BEDA / Scenarium / Domingo-Domingo

Sunday

Este é um domingo que realmente é um domingo-domingo. Hoje se celebra a Páscoa, o principal dia do calendário litúrgico cristão, em que se comemora a Ressurreição de Cristo, sendo que é a partir dela que todas as outras datas importantes do Cristianismo são calculadas – Semana Santa, Quaresma, Quarta-feira de Cinzas… Efeméride religiosa que se transformou em data comercial, o motivacional consumo de ovos de chocolate poderá animar um pouco àqueles que estão dispostos a cumprir a Quarentena que se estenderá até o dia 22 de Abril, por enquanto…

Tanto quanto na Páscoa de 2013, estou sem recursos para adoçar o domingo de Páscoa da minha família com chocolate por dois motivos: estou sem grana e permaneço isolado na Praia Grande. Até talvez voltasse para Sampa, mas prefeitos da região litorânea decidiram impedir a entrada de turistas moradores de outras regiões a partir de quinta-feira, ainda que tenham imóvel por aqui. Os casos de Covid-19 cresceram muito nos últimos dias, tanto na capital quanto no resto do Estado de São Paulo. E estamos longe do pico de propagação da doença. Sem ninguém que me busque, com a escassez de transporte igualmente de ida, por aqui estou.

Mesmo para a parte da população acostumada a viver uma Páscoa mais religiosa, em recantos deste Brasil multicultural, a comemoração não acontecerá sem levarmos em conta que somos, todos nós, possíveis infectados ou agentes infectantes do novo corona vírus. As procissões em tapetes de flores seriam vistas com preocupação, se ocorressem; adentrar pelas residências para saldar em cantos seus moradores seriam consideradas insurgências contra o distanciamento social; a aproximação dos corpos em igrejas potencialmente cheias pelo ritual da missa poderiam levar muitos fiéis para mais perto do Senhor muito mais rápido do que desejariam. Porém, ontem, perto das 22h, quando prefiro ir ao supermercado (com máscara), para evitar aglomerações, procissões de compradores de ovos de chocolate pelos corredores denotava duas características do brasileiro: deixar tudo para a última hora e indisciplina.

Todos os dias surgem notícias de pêsames entre parentes e conhecidos componentes da minha lista do Facebook. Muitos não indicam a causa da morte, mas a aparente falta de informação é demonstrativa – não há como saber o motivo do óbito sem o resultado do teste. As notificações estão atrasadas ou não estão sendo identificadas. Isso pode levar a quem não tem a intenção de manter o afastamento social a crer que a doença não seja assim tão abrangente como pintam os trabalhos científicos e alertas veiculadas pelos meios de comunicação. Há uma concordância ampla entre médicos e infectologistas de todas as latitudes que vivemos uma pandemia de graves proporções ao contrário do que muitos gostariam de aceitar.

No Brasil, temos a tendência, como povo, e desdenhar da Ciência, de contrariar os estudos e os estudiosos. De refutar pesquisas, de valorizar o jeitinho e a magia do inesperado-improvisado. Quando somos chamados a cumprir um recesso de nossas atividades por um certo período a fim de evitar que a sociedade não sofra a perda de uma grande porção de seus membros, percebemos que a solidariedade e a empatia também não são características assim tão apreciáveis por parte de nossos cidadãos. Ao mesmo tempo, vemos surgir iniciativas de alguns de seus membros que nos dão a esperança de que nos tornemos um País melhor.

Tanto quanto o Pessach judaico, que inspirou o surgimento da Páscoa e representou um episódio libertador-transformador na nossa História, espero que este doloroso processo pelo qual estamos passando se transfigure em transição para algo muito maior – um novo mundo – de novas e belas possibilidades.

Feliz domingo-domingo!

P.S.: Como a brincar com nossas expectativas, vivi poucos outonos, ainda que no seu início, com dias tão bonitos quanto os que tenho presenciado. O mar, limpo de nossos corpos infectados, continua a repetir o seu eterno canto em ondas…

Beda Scenarium

 

BEDA / Scenarium / Invisível

Invisível

Domingo de Ramos. A minha mãe adorava essa comemoração cristã. Um forasteiro com o nome de Jesus foi recebido pelos simples de coração com o acenar de ramos de palmeiras ao entrar pela porta dourada de Jerusalém. Sua chegada marcou a instauração de uma futura mudança na História do mundo. Hoje é um domingo que espero que traga melhores noticias do que estamos a ouvir e a ver nos domingos sequenciais que vivemos atualmente. Nestes tempos, o assunto principal envolve outro “ser” que adentrou em nossa História para talvez mudar definitivamente nossas relações para além da superficialidade anterior.

Vindo do latim, vírus significa “fluído venenoso ou toxina”. Aos nossos olhos, esse “ser” é invisível. Na realidade, basicamente trata-se de uma cápsula proteica envolvendo o material genético – DNA, RNA ou os dois juntos – que necessita de seres mais complexos para seu desenvolvimento. O que conhecemos como infecção, pelo viés do vírus poderia se chamar de vida, com o mandamento bíblico a lhe chancelar: “crescei e multiplicai”. Sua reprodução descontrolada, a depender da condição do sistema imunológico, levará o hospedeiro à morte, a não ser que seja cessada a sua atuação. No caso do novo corona vírus, a proteína identificada como ACE2 se liga ao nosso sistema replicador celular e começa a comandá-lo, já com a sua “identidade”, ganhando cada vez mais território. Parece até que falamos do Homem em relação à Terra…

A chamada guerra contra um “inimigo invisível” só é em parte verdade. Há quem precise de provas visíveis para a ameaça seja considerada concreta. Nesse caso, uma pilha de corpos com exames comprovatórios de que o novo coronavírus seja o agente infectante a provocar o Covid-19 – o nome da doença. O problema é que na rede pública os testes realizados nas vítimas têm demorado cerca de dez dias para que saia um resultado. Enquanto em dois ou três dias já são disponibilizados na rede particular. A discrepância entre as duas contagens poderá levar os mais simples a crer que seja uma doença de ricos, como se apregoava no começo da pandemia. Deveriam saber que os hospitais de campanha montados de última hora não estão sendo erguidos para os que conseguem vagas nos melhores leitos.

O inimigo contagiante não respeitou a melhor estrutura de saúde de países europeus ou Estados Unidos. Enquanto caminhava para o seu pico, fez com que o sistema de atendimento entrasse em colapso. Imagens de caixões colocados lado a lado se afiguravam a de filmes de ficção com enredo apocalíptico. Como o mal está no ar que respiramos, o drama está quase a apresentar toda a sua força em nosso cotidiano. Contudo, as pessoas ainda estão a desacreditar. Até que um vizinho, depois outro; um conhecido, depois outro; o esposo, a mãe, um tio querido de um amigo; a avó ou a babá que o criou venham a sucumbir à doença. Só então, o sobrevivente crerá no mal invisível. Nem mesmo a voz do capitão da nau insensata, a proclamar que tudo não passa de alarme catastrofista de inimigos e o distanciamento social é ineficiente e prejudicial a economia, bastará para evitar que haja uma convulsão na sociedade quando tudo degringolar.

Ivan Lessa, um cronista paulistano, escreveu há anos: “Três entre quatro políticos não sabem que país é este. O quarto acha que é a Suíça” e “A cada 15 anos, o Brasil esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos”. Comungo com ele dessas convicções. O político, ainda que saiba de nossas péssimas condições de saneamento básico e sistema de saúde precário, usa como régua a vida que leva ao ser eleito. A mordomia o desloca do Brasil real para o ideal. Para reeleger-se, usa da péssima memória do eleitor para voltar ao poder ainda que tenha renegado suas origens. Ou conta com assessores e marqueteiros para maquiarem possíveis arranhões em sua reputação. Esses magos conseguem transformar erros em predicados, mudanças de tática em flexibilidade, teimosia em força de caráter.

A esperança é que a pandemia de Covid-19 venha a separar o joio do trigo. Que saibamos perceber quando um servidor público – é disso que se trata afinal um político eleito – age por interesse próprio ou a favor de um grupo de uns poucos em detrimento à população que representa. Que tenha a grandeza de tomar atitudes graves, mas necessárias. Que se coloque a disposição do povo não para atacar inimigos ocultos, porém para defender os bons propósitos da República que comanda como executivo e da Democracia que o elegeu e jurou defender. Queria que assim fosse, ainda que continue a reverberar em minha mente a frase de Ivan Lessa, lido quando era bem moço e bastante crédulo do belo futuro alardeado a época para meu país – pátria amada, Brasil!

Beda Scenarium

BEDA / Círculo Da Lua

Círculo da Vida
Piscinão Guarau

Na manhã de sábado, quando caminhava junto à avenida esburacada do bairro em direção à academia, observei uma concentração incomum de urubus (pela quantidade, os tenho chamado de “pomburubus”) sobrevoando bem alto a área do Piscinão do Guarau. Talvez tivesse uns quarenta ou mais realizando manobras circulares em torno de um ponto mais claro no céu azul.

Identifiquei, para a minha surpresa, apesar do horário, que se tratava da lua em seu último quarto. Foi um benefício adicional ao meu esforço de voltar à atividade física. No céu da cidade de São Paulo é raro vermos a lua em sua plena expressão, mesmo à noite, já que as luzes artificiais impedem que os nossos olhos alcancem o belo astro para além da prisão luminosa na qual erramos.

Urubus são seres fascinantes. Tom Jobim, quedava igualmente extasiado com as elegantes circunvoluções dessas aves necrófagas. No entanto, o voo alto é uma das maneiras que esses seres utilizam para buscar alimentos. São importantes na limpeza do meio ambiente. Quando ocorre a mortandade de muitos animais por doença, por exemplo, o urubu ajuda a controlar a epidemia ingerindo as suas carcaças.

Possui uma envergadura de 2,40m e peso que oscila de 3 a 5kg, medindo cerca de 85cm de comprimento. Na Natureza, tem poucos predadores naturais, mas, devido à sua baixa capacidade reprodutiva, além da degradação do seu habitat, é uma espécie cada vez mais rara de se observar. O que significa que são os homens os principais responsáveis pela diminuição de sua população. Em suma, seus predadores…

Não foi o caso desse dia, onde a revoada de tantos entes alados fazia lembrar um bom filme B. Naquela área, eu os tenho observado em número cada vez maior. Quando chove mais torrencialmente, o piscinão do Guarau recebe os rios canalizados da região, impedindo que as águas do vale invadam o rio canalizado de mesmo nome, que se estende sob a avenida de fundo de vale Inajar de Souza, até desaguarem no Rio Tietê.

Todo o lixo orgânico e não-orgânico que é jogado ou cai nos esgotos da região se espraia por todo o perímetro do Piscinão Guarau, tornando-o um verdadeiro “fast-junk-food” para os urubus. Ou seja, de uma maneira enviesada, estamos proporcionando um verdadeiro criadouro para os membros da espécie Sarcoramphus papa (L.).

São as voltas que vida dá…

BEDA| Penélope

Penélope

Há dois meses, por volta das 5 horas da manhã, fui acordado pela Tânia. Disse que a Penélope estava respirando com dificuldade e sequer relutou aceitar o uso da bombinha que detestava. Acordei sem saber direito o que ela falava e respondi algo incompreensível até para mim. Mais desperto, veio à mente os compromissos que teria no decorrer do dia.

Meio contrariado por aquele imprevisto-previsto – aguardado para qualquer momento – senti-me mal pela resolução em não tornar prioridade obter a habilitação de motorista. Como a Tânia teria plantão no hospital, chamei o meu irmão para nos levar ao veterinário. Acostumados a dormir tarde, é penoso para nós levantarmos àquele horário. Principalmente, para o Humberto.

Paciente, ele veio ao nosso encontro e nos levou até Santana. Chegamos às 7 horas e a recepção do hospital veterinário já estava lotada. Pessoas, cães e gatos de todas as raças (não percebi outras espécies), ocupavam os quadrantes lado a lado, a maior parte com os olhares assustados – animais e humanos. Falei com o rapaz da recepção e citei o caso da Penélope, o declarando como emergência.

A dificuldade respiratória era audível para todos e logo ela foi encaminhada para uma o corredor interno, antes das salas de procedimentos. Eu a coloquei na maca. Foi trazido um tanque de oxigênio, com uma cânula na ponta. Eu deveria ficar segurando o apetrecho em direção ao focinho da amiga até sermos atendidos.

Enquanto isso, pude acompanhar o vai e vem de enfermeiros, médicos veterinários e humanos com os seus bichos, bichões e bichinhos – de chihuahuas a São Bernardos, de siameses à angorás.  Todos, independentemente dos seus tamanhos, ofereciam toda atenção amorosa possível que alguém pode oferecer a “alguém”. Naquela circunstância e momento, muito mais frágeis e entregues que o normal. Se pudesse adivinhar, diria que muitos dos bichos apenas “queriam” permanecer vivos por pena de seus cuidadores. Seus olhares eram de quem gostariam de dormir-esquecer a dor… para sempre. Inesperadamente, eu me senti melhor do que normalmente em fazer parte da espécie humana.

Sonolento, passadas quase quatro horas, finalmente perguntei quando seríamos atendidos. “Ela está na esteira…”. Imaginei que “esteira” seria fila. “Ela vem da retirada de um tumor no útero. Não seria interessante realizar ao menos uma radiografia?”… “Não! O aparelho atende animais até 15Kg, apenas. Devo ter arregalado os olhos e perguntei porque não haviam me avisado antes. A Penélope, uma labradora de 35Kg, estava acima do limite. Perguntei qual seria a previsão de atendimento. Disseram que não sabiam.

Decidi retirá-la da “esteira”. Avisei que sairia. Senti que ela estava incomodada, a respiração havia melhorado com o ar que dirigia ao seu nariz. Queria levá-la para outro lugar. Logo que saí, a Penélope esvaziou a bexiga no meio-fio da rua, antes de entrar no carro. Liguei para as clínicas que poderiam fazer a radiografia. Antes, deveria passar por triagem com um clínico, com previsão incerta de atendimento. Com a pequena melhora, voltei para casa. Quando voltasse ao hospital no dia seguinte, queria levar a radiografia feita, chegando uma ou duas horas mais cedo.

No dia seguinte, a Tânia teve a ideia de chamar uma veterinária que atende à domicílio, já conhecida. Diante dos resultados dos exames feitos, verificou-se que ela estava bem, de modo geral. Era estranho que ela estivesse respirando tão mal. Talvez fosse ansiedade. Não deixei de me surpreender por essa condição tão humana. Prescritas as medicações, progressivamente o estado geral dela melhorou. Afora a dificuldade da senhora de 14 anos em andar, ela está bem. Não admite ficar sozinha de nenhuma maneira. Começa a latir quando estamos em um cômodo distante dela. Desloca-se dolorosamente o caminho quase cego em nossa direção.

Seu apetite para comer e para viver é incrível. Sabe lidar com as suas limitações e tentamos lhe oferecer o máximo de conforto possível. Se eu gosto um pouco mais de gente, é porque ela gosta de gente. Sempre é afetuosa, indistintamente do caráter de quem dela se aproxima. Sinto que tem muito mais a me ensinar do que eu possa retribuir em atenção e amor. A cada dia, que poderá ser o último, ganha maior valor e significado a sua permanência. Até que se torne saudade – eterna presença na ausência.

Participam do BEDA:  Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari