual sou dependente, ao menos para trazer para perto de mim adictos como eu para formar uma turma na qual eu não me sinta tão deslocado como antes. Assim como encontrei um nicho onde pudesse colocar a minha escrita publicamente no formato eterno de um livro a Scenarium.

Passo adiante um texto primoroso do primoroso Millôr Fernandes que resume exemplarmente tudo o que se pode dizer sobre um livro:

“L.I.V.R.O.

Existe entre nós, muito utilizado, mas que vem perdendo prestígio por falta de propaganda dirigida, e comentários cultos, embora seja superior a qualquer outro meio de divulgação, educação e divertimento, um revolucionário conceito de tecnologia de informação. Chama-se de Local de Informações Variadas, Reutilizáveis e Ordenadas L.I.V.R.O.
 
L.I.V.R.O. que, em sua forma atual, vem sendo utilizado há mais de quinhentos anos, representa um avanço fantástico na tecnologia. Não tem fios, circuitos elétricos, nem pilhas. Não necessita ser conectado a nada, ligado a coisa alguma. É tão fácil de usar que qualquer criança pode operá-lo. Basta abri-lo! 

Cada L.I.V.R.O. é formado por uma sequência de folhas numeradas, feitas de papel (atualmente reciclável), que podem armazenar milhares, e até milhões, de informações. As páginas são unidas por um sistema chamado lombada, que as mantém permanentemente em sequência correta. Com recurso do TPO Tecnologia do Papel Opaco os fabricantes de L.I.V.R.O.S podem usar as duas faces (páginas) da folha de papel. Isso possibilita duplicar a quantidade de dados inseridos e reduzir os custos à metade! 

Especialistas dividem-se quanto aos projetos de expansão da inserção de dados em cada unidade. É que, para fazer L.I.V.R.O.S com mais informações, basta usar mais folhas. Isso, porém, os torna mais grossos e mais difíceis de ser transportados, atraindo críticas dos adeptos da portabilidade do sistema, visivelmente influenciados pela nanoestupidez. 

Cada página do L.I.V.R.O. deve ser escaneada opticamente, e as informações transferidas diretamente para a CPU do usuário, no próprio cérebro, sem qualquer formatação especial. Lembramos apenas que, quanto maior e mais complexa a informação a ser absorvida, maior deverá ser a capacidade de processamento do usuário. Vantagem imbatível do aparelho é que, quando em uso, um simples movimento de dedo permite acesso instantâneo à próxima página. E a leitura do L.I.V.R.O. pode ser retomada a qualquer momento, bastando abri-lo. Nunca apresenta ‘ERRO FATAL DE SENHA’, nem precisa ser reinicializado. Só fica estragado ou até mesmo inutilizável quando atingido por líquido. Caso caia no mar, por exemplo. Acontecimento raríssimo, que só acontece em caso de naufrágio. 

O comando adicional moderno chamado ÍNDICE REMISSIVO, muito ajudado em sua confecção pelos computadores (L.I.V.R.O. se utiliza de toda tecnologia adicional), permite acessar qualquer página instantaneamente e avançar ou retroceder na busca com muita facilidade. A maioria dos modelos à venda já vem com esse FOFO (software) instalado. 

Um acessório opcional, o marcador de páginas, permite também que você acesse o L.I.V.R.O. exatamente no local em que o deixou na última utilização, mesmo que ele esteja fechado. A compatibilidade dos marcadores de página é total, permitindo que funcionem em qualquer modelo ou tipo de L.I.V.R.O. sem necessidade de configuração. Todo L.I.V.R.O. suporta o uso simultâneo de vários marcadores de página, caso o usuário deseje manter selecionados múltiplos trechos ao mesmo tempo. A capacidade máxima para uso de marcadores coincide com a metade do número de páginas do L.I.V.R.O. 

Pode-se ainda personalizar o conteúdo do L.I.V.R.O., por meio de anotações em suas margens. Para isso, deve-se utilizar um periférico de Linguagem Apagável Portátil de Intercomunicação Simplificada – L.A.P.I.S. Elegante, durável e barato, L.I.V.R.O. vem sendo apontado como o instrumento de entretenimento e cultura do futuro, como já foi de todo o passado ocidental. São milhões de títulos e formas que anualmente programadores (editores) põem à disposição do público utilizando essa plataforma. 

E, uma característica de suprema importância: L.I.V.R.O. não enguiça!”

(Millôr Fernandes) 

Adriana Aneli / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso
/ Alê Helga /  Lunna Guedes / Claudia Leonardi / Darlene Regina  

O Governante Supremo (Vaidade)*

7 PECADOS

O Governante Supremo lhe aprazia tudo uniformemente organizado. Desde jovem percebera que o seu talento era o de utilizar o talento alheio para alcançar os seus objetivos e, mesmo sendo alguém de aparência comum, nem feia nem bonita, porém equilibrada, conseguia impor a sua presença por ser exatamente simples. Sempre comedido em seus gestuais e palavras, começou a se tornar referência de comportamento. A sua palavra principiou a ser buscada para a solução de impasses e dúvidas entre grupos antagônicos, sem saberem que, muitas vezes, fora ele a incitar a discórdia sub-repticiamente. Logo, tornou-se um líder.

Sabendo equilibrar as diversas forças que se rivalizavam na busca do poder – primeiro nos domínios sociais mais básicos, até os de maior alcance – chegou à unanimidade como voz representante de todas as tendências daqueles que viviam naquele mundo. Relativamente em pouco tempo, tornou-se “O Líder”.

Continuamente a impor a sua forma generalizadora de governança, durante o seu período de dominação, fez progredir as ciências de forma exponencial, em todos os campos. Porém, a sua menina-dos-olhos era ligada à manipulação genética e estudos relativos à neurologia. Criou grupos de estudos específicos ligados à área inventiva do cérebro. O seu sonho dourado era promover um nivelamento médio sustentável que garantisse maior chance de controle sobre os cidadãos, sem nuances, picos de excelência, altos e baixos.

Durante a última década, o nascimento de crianças pelo método natural fora praticamente abolido, sendo quase totalmente substituído pela produção artificial. Havia ainda grupos rebeldes à orientação central de controle de natalidade, mas estavam sendo paulatinamente isolados ideológica e fisicamente. A grande maioria acabou por concordar que o novo sistema era o ideal para a preservação da sociedade em nível mediano, com a correta e desejável bitola oficial.

Uniformizou as formas de expressões artísticas das mais variadas vertentes – Música, artes plásticas, dança, teatro, literatura – pouco a pouco, o Governante Supremo conseguiu impor a universalização de padrões dessas manifestações criativas de acordo com requisitos que permitiam certa liberalidade. Até o momento em que viessem a apresentar ameaça à ruptura do sistema de ordenação metódica que compôs ao longo dos vários anos que ficou no poder.

Contudo, uma forma de expressão lhe escapava a compreensão e ao mecanismo de controle – a literatura. Sabedor de sua limitação quanto às Letras, as tinha como inimiga do bem-estar social. Ao contrário do que se propagava – que uma imagem valesse por mim palavras – intimamente sabia que uma só palavra poderia equivaler a mil interpretações diferentes. Como evitar que a comunicação não fosse corrompida por pensamentos espúrios quando se escrevesse ou lesse a palavra “amor”, por exemplo?

Conseguiu convencer a população de que a aplicação de substâncias que harmonizassem a Área de Wernicke** do cérebro as tornariam suscetíveis a diretrizes que formariam futuras crianças mais aptas a atenderem as necessidades do grupo como um todo. O futuro seria auspicioso! Segundo a propaganda dos órgãos ligados ao Governante Supremo, isso garantiria a utilidade e consequente adaptação das pessoas ao Sistema.

O Governante Supremo já antecipava, com frêmitos de prazer quase físico, o tempo em que qualquer coisa que fosse pensada, escrita ou falada não ultrapassaria a excelência do padrão médio de comunicação. Chegaria o momento em que para completar a tarefa ingente de adequar todas as medidas de interpretação de texto, os livros criados até então, e que até então ganharam a alcunha de “clássicos”, seriam deixados de lado e, no máximo, serviriam para aquecer as noites de inverno em fogueiras organizadas pelo Ministério da Criatividade…

* Capítulo que compõe Sete Pecados, lançamento da Scenarium. (2015) – Diversos Autores

**Área de Wernicke é uma região do cérebro humano responsável pelo conhecimento, interpretação e associação das informações, mais especificamente a compreensão da linguagem. Graves danos na área de Wernicke podem fazer com que uma pessoa que escuta perfeitamente e reconhece bem as palavras, seja incapaz de agrupar estas palavras para formar um pensamento coerente, caracterizando doença conhecida como Afasia de Wernicke.