manhã de amena insolação café na mesa
pão crocante manteiga sem sal creme de ricota mel cereja
mamão uva geleia de morango chocolate e surpresa
com toda a delicadeza você se esgueira entre os pés
do tabernáculo sagrado da refeição matinal
abaixo da elevação ouvimos o som da água
descendo em correnteza que se choca entre as pedras
retumbante em dança música da natureza de ser
livre presente em se desfazer e se reagrupar
em poças filetes remansos limpos rebeldes
aproveita que estou apenas de calção
retira a proteção fico exposto à sua adoração
eu que já adivinhava a sua intenção
já sentia intumescer aquele que pensa por si só
e você ama que ele responda mesmo depois de tantos anos
a sua boca o beija passeia a língua por onde deseja o possui
estamos ao sul de qualquer norte a luz solar a invadir
a nossa intimidade fluida inocente sem mancha
enquanto reza busca a profundeza de si geme eu urro
sem testemunhas de tamanha beleza quase choro
não é pelo gozo não é pelo prazer não é pelo vazio que me preenche
não é pelo abandono à consciência de que sou um com o todo
com a sua entrega me tem sob seu controle
apenas consigo entender que sou possuído
enquanto me sinto liquefeito mole
passeio por outros mundos vívidos
me energizo me perco me integro me entrego
enquanto você me engole…
me deixa exangue me arranca um sorriso
quando agradece: “obrigada pelo gole!”…
Etiqueta: controle
BEDA / Rachaduras Ou BBB 2022
Há dez anos, em abril de 2013, escrevi sobre a foto acima: “Um interessante painel de arte no túnel do Metrô Consolação e eu só conseguia olhar para as linhas de rachaduras marcadas a giz, sinalizando o tamanho que apresentavam, enquanto esperava o trem que me conduziria ao Paraíso. Que mal me assola que me faz olhar para além do que deveria ser o principal alvo de minha atenção? O que me conduz, me condiz?”
De certa maneira, esmiuçar fatos, verificar repercussões e buscar efeitos por menores que sejam derivados ou mesmo alheios ao acontecimento principal, é um “defeito de meu olhar”. Um dos exemplos que exponho é sobre algo que vejo com interesse sociológico desde que surgiu. No início de sua formulação, assisti a três edições seguidas. Depois, deixei de prestar atenção por anos, mas em 2020 voltei a me interessar por perceber que espelhava um processo político-social para além do que qualquer pesquisa pudesse demonstrar. Afora de ter surgido no bojo da Pandemia de Covid-19. Eu me refiro ao “reality show” Big Brother Brasil ou simplesmente BBB, como passou a ser chamado. Nome formulado a partir do título do incrível 1984, de George Orwell, que retrata uma sociedade controlada e vigiada 24 horas por dia, típico de um regime político opressor.
A ideia do confinar pessoas sem aparentes conexões, de origens socioeconômicas, posicionamentos ideológicos, identidades de gênero e raciais díspares em um mesmo local por meses seguidos, com jogos e imposições aplicadas a partir de regras preliminarmente aceitas por contrato, se bem que os participantes não tenham conhecimento do que seja imposto, configura para mim quase como se fosse a estrutura imposta de fora para dentro em nossa Sociedade, ainda que seja considerada uma Democracia. Esse isolamento deixar quem está confinado alheio aos fatos mais recentes, fazendo com que contem apenas com o suporte de suas experiências pessoais, sem as balizas que normalmente usamos das informações que recebemos dos confrontos ideológicos estremeados a elas pela Mídia. Porém, os seus destinos metaforicamente sofrem a pressão de grupos organizados exteriormente, interessados em alavancar ou enterrar os percursos de cada participante.
Ao contrário de um regime opressor, ninguém chega à Casa por imposição, mas por escolha. O chamariz seria o prêmio em dinheiro, mas ser visto, conhecido e afamado a ponto de alavancar o que queira fazer são outros prêmios menores decorrentes dessa exposição transmitida pela TV o tempo todo ou em edições especiais e programadas. A dinâmica da mútua convivência é potencializada pelas circunstâncias que englobam gradações que refletem referências exteriores — Camarote, para os aquinhoados; Pipoca, para os seres comuns — estipulados muito mais por critérios de penetrabilidade pública do que por capacidade financeira.
Mesmo assim, a simpatia por pessoas conhecidas pode ser algo que pode mudar de acordo com a direção do vento ou humor dos telespectadores que, em última instância (supostamente), são quem decidem os vencedores entre os confinados nos chamados “paredões”. Os “heróis” passam por provas para designar quem irá passar pelo escrutínio do público. O desempenho nessas provas, a depender do olhar do telespectador, pode até angariar simpatia pelos perdedores, a depender de como se dá o embate de forças colocadas em movimento.
O que normalmente acontece na Sociedade de maneira mais velada é estimulada por armadilhas colocadas no caminho dos participantes, como os chamados “jogos da discórdia” que, entre outras, fazem explodir palavras exaltadas que expõem fraturas da convivência diária. A violência física é punida com a morte (expulsão). Ao contrário do que nem sempre acontece no mundo exterior. A alimentação ou a falta dela, mormente para quem vai para a Xepa (em referência aos restos de fim de feira), é um dos outros fatores que estimulam brigas entre “brothers and sisters”, o acaba por me fazer lembrar de uma das frases de minha mãe: “Onde falta comida, todos brigam e ninguém tem razão”.
A edição de 2020 foi reveladora de como as ações aparentemente inocentes de personagens sem relevância social ou política, podem vir a refletir, por uma conjunção de fatores, condições externas ao programa. Comecei a observar a identificação de uma torcida aguerrida por um dos participantes, raiando o fanatismo, por Felipe Prior, que apresentava um comportamento exaltado e bastante identificado com o dos simpatizantes do governo central. No “paredão” entre ele e a cantora Manu Gavazzi, de postura oposta à dele, a votação passou do bilhão de votos. Em proporção bastante equilibrada, o rústico participante foi eliminado, dando a nota do crescimento da rejeição aos posicionamentos ideológicos ligados a ele. Ao final, a vencedora foi a médica preta Thelma Assis, o que revelava a preponderância de ideias mais abertas ao contrário do viés conservador então vigente do público.
Na edição do BBB de 2021, a fórmula de colocar famosos no “reality” causou uma onda de “cancelamentos” em série de pessoas que não estavam acostumadas à pressão de lidar com os choques diários na convivência com pessoas que comumente não contestariam seus comportamentos na Sociedade “aberta”. Presos no mesmo espaço, em situações limites de confronto, a antipatia por alguns participantes chegou a quase 100%, como no caso de Karol Conká em sua eliminação. A possibilidade de poder odiar alguém de forma tão franca, intoxicou o público. Assim como amar desbragadamente a concorrente Juliette Freire, que venceu com mais de 90% dos votos.
Juliette, que passou a ser chamada apenas pelo primeiro nome, atraiu um número enorme de seguidores que a acompanham nas redes sociais e adquirem os produtos que anuncia de forma consistente, incluindo ingressos para temporada de shows como cantora. Ou seja, bem aproveitada, a exposição propiciada pelo BBB, para além do prêmio para o vencedor, se nada de mais de interessante tiver a apresentar, pode catapultar a uma “carreira de celebridade” — algo intangível quando a pessoa é afamada por ser famosa — corriqueiramente se alimentando de citações ou referências midiáticas, ditando modas e/ou se expondo em situações espetaculosas.
A edição deste ano apresenta participantes anódinos, sem o carisma de um Gil do Vigor, por exemplo que, ainda que não tenha vencido a competição passada, conseguiu desenvolver uma carreira sólida fora da “casa mais vigiada do Brasil”. Esse interesse em esmiuçar o comportamento de pessoas colocadas em circunstâncias que desafiam a estabilidade emocional e o equilíbrio mental em um ambiente controlado, mediante estímulos arquitetados para os colocarem em circunstâncias precárias, diz muito sobre como os telespectadores comuns — aqueles que vivem em condições controladas por um sistema invisível para a maioria deles — que passam horas votando para o seu favorito, discutindo apaixonadamente o destino de vidas que são fuziladas nos “paredões”. A mesma paixão que falta na defesa de direitos sociais e na clareza do processo político é dirigida na consumação de objetivos imediatos, em uma espécie de catarse coletiva.
Mediante isso, fora da casa, grupos de interesses os mais vastos, operam como se fosse uma indústria paralela, mas bastante identificada com o “jogo” em que são simuladas vidas por um fio. A eliminação é lamentada como se fora uma morte real e a permanência com a alegria de um (re)nascimento. Neste ano, um dos possíveis vencedores apresentava um controle exemplar sobre o seu comportamento, usando argumentos que operavam nos enganos e falas comuns lançadas a esmo por seus adversários, sendo colhidas e trazidas para o centro das discussões. Bem treinado na profissão de ator, geralmente no papel de mocinho, manipulava com astúcia todas as situações, improvisando quando o seu comportamento falseado sofria algum reparo. Encontrou como principal adversária justamente uma moça rica, empresária e “influenciadora” acostumada desde menina a reconhecer pessoas dissimuladas. Ao se postar como vítima de perseguição, tentava trazer para si a simpatia de quem se sente humilhado no meio social. Sairia vencedor usando os mesmos expedientes que muitos políticos aprendem em cursos de “marketing”. Ou seja, foi eleito o preferido por ser um típico manipulador. O público o aprovava, reverenciando sua “inteligência” e habilidade em ser um bom jogador. Sua vitória seria uma antevisão do pleito mais importante do início deste milênio no Brasil?
Os outros dois participantes finalistas carregavam a similaridade de serem pretos. Assim como o outro, fizeram parte do Camarote. Exemplarmente, têm atividades que são aquelas nas quais normalmente alguém dessa origem racial se sobressai na Sociedade brasileira — esportiva e/ou artística. Mas afora isso, a sobrevivência na Casa do BBB se deu por angariarem a simpatia do público versus a antipatia por outros participantes. Vencer esse “reality show” competitivo, apesar de todo “trabalho” dos grupos de influência, demonstra o que perpassa por trás do que eu chamaria de forma discricionária de “inconsciente coletivo” brasileiro e aos seus efeitos, por menores que aparentam, equivaleriam às rachaduras na parede social do País — irreparáveis por décadas ainda, mas escamoteadas eventualmente por “jogos reais”.
Participam do BEDA:
Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia /
Cláudia Leonardi
BEDA / Mentiras
Mariana, o título de sua missiva – as mentiras que esquecemos de dizer – me remete aos mecanismos da convivência social que utilizamos para que nos sintamos mais confortáveis diante da “violência” que é aceitar um ao outro, com todas as suas-nossas contradições. Referente ao Dia da Mentira, como resposta a uma postagem do nosso companheiro escritor, Joaquim Antônio, expressei que convivo com a mentira há sessenta anos, desde que eu nasci. Tempo que depreendi que a mentira é um sustentáculo da Sociedade.
As mentiras que dizemos tem a ver com o que desejamos. Os momentos de lucidez podem a vir a resultar em situações até engraçadas, pela quebra de poderosas regras não escritas. No meu casamento, a minha mãe recomendou para que o responsável pela condução da cerimônia pedisse a nós que repetíssemos as palavras: “na doença e na doença, na riqueza e na pobreza…”. Percebi que seria o momento do escritor intervir e tasquei: “na riqueza e, muito mais provavelmente, na pobreza”. Provoquei o riso dos convidados, descontraí o ambiente, mas no fundo era naquilo que eu acreditava.
E isso diz respeito às promessas feitas – “Mentimos que era para sempre, mentimos que a emoção seria sempre a mesma e mentimos que não sofreríamos”. No fundo, queremos acreditar e eternizar o instante, ainda que “saibamos” que esse não seja o padrão. O poder da crença carrega a força necessária para que o ser humano sobreviva. A fé seria outra mentira? Não é para quem crê que crê. Especulo que se vivemos a mentir e esquecemos de fazê-lo, mentimos que somos melhores do que somos. E me pergunto se mentimos ao deixarmos de ser francos sobre determinadas situações
Mentir seria como viver alternativamente. Porém, se essa é a norma, acaba por se tornar a realidade com a qual lidamos. Não é por outro motivo que os embates ocorrem e ficamos admirados quando encontramos quem mente a nossa mentira e podemos trocar impressões sobre as gradações das verdades alternativas. Filosoficamente, essa questão é discutida como possibilidades do devir, mas no sentido prático é manipulada por pessoas que controlam ou desejam controlar as demandas diárias de nossos sentidos, sentimentos, emoções e necessidades, na busca de maior poder.
A franqueza, a transparência nas respostas às circunstâncias, inviabilizaria que continuássemos unidos através de contratos materiais e imateriais não ditos, mas que concordamos em cumprir. Destruiríamos a Sociedade como a conhecemos se assim não fosse. Ou instauraríamos a liberdade de ser. As relações talvez se tornassem parecidas com as dos primeiros grupamentos humanos. No entanto, como a mentira é poderosa e é o viés de como percebemos o mundo, no tempo provou-se ser mais efetiva como regra da expressão da personalidade humana.
Para intermediar essa forma de comunicação, criamos linguagens em que a luz da verdade se consubstancia em arte e a autenticidade de cada um pode vir a se identificar nas obras de arte de todas as vertentes culturais. “Mentiras sinceras me interessam”…
Que saibamos reconhecer as nossas verdades em meio a tantas mentiras, Mariana!
Imagem: Foto por Florencio Rojas em Pexels.com.
O Governante Supremo (Vaidade)*

O Governante Supremo lhe aprazia tudo uniformemente organizado. Desde jovem percebera que o seu talento era o de utilizar o talento alheio para alcançar os seus objetivos e, mesmo sendo alguém de aparência comum, nem feia nem bonita, porém equilibrada, conseguia impor a sua presença por ser exatamente simples. Sempre comedido em seus gestuais e palavras, começou a se tornar referência de comportamento. A sua palavra principiou a ser buscada para a solução de impasses e dúvidas entre grupos antagônicos, sem saberem que, muitas vezes, fora ele a incitar a discórdia sub-repticiamente. Logo, tornou-se um líder.
Sabendo equilibrar as diversas forças que se rivalizavam na busca do poder – primeiro nos domínios sociais mais básicos, até os de maior alcance – chegou à unanimidade como voz representante de todas as tendências daqueles que viviam naquele mundo. Relativamente em pouco tempo, tornou-se “O Líder”.
Continuamente a impor a sua forma generalizadora de governança, durante o seu período de dominação, fez progredir as ciências de forma exponencial, em todos os campos. Porém, a sua menina-dos-olhos era ligada à manipulação genética e estudos relativos à neurologia. Criou grupos de estudos específicos ligados à área inventiva do cérebro. O seu sonho dourado era promover um nivelamento médio sustentável que garantisse maior chance de controle sobre os cidadãos, sem nuances, picos de excelência, altos e baixos.
Durante a última década, o nascimento de crianças pelo método natural fora praticamente abolido, sendo quase totalmente substituído pela produção artificial. Havia ainda grupos rebeldes à orientação central de controle de natalidade, mas estavam sendo paulatinamente isolados ideológica e fisicamente. A grande maioria acabou por concordar que o novo sistema era o ideal para a preservação da sociedade em nível mediano, com a correta e desejável bitola oficial.
Uniformizou as formas de expressões artísticas das mais variadas vertentes – Música, artes plásticas, dança, teatro, literatura – pouco a pouco, o Governante Supremo conseguiu impor a universalização de padrões dessas manifestações criativas de acordo com requisitos que permitiam certa liberalidade. Até o momento em que viessem a apresentar ameaça à ruptura do sistema de ordenação metódica que compôs ao longo dos vários anos que ficou no poder.
Contudo, uma forma de expressão lhe escapava a compreensão e ao mecanismo de controle – a literatura. Sabedor de sua limitação quanto às Letras, as tinha como inimiga do bem-estar social. Ao contrário do que se propagava – que uma imagem valesse por mim palavras – intimamente sabia que uma só palavra poderia equivaler a mil interpretações diferentes. Como evitar que a comunicação não fosse corrompida por pensamentos espúrios quando se escrevesse ou lesse a palavra “amor”, por exemplo?
Conseguiu convencer a população de que a aplicação de substâncias que harmonizassem a Área de Wernicke** do cérebro as tornariam suscetíveis a diretrizes que formariam futuras crianças mais aptas a atenderem as necessidades do grupo como um todo. O futuro seria auspicioso! Segundo a propaganda dos órgãos ligados ao Governante Supremo, isso garantiria a utilidade e consequente adaptação das pessoas ao Sistema.
O Governante Supremo já antecipava, com frêmitos de prazer quase físico, o tempo em que qualquer coisa que fosse pensada, escrita ou falada não ultrapassaria a excelência do padrão médio de comunicação. Chegaria o momento em que para completar a tarefa ingente de adequar todas as medidas de interpretação de texto, os livros criados até então, e que até então ganharam a alcunha de “clássicos”, seriam deixados de lado e, no máximo, serviriam para aquecer as noites de inverno em fogueiras organizadas pelo Ministério da Criatividade…
* Capítulo que compõe Sete Pecados, lançamento da Scenarium. (2015) – Diversos Autores
**Área de Wernicke é uma região do cérebro humano responsável pelo conhecimento, interpretação e associação das informações, mais especificamente a compreensão da linguagem. Graves danos na área de Wernicke podem fazer com que uma pessoa que escuta perfeitamente e reconhece bem as palavras, seja incapaz de agrupar estas palavras para formar um pensamento coerente, caracterizando doença conhecida como Afasia de Wernicke.



