BEDA / Universo Cidade*

dois ônibus ir dois voltar
atravessar cidade universidade
mãe orgulhosa pai exultante
dizia para amigos meu filho uspiano
afastado não ajudava
madalena sozinha pagava transporte
quatro passes por dia
dinheirinho lanchar xerocar
saía cedo voltava noite
quinze minutos de atraso
multiplicado tempo por quatro
trabalhos feitos nas coxas
papel caneta trepidação asfalto irregular
letra estranha hieroglifo pessoal
egiptologia primeiro desafio
professora boa severa
o tema é este se virem
biblioteca lugar preferido
mudei maneira exposição
regrei pensamento
conheci colegas artistas
ratos de porão ira!
piscina plataforma dez metros
saltos prova de coragem
futebol campo oficial médio volante que batia
corridas cem metros diversão
um dia fiquei preso trânsito parado
dormi meia hora acordei mesmo lugar
preferi hora mais ficar entre livros
no retorno augusta noturna
mulheres lindas altas curvilíneas
especiais volumosas homens
quis cantar no coral
rejeitado maestrinho novo filho de maestrão
cargo indicado o vaidoso queria distinção
contrário anúncio não precisava saber cantar
feliz ano velho figurante de filme
pensei ser ator
colega cabelos dourados desfilava pelos corredores
guardava o sol na cabeça
iluminava meu olhar seu sorriso
outra noiva que desejava
convite bicicleta Ibirapuera
timidez atroz medo escapei
outro amor do colégio
estudava nutrição invadi sala entreguei cartas
declaração admiração paixão recolhida
encontro noite estranha
eu não conseguia falar o que desejava
ela disse você não pertence a sua família
mãe irmãos dissemelhantes
como se fosse adotado
aumentou sensação de alienígena
quando a busquei de novo
comportamento muito ruim
passei limites me senti diferente de mim
mas era eu mesmo assim
dissociação perigosa inescrupulosa
um dos meus avessos quis ser frei franciscano
quase três anos caminho
visita seminário agudos santo antônio
frei luiz não quis mais um ano sabia
frei não seria
de história entrei curso português
sonhava ser escritor mudei opinião conheceria mulher
tingi cabelo amarelo trabalhar carnaval
encontrei namorada que veio de longe
rasguei peito abri coração
perdi virgindade transei primeira vez
mudei curso rumo caminho história
27 anos engravidei casei
a vida acontece apesar da vida.

*Poema de 2021

Imagem: Foto por t4hlil em Pexels.com

Participam: Danielle SV / Suzana Martins / Lucas Armelin / Mariana Gouveia / Roseli Peixoto / Lunna Guedes / Dose de Poesia / Claudia Leonardi / Alê Helga



  



A Cama

A cabeceira (pequena demais para os meus sonhos);
o estrado (forte o suficiente para segurar o peso do colchão e de dois corpos);
o suporte lateral (firme e teso);
a base (onde os meus pés sequer conseguiam tocar) — uma cama…

Seria bege… amarela… madeira esmaecida…
Não me lembro da cor original…
Não importa…
Tudo foi feito no escuro…
Ele vinha silente, 
penetrante, 
o horror noturno…

Gostava tanto de ir para o sítio
e lá ficar com as minhas bonecas 
e os meus bichos…
O monstro adormecia distante,
em São Paulo,
com os seus negócios 
e a sua arma em riste…

Gostei tanto quando ele morreu!
Dizem que foi do coração…
Disso, duvido…
Mamãe também morreu…
Acredito que sufocada…
engasgada
com a palavra que nunca proferiu:
Não! 

Descaminhos

cabeça ombro joelho e pé
joelho e pé
olhos ouvidos boca e nariz
cabeça ombro joelho e pé
crescemos brincamos partes do corpo
se nos são retiradas um a um
e recolocadas pouco a pouco
seres humanos descremos
crescidos decrescemos
nossa consciência corporal de estarmos bem
nos recusam viver
nos acusam pelo prazer
são contra as leis contra o coração
desde sempre retirado de nosso peito
modelos feito bonecos sem emoção
de integridade desintegrada finalmente
jogados no meio da calçada
como objetos descartados lixo último nicho
sem cabeça para ficar…
sem pés para onde ir…

#Blogvember / Os Meus Meios-Dias

O meu Meio-Dia, começou às 9h40 da manhã. Apesar do adiantado da hora, mais uma vez dormi as mesmas cinco horas de praxe, não importando que tenha, como ontem, estado em atividade o dia inteiro. Uma vez acordado, já é Meio-Dia. Sol a pino, ainda que chova. Meus Meios-Dias se repetem pelas horas que se seguem como estados d’alma.

Leio as postagens deste #blogvember e passeio por textos que me inspiram. No de ontem, Roseli Pedroso escreveu uma preciosidade em poucas linhas sobre encontros fortuitos, calados, mas definitivos. Como resposta, lembrei de um: “Foi assim que cruzei com os olhos verdes de uma moça que aguardava o ônibus no ponto. A porta traseira foi aberta para que entrasse passageiros – idos do final dos anos 70 – e eu me fixei no brilho do olhar de alguém que jamais voltei a encontrar. Escrevi versos para esse (d)encontro, guardados em algum lugar…”.

Lunna Guedes, deu por si ao Meio-Dia de ontem, quando aniversariava. Fala sobre os plúmbeos e chuvosos novembros de sua vida, incluindo o do dia de seu nascimento. Hoje, não foi diferente. Aproveitei o sol que despontava e saí para ir ao supermercado comprar ingredientes para o estrogonofe do almoço. Voltando das compras, as nuvens toldaram o Sol em dois minutos e uma pesada chuva desabou como se fosse um balde de água fria em cachorros no cio. Era Meio-Dia.

Mariana Gouveia homenageou a nossa editora aniversariante com uma linda missiva. A força do abraço que pulsa em coração lunar é expresso em “palavras que atravessam tempos e se esparramam em cadernos”. Concordo com ela que, com a Lunna, acabamos por criar uma comunidade afetiva em torno da boa escrita.

Assim como Suzana Martins lembra das belezas acidentais de novembro e nos diz que “gosta da confusão equinócia a rasgar o tempo!” – um elogio aos dias intempestivos que aprendeu a apreciar com Lunna.

Em casa, trocada a roupa molhada, começo a assistir mais um jogo da Copa do Mundo de Futebol. França e uma das suas antigas colônias africanas – Tunísia – reproduzem em campo a rivalidade derivada do saldo pesado que toda dominação de um povo pelo outro produz. Terminada a partida, o time do colonizador (carregado de jogadores oriundos de povos colonizados) perdeu o jogo. O time do colonizado ganhou, mas não levou. São os dramas operísticos a reproduzir a História do mundo em realidades simuladas.

Após a chuva, rápida e impertinente, raios solares são refletidos em janelas e paredes. A Luz incursiona por frestas, folhagens, fios elétricos, telhados e peles. Quem disse que chovera meia-hora antes? Minhas roupas molhadas juram que sim. Mas meu olhar perdoa o pequeno inconveniente diante de belos Meios-Dias desta tarde lavada que se repetirão até a chegada da Meia-Noite – o Meio-Dia final…

Participam: Roseli Pedroso / Suzana Martins / Lunna Guedes / Mariana Gouveia

#Blogvember / Tempo Presente

“Enrolo em laços e fitas a linha do tempo presente”, por
Nirlei Maria Oliveira, em palavr(Ar)

Dona Generosa afastou-se um pouco para me ver nos olhos. Estava cada vez mais impressionado com a profundidade de seu olhar. Eu me senti um tanto intimidado, como se ela pudesse ler os meus pensamentos. Voltou a encostar a sua cabeça no meu peito, ouvindo o meu coração acelerado.

Ele ainda está aqui… – disse.

Convidou-me para entrar pela porta de sua casa simples, mas estranhamente majestosa. A cozinha ficava logo na entrada, perfumada de bolo de fubá e café. Ela, ao me ver salivar, perguntou se aceitava um pedaço de um e uma xícara de outra dádiva de vida. Sorri que sim. Desviei o olhar para o lado e vi uma moça que amamentava uma criança sentada num sofá do que parecia ser uma sala contígua. Pedi desculpas, mas a jovem sorriu e disse que não havia problema. Completou que a neném, uma menininha com olhos de jabuticaba, a assaltava de uma em uma hora, gulosa que era.

Ao contrário do que aconteceria antes, mesmo sendo uma moça muito bonita, eu não encarei a cena como algo para além do que era. Ela se comportava de maneira tão natural naquela circunstância, que me identifiquei com aquele ambiente como se tivesse vivido nele a minha vida toda. Agir sem malícia ou segundas intenções, fazia com que eu me sentisse bem comigo mesmo. Passei a ter certeza de que o jovem Geraldo, filho da dona da casa, morto aos 22 anos, era um rapaz muito especial. E que seu coração, que agora batia no meu peito, me tornava uma pessoa melhor. Não completamente, porque chegava a invejá-lo por sua mãe, sua mulher, sua casa e sua filha…

Apenas para confirmar, perguntei a Dona Generosa se sabia quem eu era.

– Eu estive no hospital ao saber que você receberia o coração do Geraldo. Pelo menos, isso… Orei durante toda a intervenção cirúrgica. Quando soube que tinha dado tudo certo, fui embora.

Mais uma situação que me fez perceber a natureza ímpar daquele ser iluminado. Olhei de lado, enquanto a moça recolhia uma das mamas intumescidas de leite que acabara de alimentar a pequenina neta da anfitriã. Perguntei o seu nome.

– Meu nome é Sarah. E esta é Viola… – apontando para o pequeno ser humano que agora dormia profundamente.

– Tem seis meses. Geraldo pode vê-la antes de partir. Começou a trabalhar mais para poder nos dar o máximo que pudesse. Preferia que estivesse conosco…

Sarah emoldurou um sorriso melancólico e seus olhos se tornaram uma piscina onde eu mergulharia de tão translúcida quanto as águas das praias onde passava os meus melhores momentos. Quebrou o silêncio momentâneo com a frase que me fez apaixonar por ela completamente:

– Que bom que o senhor nos trouxe um pouco dele para nós…

Aquele “senhor” saindo de sua boca, me fez sentir um tanto desconfortável. Chegara aos 40 anos com um corpo de 60, mas o coração era de 20 – o do seu amor, Geraldo. O sentimento que passei a ter por Sarah era algo mais evoluído. Ela, aos 20 anos, parecia ter a maturidade de uma mulher experiente e não duvidava disso. Por ser preta, viver onde vivia, em condições que antes eu consideraria precária, apesar de rica em referências valiosas, devia tê-la temperado feito aço no fogo.

Perguntei para Dona Generosa se poderia vir mais vezes. Que ela me fez sentir em casa e tão bem quanto não chegava a me lembrar dessa sensação. Aliás, voltando para o Passado, não me lembrava de estar nesse estado de contentamento como naquele momento. Queria, como num pergaminho precioso, “enrolar em laços e fitas a linha do tempo Presente“. Ela respondeu que a casa era minha. Que voltasse quando quisesse. 

Ao me despedir, o meu lado empresarial, acostumado a projetar as suas ações, já havia traçado todo o percurso que faria para “limpar” a minha biografia, Eu me separaria da dupla Carla & Djanira, lhes daria uma pensão generosa para que ficassem longe de mim. Promoveria algumas ações na empresa que tornasse o ambiente de trabalho menos pesado – uma creche para as crianças e outra para os pets, uma cafeteria a preços promocionais, local para descanso nos recessos dos períodos de trabalho. E, certamente, tentaria ajudar, sem tentar ser muito invasivo, Dona Generosa, Sarah e Violinha.

Sabia que, apesar da falta de condições materiais, pareceria ofensivo que eu considerasse que não vivessem bem. Ao contrário, por mim me mudaria, junto com a Petúnia para aquela casa menor que a minha sala de estar. O meu senso de proteção foi aguçado de tal maneira que finalmente percebi a importância da família – a criação de um elo de amor, proteção, confiança e uma casa para qual tivesse vontade de voltar. Finalmente, eu sentia estar me tornando um homem.

Participam: Mariana Gouveia / Suzana Martins / Lunna Guedes / Roseli Pedroso