Eike & Trump*

Eike Baptista & Donald Trump

Eike Baptista está a negociar sua volta ao Brasil. O que pega é que, apesar de toda a fortuna que acumulou, o referido senhor não tem diploma universitário. Ou seja, menos do que a sapiência em determinada área que o estudo deveria promover, ele se tornou, eminentemente, um experto em ganhar dinheiro. E carrega, certamente, a esperteza necessária para tal, também. É brasileiro e carrega igualmente a cidadania alemã. Mas na Alemanha, onde começou a carreira de acumulador de riqueza, dificilmente encontraria o ambiente propício para multiplicar em milhares de vezes o numerário de que dispunha.

De início, eu acho terrível que haja essa distinção entre os tipos de cadeia: uma para quem tem e outra para quem não tem curso superior. A cadeia deveria ser boa o suficiente para abrigar a ambas categorias de infratores, sem diferenciação. Aliás, está na Constituição que a prisão deva ser um local de recuperação do detento. Ou seja, a pressupor que a Educação seja um meio de elevação do espírito humano, a regra comum é que a internação compulsória deveria servir idealmente como tempo do aprendizado — em diversos níveis — sobre o funcionamento da sociedade e seus limites de convivência. Quem tem terceiro grau, normalmente mais instruído, deveria ter, igualmente, a capacidade de distinguir entre o certo e o errado. Mas sabemos que isso é uma falácia. Caso contrário, não veríamos ignorantes educados nas melhores escolas, como Trump, a pregar a ignorância como bandeira política, ter sucesso em seu intento de ascender ao poder.

Por algum contexto sombrio, o surgimento da figura do Trump como um modelo a ser seguido vejo associado ao de Eike, de forma indelével. Eles são resultado do pior que pode gerar a crença em valores absolutos, sem distinção ideológica. A ver que algumas das propostas do presidente eleito da “maior democracia do mundo”, como se intitulam, se parecem bastante com a de ditadores de regimes fechados, à esquerda e à direita. E Eike só chegou onde chegou com o auxílio de sócios no Poder Governamental brasileiro. Alguns estão presos. Outros, serão. E isso é uma novidade nesse jogo do poder realizado entre grupos fechados, sob os auspícios de conchavos políticos-econômicos-partidários escusos, sob a luz bem clara de escritórios palacianos como norma de todos os que se assentam à cabeceira da mesa e ao lado dela há séculos.

Vaticino aqui que o próprio Trump está a cavar o seu impedimento, caso não venha a alterar as diretrizes que está a cumprir como promessas de campanha, como a não homologação do Tratado Comercial Trans-Pacífico. A China, agora, vai deitar e rolar. A sua hegemonia vai crescer enormemente. Daqui a algum tempo se verá os malefícios dessa medida para a economia norte-americana. Serviu para elegê-lo, quase como um voto de protesto contra os políticos tradicionais, fenômeno que vemos acontecer em vários países democráticos. As pessoas querem respostas imediatas aos problemas que as afligem, como a segurança, a saúde e a economia. Aqueles que apresentam as respostas mais fáceis, que são geralmente as mais diretas e irrefletidas, obtém sucesso imediato, com resultados normalmente funestos.

O Eike já foi apontado, inclusive por alguns de nossos governantes, como exemplo a ser seguido como perfil de empreendedor de sucesso. Os artifícios que utilizou para aumentar a sua fortuna funcionou muito bem no ambiente historicamente corrompido que temos em nosso País. Estranho é que o nosso povo sem Educação formal de qualidade, a ponto de aceitar com naturalidade a premiação de quem tem curso superior com uma prisão com benesses em relação ao deseducado sob os cuidados do Estado, ao mesmo tempo não se importa de verem as suas cabeças cortadas à luz do dia apenas porque estejam encarcerados semelhantemente, veja chegar ao poder na parte de cima do Continente Americano, superiormente desenvolvido economicamente, o mesmo tipo que elegemos constantemente por aqui — Salvadores da Pátria.

*Texto de Janeiro de 2017

BEDA / Scenarium / WTF?*

WTF

O relato a seguir foi totalmente inventado e qualquer semelhança com fatos, circunstâncias, nomes de personagens e locais terá sido uma mera e infeliz coincidência.

Waldo fora chamado para fazer um orçamento para o fechamento de teto e revestimento para tratamento acústico na reforma de uma casa noturna. Logo que chegou, verificou que aquele era um salão como tantos que já visitara para executar tal trabalho. O espaço apresentava apenas uma entrada, que seria também a saída. Pequenos nichos posicionados em lados opostos seriam usados como bares. Mais ao fundo, ficaria o palco, os banheiros e a cozinha. Em outro ponto, mais junto à porta, haveria um recuo onde deveriam ser distribuídas as comandas, após uma sequência de grades que direcionariam as filas do público afluente.

O edifício fora construído em um terreno de 300 m² e a área livre, incluindo o palco, os dois banheiros, a cozinha e um depósito para as bebidas e alimentos, não passava de 270 m². Seria sobre essa metragem que Waldo deveria calcular o material que utilizaria, bem como o preço do serviço, que variaria de acordo com a qualidade do revestimento solicitado pelos donos da boate e casa de eventos WTFWonderful Tour Freeway. Chamou a atenção de Waldo que o rebaixamento faria com que o teto da WTF ficaria mais baixo do que o ideal, mas os donos achavam que o ambiente ficaria esteticamente melhor, além de mais acústico para a sonorização, sem a utilização de tanta potência e recursos técnicos para distribuir o som. Waldo não se contrapôs. Quando algum cliente desejava a realização de algo que não fosse confortável ou seguro, ele, no máximo, sugeria algumas alternativas, sem ser muito enfático, para não irritar o contratante. Ao cabo, acabava por obedecer às ordens dadas.

A WTF pareceria, após o rebaixamento do teto, a uma grande caixa de sapatos. Sem as outra áreas livres, o espaço reduzia-se a 180 m². Talvez coubesse, de acordo com o padrão internacional de ocupação ideal, de 4 pessoas por m², no máximo, em torno de 720 seres humanos. Os donos disseram que poriam um aviso com a lotação máxima de 1000 fregueses, mas duvidavam que a casa mantivesse um público muito superior a 500 frequentadores. Enquanto conversavam com Waldo, trocavam ideias entre si de como atrair uma maior afluência. Ele chegou a ouvir a proposta de uma noite que se chamaria “Colação”, já que o mote seria que todos estariam tão próximos uns dos outros que seria uma imensa colagem de corpos. Ouviu também a armação de uma estratégia – caso alguém reclamasse da massiva aglomeração, responderiam que a intenção era exatamente aquela – unir as pessoas fisicamente. Os jovens, principalmente aqueles que tinham dificuldade em aproximar-se uns dos outros, adorariam – completaram.  Logo após, ouviu uma risada entremeada por cumprimentos, em que os donos se elogiavam mutualmente por tamanha esperteza. Waldo sentiu um pequeno tremor.

Na verdade, Waldo já havia visto essa estratégia empregada em várias ocasiões, para diversos fins. Corria a solto pelos meios de comunicação a série de anúncios para a Copa do Mundo de 2014, em que acentuava o elogio do tumulto que causaria um evento de tamanho porte realizado sem a infraestrutura necessária para tal, já que não haveria remédio, tempo ou seriedade para resolver os problemas que seriam causados pelo enorme afluxo de pessoas, então. Com o passar do tempo, ele também já elaborara um perfil padrão das pessoas com que lidava. Elas sempre buscavam justificativas precárias para as suas tomadas de decisão igualmente duvidosas. Esse preconceito o aliviava de contra-argumentar certos critérios espúrios, o que o poupava de digladiar-se com o cliente, como já ocorrera no começo de sua atividade, resultando em perda de receita. Afinal, tinha muitas contas para pagar, como todo mundo. Aprendera a adaptar as preferências alheias ao escopo do projeto, mesmo que fosse contra as normas básicas de execução mais segura. Naquele caso específico, os seus contratantes disseram que o revestimento com tratamento anti-chama era muito caro, o que inviabilizaria o trabalho. Perguntaram se haveria alguma alternativa mais barata e Waldo disse que havia, mas que talvez fosse muito perigoso, caso houvesse alguma ocorrência, como um curto-circuito, explosão ou outro fator de risco de incêndio. Nesse caso, a fumaça produzida, argumentou, seria altamente tóxica e se espalharia em poucos minutos.

Os sócios se entreolharam e com o tempo acertado de percussionistas que estavam bem ensaiados, bateram na madeira do palco de bateria três vezes – “Deus me livre! Isso nunca acontecerá!” – disse um deles. Outro completou que tomariam todas as medidas de segurança possíveis, com a utilização de equipamentos elétricos de primeira e iluminação de última geração – Importada! – finalizou.

– Então, está bem! Com o material que escolheram, o preço cai pela metade.

– Ótimo! Pode providenciar o serviço! Temos pressa! Precisamos reinaugurar a casa logo no início do ano, quando os estudantes, que constituem a maior parte de nosso público, voltarem às aulas!

– Estará pronto no prazo! Apenas não sei se dará tempo para a liberação do alvará!

– Não precisa se preocupar com isso, meu amigo! Temos um acordo com o pessoal da prefeitura. Somos amigos, inclusive, do prefeito. Ajudamos muito na campanha para a reeleição.

– E os bombeiros?

– Tranquilo, meu amigo! Costumo dar passe livre para vários soldados da corporação. É muito comum termos também policiais, delegados, além dos soldados do batalhão da cidade frequentando o nosso salão. Caso aconteça algum fato estranho, teremos o lugar mais seguro do mundo!

Mesmo já tendo observado que não havia saídas laterais, Waldo perguntou, por desencargo de coincidência:

– Outras portas, além daquela pela qual entramos?

– Não, meu amigo! O brasileiro, se puder, não paga nem o enterro da mãe! Não podemos dar a oportunidade de que saiam sem pagar! Ainda que colocássemos seguranças para vigiar essa saída, teríamos uma despesa extra, desnecessária! Além do que sempre haverá a chance de alguém molhar a mão dos caras para saírem sem pagar a comanda…

Duas coisas incomodavam a Waldo naquele momento: primeiro, o fato daquele senhor chamá-lo de “amigo”; segundo, pelo que vira na tabela de preços a frente de um dos bares, os valores eram abusivos. Vasilhas de refrigerantes, águas e energéticos custavam quatro a cinco vezes mais que o preço normal de compra em supermercados. Fora os coquetéis e outras bebidas a base de álcool, em que a imaginação para instituir os valores era ampla e irrestrita. Isso incentivaria a tentativa de não pagamento da comanda. Em contrapartida, justificaria arriscar a vida das pessoas ao não disponibilizar saídas de emergência? De qualquer forma, pensou, aquele serviço seria grande e renderia um bom dinheiro. E ele faria da melhor forma possível, como bom profissional que era.

Logo após acertar o contrato, ele saiu à luz do dia, se sentindo aliviado por ter saído daquele ambiente opressor. Um sentimento de angústia chegou a assaltá-lo momentaneamente. Ainda trazia, vívida na lembrança, a descrição das câmaras de gás feitas pelo autor de um livro sobre o Holocausto que lera recentemente. Criadas pelo engenho humano para executar o maior número de pessoas com o menor custo e em menor tempo possível, a sua construção era extremamente simples. Uma caixa, como aquela, em que hordas de crianças, homens e mulheres se dirigiam a uma armadilha, com a promessa de um banho redentor, que restituiria um pouco da humanidade perdida. Marcas de unhas resistiram à passagem do tempo, entalhadas na parede. Mais um pouco, Waldo deixou esses pensamentos de lado e convenceu-se de que deveria acatar o que os contratantes mandavam. Ele, por seu turno, apenas estaria cumprindo ordens…

*O incêndio na Boate Kiss ocorreu a 27 de Janeiro de 2013. Nessa mesma data, 68 anos antes, em 1945, o Exército Vermelho libertou Auschwitz, o maior e mais terrível campo de extermínio dos nazistas. Em suas câmaras de gás e crematórios foram mortas pelo menos um milhão de pessoas. Esse dia é considerado o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto.

B.E.D.A. — Blog Every Day August

Adriana AneliClaudia LeonardiDarlene ReginaMariana GouveiaLunna Guedes

BEDA / Scenarium / Desempregado

DESEMPREGADO

Estou desempregado. Dono de meu próprio negócio, não fui eu a me demitir. Porém estou impedido, por efeito do estabelecimento da Quarentena, de exercer a minha atividade – locação de equipamentos de som e luz para eventos: festas de casamento, aniversários, eventos empresariais e promocionais, bailes de salão, etc. Filmes e novelas interromperam as gravações. Peças deixaram de ser apresentadas. Músicos, bailarinos, artistas circenses, atores, diretores, técnicos, roadies, “maquinistas”, contrarregras e várias outros profissionais na área do congraçamento, entretenimento e da celebração da cultura, da vida e da arte, principalmente aqueles que atraem um grande público, também se encontram paralisados. Seus locais de atividade – teatros, casas de espetáculos, salões de clubes, hotéis, bares e restaurantes, estão fechados compulsoriamente por decreto. Seus funcionários – garçons, servidores diversos, do setor administrativo ao de serviços gerais, estão recolhidos. Ginásios e clubes, locais onde os diversos esportes, mormente os coletivos, que empregam atletas, massagistas, preparadores físicos, administradores, entre outros, igualmente adiaram sine die suas competições. A principal delas – as Olimpíadas de Tóquio 2020 – foi adiada para Julho de 2021.

Está proibido reunir pessoas em ambientes fechados ou mesmo abertos para comemorações. Foi estabelecido o chamado isolamento ou distanciamento social horizontal. Apesar do meu sofrimento psicológico e prejuízo financeiro, já que as contas não param de chegar, sou a favor da medida. Sua adoção refletirá na diminuição do número de infectados e da mortalidade causada pela doença provocada pela pandemia do Covid-19. Os governos mais sérios, orientados pela maioria dos infectologistas mais importantes, adotaram essa mesma norma. Quem não o fez a tempo, como a Itália e Espanha, contam os seus mortos aos milhares em pouco tempo, gerando caos no sistema de atendimento nos hospitais, com leitos insuficientes de UTI e desequipados dos respiradores necessários à sobrevivência dos casos mais graves.

Apostando contra a letalidade do surto, um governante surtado, apoiado por sua equipe de entendidos apenas em jogo sujo, desenvolve uma campanha espúria para contrapor-se àqueles que adotaram as medidas mais duras e corretas no contexto que se apresenta. Apoiado na propaganda de que tiraria o País da inércia e alardeando que propiciaria um rápido desenvolvimento econômico, as medidas que paralisaram diversos setores e provocou a diminuição da produção em muitos outros foi um duro golpe em seus planos para reeleger-se em 2022. Aliás, mal assumiu o seu posto de presidente da República, JMB iniciou a campanha eleitoral para o próximo mandato. Suas ações dúbias em muitas ocasiões e claramente obtusas em outras, escudadas por declarações cada vez mais desvinculadas do mínimo bom senso, beirando a requintes de psicopatia, incrivelmente ainda encontra defensores “encantados” – na repetição de um comportamento-espelho de uma parcela da população que referendou atitudes temerárias dos governos anteriores a este.

Quando o atual quadro se aclarar e pudermos ter uma visão mais ampla do processo pelo qual estamos passando, espero estar vivo – sendo diabético, faço parte do grupo de risco – para poder contar mais histórias. Desejo que a ficção que eu produza não seja tão sem nexo quanto a realidade que se apresenta – canhestra e inconvincente. Que nos libertaremos de quem seja incapaz de empatia-solidariedade humana e se apraz em agir contra seus semelhantes por pura mesquinharia. Devemos provar que, juntos, agindo coletivamente, podemos superar estes momentos cruciais da nossa História.

Beda Scenarium

BEDA / Scenarium / Baile De Máscaras

Baile de máscaras - BEDA
O médico Li Wenliang, que divulgou a existência do surto, morreu por efeito do Corona vírus.

Sim, hoje é 1º de Abril. Não, não é mentira: estamos em quarentena. Ou deveríamos estar. Há pessoas que não acreditam que seja necessária. Há pessoas que creem que se trata apenas de mais um surto de “gripezinha”, entre tantos que se sucedem ano a ano. Há os que indicam os efeitos danosos para a economia ao se propor um “isolamento ou distanciamento social horizontal” em contraponto a um “vertical”. Outros buscam termos em inglês (como lockdown) para potencializarem seus discursos a favor da volta à vida normal (ainda que venhamos a redefinir o que seja “normal”). Há os otimistas-espiritualistas, que estão a crer que estamos no limiar de uma Nova Era, com reflexos positivos para a o convívio social daqui por diante. Há os que afirmam peremptoriamente que estamos à beira do precipício. Há os que veem oportunidade para lucrarem financeira ou politicamente – se é que consigamos separar uma coisa da outra no atual sistema. No resumo de tudo, a grandíssima maioria das pessoas está ciente que passamos e passaremos por tempos turbulentos.

O novo coronavírus – nome do personagem central – transformou-se em pandemia de Covid-19 – nome da doença, criando um pandemônio. Começou em uma província de Wuhan, na China, e reconhecida como ameaça social, buscou-se isolar seu epicentro. Antes disso, quem a identificou – o médico Li Wenliang – chegou a ser preso pelos dirigentes chineses. Acabou morrendo por ter desenvolvido a doença enquanto atuava no cuidado aos seus pacientes. Em dezembro do ano passado, ele enviou uma mensagem aos colegas médicos alertando sobre um vírus com sintomas semelhantes ao da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla em inglês) — outro coronavírus mortal. Mas foi orientado pela polícia a ‘parar de fazer comentários falsos’ e foi investigado por ‘espalhar boatos’”. – BBC News. Ou seja, o crime não foi descobrir o surto, mas divulgá-lo, em um sistema de governo que preconiza controle total sobre a população. Aliás, sonho dourado de muitos dirigentes nacionais.

No entanto, quando chegamos a este ponto que estamos, o direcionamento a ser seguido é o da preservação da vida. Para evitar o colapso econômico, muitos instrumentos estão a disposição dos governantes. O horrível disso tudo é que a questão ideológica interfere nas medidas a serem tomadas. Quando houve a crise bancária, em 2008, salvar os bancos foi entendido como prioritário para que a estrutura econômica de então não ruísse. Agora, além da coragem para estabelecermos meios para bloquear a expansão do contágio, deveríamos ter a grandeza política ao decidir usarmos as reservas financeiras do Estado para dar sustentação à população mais vulnerável. O que vai contra o lema dos chamados “liberais” que estão no poder – donos da chave do cofre. Se tivessem estudado História, não teriam dúvidas quanto a lançar mão de um plano que traria alívio aos brasileiros, ainda que parcial, além de substancial crédito político. Porém…

… não vejo nos elementos do atual governo nem grandeza nem condições intelectuais para ações criativas ou, ao menos, óbvias para sairmos deste imbróglio com o menor prejuízo possível. Sequer percebo coerência nas declarações, postura de estadistas a levar em conta o bem coletivo ou mesmo equilíbrio psicológico. Aliás, temos tido provas cada vez mais evidentes que o atual “presidentezinho” deveria sair do Palácio do Planalto em camisa de força. Até Trump, ídolo do Bolsonaro, junto com o Congresso americano, incluindo os Democratas, aprovou o maior plano econômico emergencial desde o New Deal, engendrado para dirimir a recessão provocada pelo Crash da Bolsa, de 1929. Diferente de seu posicionamento inicial, o presidente americano incentivou o distanciamento social, principalmente nas áreas mais infectadas, como New Jersey e, principalmente, New York. No pronunciamento (ou leitura claudicante) em rádio e TV de ontem, contemporizou em relação às declarações feitas anteriormente. Talvez, um recuo tático em vista da postura que sabemos ser diferente quando é acometido de verborreia.

Hoje e nos próximos trinta dias subsequentes, participarei do BEDA, com publicações diárias no Seria Ser. Pensei até em chamá-lo de BEDA da Quarentena. Mas as histórias continuam para além da reverberação do novo coronavírus em nossas vidas. Por isso, não postarei apenas sobre o período programado para se encerrar no dia 7 de Abril que, provavelmente, deverá ser prorrogado por mais tempo, a depender da evolução dos fatos. Mesmo porque, as informações e dados se avolumam não somente semana a semana ou dia a dia, contudo de hora em hora. Estamos no vórtice de um furacão…

Beda Scenarium

Brumadinho

Rua 2.jpg
Há uma Rua 2 em cada lugar do mundo…

Estar em Brumadinho foi um dos eventos mais felizes do ano passado, já no final de seu percurso. Reunimos a família e lá fomos para as Minas Gerais, que conhecia apenas por pequenas incursões em algumas cidades por ocasião das minhas atividades profissionais. O objetivo principal, além voltar a reunir a família em um mesmo tempo e espaço, era o de conhecermos o maior museu a céu aberto do planeta: Inhotim. Nele, a Natureza, bela e variada, em arranjos únicos de composição, se apresenta junto a incríveis criações artísticas humanas, em um contraponto que só posso classificar como uma experiência de imersão em realidade paralela.

De Minas, gosto do povo, admiro seus escritores, amo Drummond, venero Guimarães Rosa. Sou fã de músicos e compositores como João Bosco, Milton dos mil tons e da turma do Clube da Esquina.  Considero Minas o Estado que poderia exemplificar várias das melhores características do povo brasileiro – sobriedade, simpatia discreta e desconfiada, olhar de avalista de joia preciosa. Insulado por suas montanhas, o mineiro apresenta um vasto mar interiorizado para onde navega quando quer se recolher.

Em Brumadinho, tivemos contato mais de perto com os donos da pousada onde nos hospedamos – Rozângela e Luciano. Pessoas exemplares, com clareza de ideias, maturidade de sentimentos e saudade permanente do filho na França. Todos os dias, os via conversando através de mensagens, via imagens ou voz, com a parte de seus corações que estava do outro lado do Atlântico.

Certo dia, saímos para encontrar uma das muitas cachoeiras da região. Em dois carros, nós sete andamos por vários caminhos, ladeados por cercas das mineradoras por quase todos os cantos. Chegamos à vila junto ao Córrego do Feijão, com a informação onde haveria uma queda d’água. Véspera de Natal, descobrimos que seria difícil chegar a alguma das corredeiras por ali. Tentamos nos informar com alguns homens que estavam na pracinha quase em frente a Rua 1 com a Rua 3. Havia fotografado a placa da Rua 2 (nome do meu livro de contos) a uma razoável distância dali.

Achei engraçada essa aparente incongruência em que os números estavam tão afastados uns dos outros, em travessas que saíam da via principal. Coisas poéticas de Minas. Apesar de tentarem ajudar, os informantes pareciam confusos, como se não conhecessem o local. Talvez estivessem apenas gostosamente bêbados. Não tinham ideia do que lhes ocorreria dali a um mês. Cervejas nas mãos, vida mansa, dias previsíveis…

 

restaurante
Restaurante fechado

Decidimos buscar o outro lado da cidade, em direção à Aranha. Deixamos aquele espaço para trás – um antigo casarão, transformado em restaurante que fechou, casas, pousada, a igrejinha local, pequeno comércio de portas descidas e dois botecos abertos – sem imaginarmos, nós e eles, o drama que se avizinhava. Porém, apesar de previsível, já que estavam estabelecidas todas as condições para o horror que ocorreria, a vida seguia seu curso de rio limpo.

Atravessamos a região, em busca da cachoeira perdida. Sem conseguirmos, acabamos decidindo comer algo no Bar do Jiló, na esperança que na véspera de Natal estivesse aberto, contra todos os prognósticos. Quando nos aproximamos, carros parados junto ao bambuzal e à uma precária cobertura, denunciaram que ele estava servindo o seu famoso peixe frito. Seu João Jiló – antigo vendedor de verduras e hortaliças – nos atendeu com a simpatia de homem gordo que era.

Cenário de fundo, as águas do Paraopeba apresentavam um tom barroso. Disseram que era resultado do uso das suas águas pelas minas de ferro da Vale. Ao buscar refrigerante no barzinho, acompanhei três homens subindo em um barco para pescarem. Ao me virem, mesmo sem me conhecerem, convidaram para a empreitada. Respondi que não teria tempo. Além do que, se há algo que não vejo nenhuma graça é ficar horas e horas à espera que um bicho escorregadio, como o peixe, fisgar o anzol. Partiram contra a correnteza, munidos de natural coragem e cervejas…

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O Paraopeba, já enlameado antes do vazamento

Descobrimos com casal Gontijo que o nome Brumadinho deriva da cidade ao lado, conhecida como Brumado que, aliás, tem outro nome oficial, ao qual não me lembro. A origem se deve às constantes brumas que caracterizam a região. Após passarmos momentos descontraídos com os Gontijo, Jiló, sua filha e cachorros de rua que ficaram aos nossos pés e alimentamos com carne de peixe sem espinho, as meninas voltaram para o ROZtel. Eu e a Tânia, fomos a um supermercado para buscarmos itens para a ceia de Natal. Até retornarmos para São Paulo, dois dias depois, pudemos vivenciar o bom clima, o ar puro, a vida pacata de uma cidade privilegiada por abrigar pessoas de grande qualidade. A benção daquelas montanhas é também sua maldição. Isso vale para Minas Gerais inteira.

Mesmo a uma boa distância física do fato do dia 25 de janeiro, o que aconteceu com os mineiros de Brumadinho, nos atingiu igualmente. Foi uma parte do corpo brasileiro que foi invadido por todo aquele excremento. Gerações de políticos, de todas as orientações ideológicas, participaram desse concerto macabro. Não há o que consertar. O que aconteceu não tem remédio. Nós devemos lutar para que esse terror seja a base de sustentação para a revisão de nossos valores como nação. Devemos reavaliar nossas prioridades. Sem isso, a alternativa é que voltemos a chorar muitas mais vidas perdidas por pura ganância, materializada por contribuições para parlamentares e bônus de executivos sujos de sangue.

 

Por Rozângela Gontijo – Com a morte/lama na alma

“A morte de um ente familiar/amigo abre um buraco em nós. A morte de tantos, milhares de entes, pessoas, animais, plantas, pedras e rios deixa um abismo. Essa sensação abismal de morte/ausência/desaparecimento é uma das piores do mundo porque não pode ser representada. É a manifestação de um Nada absoluto. Como fazer o luto de um rosto que não se pode imaginar/pensar nessa grandeza de tantos, tantos, tantos que se infinitam? A imaginação não dá conta, o pensamento se perde e o Nada absoluto se revela no sentimento mais terrível para o ser humano: a angústia. A angústia é o sentimento do terrível inapresentável que sobrevém em nós e tudo que podemos ver é essa lama que inundou nossa alma.”