Vida Normal*

Dia de folga de um dezembro corrido. Passaram muito rápido todos os meses de 2017. Vou ao Correio, passo no supermercado, me desloco para uma visita técnica, levo um aparelho para o conserto. 

Escritor em busca de temas que sou… por onde passo encontro personagens. O clima de final de ano de pinheiros e decorações típicas de tempo frio, se faz presente a cada quadra que caminho. É o assunto principal das pessoas nos ônibus e trens de Metrô.

No Correio, tenho que devolver um produto que veio com defeito. Pelos corredores e gôndolas do supermercado, cenas cotidianas igualmente explicam nossa triste realidade. Uma menina sentada no carrinho de compras, recebe de seu irmão um saco de salgadinhos. O menino, com idade suficiente para saber que fazia algo indevido, o abre com o cuidado necessário para não ser percebido. Um ato de amor… escuso. A mãe, ao lado, finge que não vê.

A caminho da reunião, uma mulher conversa ao celular. Explica ao interlocutor que não poderá encontrá-lo naquele dia porque “o seu amigo está desconfiadíssimo!”. Quem caça, às vezes, veste roupas claras, quase diáfanas.

Depois da visita técnica, me desloco à região da Santa Efigênia. Visito algumas lojas, enquanto espero o reparo do aparelho. Em uma delas, acredito reconhecer o senhor por detrás do balcão… um cantor tal de uma banda de sucesso anos antes o próprio… levantou a cabeça, a olhar para um ponto indefinível, talvez o passado. Exibiu um sorriso enigmático. Soube que ganhou muito dinheiro, bateu muita cabeça, perdeu prestígio, deixou de ter visibilidade e voltou a trabalhar na loja do Seu Gaspar — onde teve o primeiro emprego. Ele ainda canta aos finais de semana, em um barzinho — voz e violão, público cativo, que sabe as letras de suas antigas canções. Percebo, no entanto, que não tem mais a ilusão do sucesso. O cumprimento e saio cantarolando uma de suas músicas.

A pé, vou encontrar minhas filhas e mulher, no bairro de Santa Cecília. Caminho pelas ruas do Centrão, pelo qual tenho paixão de viajante. A arquitetura variada, em épocas e formas, é como se fosse um palimpsesto em alto relevo. Presencio o entrechoque de identidades diversas. A mudança de paisagem humana é drástica, de um lugar para outro. Parece que há sempre um novo ângulo a ser explorado, personagens a serem encontradas, histórias a serem contadas.

Ao chegar ao apartamento de minha filha, levo para passear o cachorro de sua amiga que vez ou outra fica hospedado por lá. Toddy é carinhoso e alegre.  Por algum motivo, lembro do Desinquieto, nome dado por um morador de rua do Centrão ao companheiro de jornada. Ele o carregava no carrinho e a pessoa de quatro patas agia como se fosse um marajá em sua liteira. A diferença entre os dois, Toddy e Desinquieto, era total, tanto em conformação física quanto em condição social. Porém, o olhar dos dois era a de seres que se sabiam amados, sendo amáveis. Toddy faz amizade por onde passa. Exceto por uma enciumada cadelinha de andar arrogante que quis lhe atacar.

Compro bolo de cenoura, tomo o chá da tarde com a família e percebo que tenho cumprido o mandamento pessoal de viver um dia de cada vez. Vivo o primeiro terço de um dezembro de um feliz ano velho, que foi intenso, pleno de acontecimentos, grandes e pequenos, que trouxeram a mim a certeza que a vida segue seus dramas, seus prazeres e dores, desafetos e amores independentemente das efemérides que promulguemos.

Em meu passeio com o Toddy, ouvi o trecho da conversa entre duas mulheres. Uma delas diz que odiava àquela época do ano e que não via a hora de janeiro chegar. Eu agradeço se puder viver apenas o próximo dia.

*Texto que compõe o Coletivo Feliz Ano Velho, de 2017, pela Scenarium Livros Artesanais.

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Polaroides

Em 1944, de férias com a sua família, a filha de Edwin H. Land lhe perguntou porque não podia ver imediatamente as fotografias que o pai tirava. Edwin conta que nesse mesmo dia idealizou a mecânica da câmara de impressão instantânea. Três anos depois, veio a público uma tecnologia que transformou um processo que demorava horas, que exigia um estúdio próprio e acesso a químicos de revelação fotográfica, para algo que demorava apenas alguns minutos. Chegou ao mercado em 1948 com o nome Polaroid Land Model 95, que funcionava usando dois rolos separados para o negativo e o positivo, os quais permitiam que a imagem fosse revelada dentro da câmera.

Ainda tenho uma câmera Polaroid guardada em algum canto. As minhas filhas têm uma câmera similar e gostam de brincar de tirar e revelar fotos instantâneas. Mas com o tempo a chegada dos smartphones rapidamente mudou a dinâmica da produção de imagens reveladas quase imediatamente através das redes sociais, de tal modo que a maioria das pessoas sequer pensam em algo diferente. Como não tenho polaroides à mão, compareço aqui com similares para rememorar o último semestre deste ano insano.

Em Agosto, fui informado pelo Facebook que havia ficado noivo da Tânia há 35 anos. Não houve exatamente um pedido de noivado, mas (in)formalmente, essa foi a data em que começamos a namorar. Foi tudo muito rápido. Em Maio do ano seguinte, ao décimo terceiro dia, nos casamos, com o testemunho da Romy, há cinco meses no ventre da mãe. O resto é História.

Em Setembro, estreamos a Primavera mais quente que a Humanidade já presenciou, segundo informes climáticos mensurados por institutos do mundo todo. Entre os negacionistas de plantão, não é algo para se preocupar. Alugados pelos donos do jogo, há quem queira negar que estamos à beira do colapso. Gaia está simplesmente reagindo às ameaças de sobrevivência de todas as espécies vivente neste planeta. Não duvido que se o Homem for um empecilho, a Natureza o colocará em seu devido lugar. Sinais não faltam. Enquanto isso, as orquídeas aqui em casa, se sentindo protegidas, continuam a florescer na Estação das Flores.

Parece incrível, mas apenas há um pouco mais de um ano, em Outubro, surgia Alexandre em nossa vida. O rapazinho todo desmilinguido, desnutrido, mais ossos do que carne, um tanto cego pelos olhos anuviados, de tímido que se apresentou, foi se empertigando. Pudemos perceber que se tratava de um exemplar variante de Pinscher, com todas as características que apresentam — corajosos, leais, cheios de energia, curiosos, divertidos — e guardiões, o que deixa a Lívia, que trabalha parte da semana em Home Office, muitas vezes com gana de lhe dar uns tapinhas na bunda seca. Os seus latidos, para quem passa no portão vazado, interfere frequentemente em suas reuniões. Coloca o pessoal com quem fala no modo mudo e grita para o bichinho impertinente: Aleeexaaandreee!

Bem, Novembro foi cheio de aventuras. Mais um fato recorrente marcou o meu mês. A Tigresa nos deixou na mão na subida da Serra do Mar, na volta de nossa casa da praia. E a Tímida, à caminho de Ibiúna, onde faríamos um evento pela Ortega Luz & Som. O que essa torre de caixa d’água teria a ver? Bem ela marca o ponto onde esperamos o caminhão guincho que nos levaria para o local onde conseguimos chegar à tempo para a montagem e a realização da sonorização e a iluminação da banda para festa de temática italiana. Enquanto esperávamos o transporte, fiz algumas imagens para relaxar. Afinal, temos sempre que tentar ver o outro lado da moeda.

Nesta foto, encontramos, além de mim, Marco Antônio Guedes, Lunna Guedes — mentores da Scenarium — e Flávia Côrtes, que veio à São Paulo direto de Salvador, Bahia, para o lançamento do lindo livro de poemas, Correntezas. Dias após, nos encontrarmos no SESC Paulista e posteiormente fomos ao Café da Livraria Cultura, cercado por livros, como gostamos, onde fiz este registro. A baiana mostrou ao vivo a sua verve, animação, lirismo e alegria de viver que podíamos perceber apenas através do virtual. Uma agradável surpresa de Dezembro e do real!

Participa: Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Dezembro Em Preto & Branco

Dezembro… luz do sol… calor… mês de festas… Preto no branco, quase não há o que comemorar, a não ser termos sobrevividos a um ano tão doloroso quanto um ferimento à faca. Em tempos em que cada termo ou imagem passa pelo escrutínio ideológico, essa metáfora, por mais inocente que pareça, indicaria pendores aleivosos. Pelo sim, pelo não, não precisa ser faca, então. Vamos dizer que tenha sido tão doloroso quanto o espancamento de um ser inocente com barra de ferro apenas para não tê-lo por perto. Este ano se encerra com dúvidas e incredulidade muito maiores do que quando começou. Fiz previsões para este ano da graça de Vinte Dezoito. Foram publicadas em uma das Revistas da Scenarium Plural – Livros Artesanais. Eu as reproduzirei aqui, até o seu final. Errei muito. Não queria acertar o que acertei.

Por hora, resta aludir às imagens em P&B – tema desta edição do “Projeto Fotográfico 6 On 6” – que consiste em postar seis imagens comentadas publicadas no sexto dia de cada mês, por autores convidados por Lunna Guedes. As fotos em preto e branco são, para mim, estranhamente mais atraentes que as coloridas. Talvez, uma influência direta do fato de ter assistido meus programas favoritos em TVs P&B até meados de 1982, quando minha mãe juntou o dinheiro que tinha e que não tinha para comprar uma TV Colorida para assistirmos a Copa da Espanha.

6 On 6 - P&B

Ao passar pelo Museu da Diversidade, instalado na Estação República do Metrô de São Paulo, encontrei essas palavras em um dos vários quadros com dizeres espalhados pela parede externa do pequeno e expressivo espaço de resistência da liberdade de ser. Traduz de forma exemplar como somos manipulados para viver por padrões que engessam nossa expressão humana. E como nossos sentidos – físicos e infra-ultra-físicos – se entregam à estereótipos confortáveis e padronizados para interpretar o mundo que nos rodeia.

6 On ¨- P&B (Devaneio)

A luz do sol inclinada na hora do crepúsculo, banha o vale e sua casas. Entre elas, a minha, que se sente calorosamente atravessada. Como o personagem de “Beleza Americana”, que assiste o passeio de um saco plástico ao sabor do vento, eu me perco em devaneios para formar imagens que se diluem em linhas costuradas pela imaginação. O registro fotográfico apenas arranha na superfície a viagem para o tudo ou nada do que vislumbro…

6 On 6 - P&B (Escuridão)

A imagem acima é um atestado do que coloquei acima, sobre preferir tons mais sombreados em contraste com a brancura dos corpos. Neste caso, de cravos vermelhos. O que eventualmente tenha se perdido em cor, ganhou em consistência – peso seria uma boa palavra – quase como se as delicadas pétalas fossem revestidas de ferro.

6 On 6 - P&B (Chuva Na Marginal)

Normalmente, voltamos de madrugada – eu, meu irmão e nosso auxiliar – dos eventos em trabalhamos na produção com nosso equipamento de som e luz – esta, idealmente colorida. Dia desses, quando choveu tanto em São Paulo que vários trechos da Marginal foram alagadas com as águas do Tietê, passamos transversalmente, a salvo por pontes do Corredor Norte-Sul. Registrei esta ilustração noturna que logo se configurou, como caçador de imagens, em uma das minhas favoritas desde sempre.

6 On 6 - PB (Portal)

Este portão de uma residência aparentemente abandonada é quase um portal do tempo. Não posso ver construções como essa sem reconstruí-las como à época de seus esplendores funcionais. Esta, acima, se localiza no início da Francisco Matarazzo e não duvido que tenha feito parte do patrimônio do próprio Comendador, como quase tudo no vale que a avenida que carrega seu nome, percorre. Esse portal dá entrada a uma pequena vila bastante descaracterizada, com linhas mais retas-modernas-pobres do que as belas-esféricas-sinuosas do passado. As primeiras, preferi cortar da foto.

6 On 6 - P&B (Idades)

De início, não via vinculação entre as duas imagens que estão expostas lado a lado. No entanto, a primeira, originalmente em P&B, representa um auto-retrato sem tanto apuro técnico, pois desenhava bem espaçadamente naquela época, ao contrário de anos antes, quando cheguei a me imaginar desenhista e até, pintor. Nada impede que possa me tornar um, algum tempo adiante. A segunda, devido à falta de luz, sombreou naturalmente. Contribuí com um pouco mais de escuridão. No desenho, o queixo é menos largo e o nariz menor do que se tornaram. O rosto, mais preenchido em suas linhas. O olhar, é de espanto. Espanto que carrego até hoje, talvez com os olhos espremidos de quem pensa demais. Além do que relacionei em comum, nos dois registros, uso óculos. Ao contrário do que diz a música, eu nasci de óculos, ainda que tenha começado a usá-los apenas a partir dos 12 anos…

Participam desse projeto:
Ana Claudia Anália BossClaudia LeonardiFernanda AkemiLuana de SousaLunna Guedes Mari de CastroMariana Gouveia Maria Vitória  Isabelle Brum