Sou Palavra Difícil

O meu amor gosta de Bukowski
e eu amo Augusto dos Anjos.
Se Augusto dos Anjos tivesse sido influenciado por Bukowski,
talvez não tivesse existido o poeta como o conheço.
O preto,
se se conformasse em se ater ao seu destino proclamado —
marginal, apesar de ser maioria,
palavra difícil de ser decifrada
em meio a vocábulos fáceis de serem compreendidos,
não chegaria a mim — menino da periferia —
que me encantava com a palavra complexa que feria.

Se abraçasse o enunciado do americano —
bêbado que vomitava durezas de descrente,
leoninamente egoico,
dogmaticamente estoico,
adepto da simplicidade de expressão —
não seria grande além do tempo, o paraibano.
Dos Anjos era palavra quase inacessível.
Fosse fiel às prisões do imediato e do lugar,
se filiaria a obviedade e ao possível.

O americano, necessário, porém perplexo,
o paraibano, imprescindível, contudo sem aparente nexo,
não se confrontam em meu coração, que eu sinta.
Um, eu leio e deixo minha rebeldia extemporânea satisfeita.
Outro, eu leio a mim e me encontro incompleto,
a tentar alcançar lonjuras.
O ébrio, ainda que espalhafatoso, morreu velho.
O professor que era poeta, morreu aos 30.
Não se encontraram a não ser diante dos meus olhos —
os versos de um embriagam e me deixam de porre,
os do outro suplantam meu corpo e dilaceram minh’alma.
Bukowski, brincava com o perigo de existir.
Dos Anjos, fazia de companhia a morte
que não o enlutava, mas celebrava.

Bukowski, foi ele.
Dos Anjos, sou Eu.
Enquanto que o egoísta não quis mostrar a ninguém
o pássaro azul no peito,
o centrado revelou a “frialdade inorgânica da terra”.
Enquanto um soltou crônicas de amor louco
em ereções, ejaculações e exibicionismos,
sendo incensado;
o outro, incompreendido em seu tempo,
renegou a religião como resposta e proclamou
que ninguém doma o coração de um poeta —
sendo amaldiçoado.

Sou palavra difícil.
É compreensível que não possa ser entendido.
Mas acho triste não ser lido ou ouvido
por quem diz me amar.
Começo a duvidar da minha expressão.
Não deveria me derramar?
Deveria ser prosaico ou antes, calado?
Ao me revelar, deverei ser contido?
Deverei reverberar a palavra fácil, complacente?
Erradicar a minha fala de estranha vertente?
Ser Bukowski e seguir a inóspita franqueza?
Ou ser Dos Anjos e violentar meu cotidiano
dos termos óbvios e tiranos?
A única simplicidade a qual me rendo
é dizer que a amo e disso não me arrependo…

Inconfidência: Perdão

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Ele

Olho em seus olhos e percebo que sorriem, brilhantes. Depois de todos esses anos, a vejo solta, gestual descontraído, muito à vontade em minha presença. De certa forma, me sinto bem por fazê-la crer que tudo ficou bem depois da sua revelação de dez anos antes. Após o choque inicial, demonstrei solidariedade, mas por dentro ocorria uma revolução. Fisicamente, senti como se estivesse caindo. Esse processo perdurou por alguns meses, até sentir o baque da queda, a dor excruciante de ver a minha ilusão desfeita, ainda que suspeitasse há muito que algo não se encaixasse… Consegui fazer com que parecesse solidário com o sofrimento que carregou por ocultar por tanto tempo que traiu. Aliás, busquei revalidar essa expressão – traição – uma tentativa em reverter o vazio que deixou: uma bomba de nêutrons – destruiu a vida, porém preservou a estrutura aparente.

Naquele dia, morri um pouco. O passado ganhou novas definições. Fatos indeterminados em significância se aclararam. Vislumbres circunstanciais se solidificaram como revelações. A verdade, tão bela quanto aguda, ganhou clareza filosófica. Em defesa de minha integridade emocional, acabei por desenvolver intimamente a concepção de que ninguém é de ninguém. Publicamente, aqui e ali, repetia que o prazer é pessoal e que ninguém tem o direito de interferir nessa questão… até mesmo, quem assumiu um compromisso de fidelidade. Mesmo porque, quem promete algo em um momento não será a mesma pessoa ali adiante. Assim como não será para aqueles com a qual se relaciona a promessa. Mudamos e nos mudamos. Literalmente, nos tornamos outras pessoas. Morremos e renascemos, estimulados pelas mútuas experiências, vivências internas e externas.

Eu já usara esses argumentos antes de saber o que soube. Você achava que fosse uma possível desculpa para alguma falta de minha parte. De certa maneira, intuitivamente eu sabia o que acontecera no começo de nosso relacionamento. Deixei passar porque a amava. Aceitei, de antemão, o possível peso do acontecido. Com o passar do tempo, cheguei a esquecer de minhas suspeitas. Quando finalmente me foi revelado, apesar do período passado, tudo foi como se fosse no presente…

Agora, neste momento que perdemos Ufo, nosso filho de quatro patas, preferi deixar tudo às claras. Não queria demonstrar diante dele a minha mágoa. Se bem que conversasse, em sua ausência, sobre o nosso relacionamento. Mas não se preocupe. Nunca falei nada sobre o segundo ano de casamento, quando tudo aconteceu… Ele se foi sem saber… Tanto, que sempre buscou nos unir, ainda que sempre ficasse na cama entre nossos corpos, atrapalhando nosso namoro.

Você se lembra como o encontramos. Depois da crise, que quase nos separou, o vimos jogado no meio-fio na rua… Tão pequenininho, sujo e abandonado, ainda com a placenta da mãe grudada no pelo. Parece que chegou para nos ajudar. Nos entreolhamos e, mesmo sem dizer palavra, sabíamos que tínhamos que cuidar dele. Trouxemos o seu pequeno corpo quase desfalecido para cá e aquele “objeto voador não identificado” voltou a nos unir.

Há três anos, você achava que eu tivesse interessado em outra pessoa e, talvez, até estivesse… Então, tirou da cartola o truque definitivo – me contou sobre o Carlos, justamente naquela época… Poxa, meu amigo, companheiro de futebol e cervejadas… Se livrou de um peso, dando para que eu o carregasse. Acho que fez isso porque talvez ainda me amasse – revelar que traiu para ser uma mulher melhor para mim, ser verdadeira, inteira… Deveria saber que a minha pretensão em parecer magnânimo me subjugaria… Ainda que soubesse estar sendo manipulado, aceitei caminhar com os pés cada vez mais afundados na lama… Hoje, revelo o que sinto – na verdade, eu nunca a perdoei…

Com o Carlos, ainda mantenho uma relação de amizade. Ele não sabe que eu sei… Quis manter essa postura para espezinhá-la também. Mas isso só piorou as coisas… Quis que você sofresse e vivia, disfarçadamente, a buscar os seus olhares sobre nós, quando nos reuníamos. Porém, odiava quando parecia não se importar. Ainda imaginava que fosse apenas simulação… Que você contou que me contou… Que talvez ainda se encontrasse com ele. Nesse caso, você terá sido muito mais cafajeste. O certo é que nunca se importou mesmo, né? Satisfeita que estava em continuar a usufruir de um relacionamento confortável e amável, sob os olhares externos. Adoraria lhe dizer que me vinguei a traindo com algumas de suas amigas, contudo, isso nunca aconteceu… E saiba que não foi porque elas não quisessem… Não vou dizer quais…

O nosso casamento… acabou… Não devemos nos enganar. Tudo o que aconteceu… não consegui superar… o meu rancor… Só decidi ficar junto consigo por causa do Ufo, principalmente depois que ele adoeceu. O mútuo sofrimento nos uniu, mas aquele casal acabou por morrer junto com ele. Não faça essa cara de espanto choroso… Eu diria que quase não me importo por não conseguir lhe perdoar… De fato, sinceramente, eu mesmo me peço perdão e o aceito…

Ela

Eu já o perdoei por outras coisas e vou perdoá-lo por isso, também… Tem razão, eu não me importava tanto quanto deveria com você. Ufo trouxe um novo alento à nossa união, mas Carlos fez muito mais… Em nosso segundo ano, você ainda não havia demonstrado que se importasse com alguém além de você mesmo. Estávamos juntos, porém você ia sempre a frente, gostava de ser o centro das atenções… Me puxava pela mão, mas me deixava logo depois, quando encontrávamos nossos amigos. Eu me ressenti bastante de sua ausência. Até que Carlos olhou pra mim… Lembra daquele churrasco na casa do Zé? Foi lá que ele me seguiu quando fui para o quarto da Leninha e do Fábio. Não disse nada. Por trás, me puxou pela cintura, beijou o meu pescoço, mordiscou as minhas orelhas, agarrou os meus cabelos e me beijou sedento, como se eu fosse o último copo d’água… Tão inesperado quanto intenso! Nós nos possuímos na cama do casal… Depois, nunca mais nos separamos. Conheci um homem, não um menino de trinta anos.

Com a chegada do Ufo, comecei a perceber algo mais em você, além do escritor narcisista. O meu olhar mudou. Carlos, como prova que me queria, continuou solteiro. Ele o ama, também, não queria magoá-lo… Quando soube que contei a você, ficou arrasado ao imaginar que se afastasse. Como continuou a encontrá-lo, sem reservas, apenas sentia certa melancolia por trair a sua confiança, sabendo (como me disse) que não conseguia deixar de me amar e de me desejar, igualmente. Eu o amo, muito… Se não fosse por ele, que sabia que eu servia de esteio para o seu equilíbrio emocional, nós já teríamos nos separado, mesmo com o Ufo vivo. Contar o meu caso de amor para você talvez resolvesse o imbróglio, mas o Ufo ficou doentinho… O tratamento para que permanecesse bem, mesmo sabendo que seria inútil para lhe dar sobrevida, impediu que eu saísse de casa. Quando ele começou a perder o seu lindo pelo por causa dos remédios, ainda assim você o acarinhava como se fosse o cão mais lindo do mundo! Voltei a me enternecer por você e ele precisava de nós… juntos…

Agora que se revelou tão rancoroso, me deixa satisfeita que tenha evoluído – expressar totalmente o que sente – e abriu caminho para me desvencilhar de nossa história. Quero que sofra, não por querer puni-lo. Quero que mergulhe verdadeiramente em si e não use os seus personagens como anteparo e sublimação. Nossa vida, a vivemos com os seus altos e baixos. Você disse que para se defender, começou a aceitar de que ninguém é de ninguém. Eu discordo dessa ideia. Eu pertenço ao Carlos e Carlos a mim. Vivemos a nossa humanidade. Não fugimos da nossa precariedade como seres. Gostamos muito dos prazeres que os nossos corpos nos proporcionam. A sua postura em se colocar acima das coisas mundanas só o torna pedante… Mesmo porque, a sua aspiração à elevação espiritual é posada… Não trepa e nem sai de cima…

Depois de algum tempo, como eu estava cada vez mais apaixonada por outro, comecei a desejar que você tivesse alguém mais. Sempre soube que algumas das minhas amigas o achavam interessante. Algumas sabem que estou com o Carlos. De certa maneira, até as incentivava que o assediassem. Talvez, fosse uma maneira de aliviar a sua atenção sobre mim, não sobre minha culpa. Mas você não aceitava as insinuações e não acho que fosse por princípios, mas por vaidade. Ainda que desejasse a outras mulheres, quis manter a pose de inacessível. Maldito ego, que o impede de usufruir dos bons prazeres da vida…

Ah, não cheguei a me emocionar por você jogar tanta merda sobre mim… Foi por pena, porque eu o amo, não da forma que você gostaria, mas apesar de tudo como companheiro de vida e pai do Ufo. Se não consegue me perdoar, sinto muito… por você… Quando vier a amar mais alguém além de você mesmo, um ser humano com o qual não queira competir em atenção, como amou ao Ufo, me compreenderá… Aceite que estes olhos brilhem, ainda que não seja por você…

Simbologias

Simbologia

Indicada a direção do banheiro, estanco o passo diante de duas portas, frente a frente. De um lado, a letra M; de outro, a letra F. Por exclusão, supus que M quisesse dizer masculino, enquanto F, feminino. Caso quisesse descer à designação fisiológica genérica – macho e fêmea – de onde deriva a nomenclatura, seria admoestado por meu censor interno. Por algum motivo, apesar de sermos animais, a questão de gênero ganhou tantas conotações que fica impossível sermos bem vistos apenas porque usamos o termo correto. Mesmo porque, a conformação física vem a estipular quais e quais dispositivos devam estar presentes em ou outro banheiro, apesar de alguns itens de uso comum. Contudo, tenho a impressão que no banheiro os machos continuam sendo machos, enquanto as fêmeas ultrapassam à sua simples condição de gênero e são também mulheres, tendo o espelho como instrumento auxiliar de introspecção (ou expansão).

Se as letras estampadas nas portas fossem H e M – Homem e Mulher – identificaria construções mentais que designam não somente os gêneros sexuais básicos, mas também os papéis relativos a um e outro. Esse é um tema premente, bastante discutido por alguns que pensam a sociedade, na busca da reavaliação desses papéis incorporando mutações sociais na apreciação dos valores dos gêneros e derivantes. Bem mais malvistas por mim são as famosas figurinhas em que a porta do banheiro feminino mostra um corpo com triângulo na altura da cintura (a designar uma saia) e o masculino, reto, a fazer supor calças. Eu nunca gostei desses símbolos. Além de serem ultrapassados, não têm charme. São simplistas e eu me passa a sensação de emasculação, no caso do homem e de determinismo, no caso da mulher. Escuros, não sabemos se estão de frente ou de costas. Seriam mais interessantes os víssemos de lado, com eventuais contornos a brincar com suas formas. Há variações iconográficas interessantes, bem humoradas, restringidas a ambientes particulares, sem alcance do grande público, que talvez causassem confusão na identificação.

Além de “XY” e “XY” – representando os cromossomos sexuais masculinos e femininos – Ele e Ela são pronomes comumente utilizados para diferenciar banheiros para os usuários de ambos os sexos. Para respeitar as opções daqueles em que “ambos” os sexos possam estar juntos na mesma pessoa, surgiram em vários lugares os chamados banheiros unissex. Em 2008, o centro acadêmico da Universidade de Manchester – uma das maiores universidades da Grã-Bretanha – mudou as placas dos banheiros femininos para apenas “banheiros” e dos banheiros masculinos para “banheiros com mictório”, atendendo a pedidos de estudantes transexuais. Como era de se esperar, houve entrechoques entre os grupos defensores e contrários. Por aqui, a depender dos movimentos conservadores, a ganhar por hora cada vez mais espaço em nossa sociedade, as designações simbólicas tenderão a se tornar cada vez mais padronizadas, sem eleger variações sobre o tema da identidade sexual.

A simbologia aparente é que aparelhos urbanos de uso público para a realização de nossas necessidades fisiológicas excretam substâncias bem mais complexas que os resíduos fabricados por nossos corpos. Envolvem algo mais do que fazemos no privado e nas privadas. Temos dificuldade em lhe dar com nossos excrementos tanto físicos quanto mentais. Compreender a dinâmica de uma sociedade em desenvolvimento, incorporando preocupações e tendências que devam atender demandas justas de quem quer se colocar no mundo de maneira mais confortável é um sinal fundamental a demonstrar que estamos aprendendo a ser gente, para além de simples animais que defecam preconceitos.

O sistema de coleta e tratamento de esgoto é, simbolicamente, distintivo do grau de desenvolvimento de uma sociedade. As grandes civilizações do passado demonstraram seu progresso civilizatório justamente na construção de intricados sistemas de saneamento básico. Dado o subdesenvolvimento do Brasil nesse campo, não é de se admirar que não consigamos lhe dar igualmente com nossas indigências sociais malcheirosas.

BEDA | Caríssima

Caríssima
Cara Lua…

Em e-mail enviado a mim, no enunciado, sou chamado de “Caríssima” pela mensageira. Ainda que eventualmente tenha sido involuntário, gostei! Acho que cheguei em um ponto da vida que prescindo de ser chamado por pronomes ou vocativos masculinos apenas porque carrego um pênis. Sou mais do que isso.

Sendo pai de três meninas, 30 anos de casamento e sabendo do eu quero e gosto, não necessito ter avalizado por alguém da minha condição de gênero e preferência sexual. Por outro lado, aquilo me fez lembrar o quanto me senti irritado pelo aparecimento de neologismos para designar gêneros variantes ou diferenças opcionais de preferências sexuais, naturais ou refletidas. Não porque não as defenda, mas por pura questão de semântica. Nesse aspecto sou tradicionalista, ainda que Semiologia vá se encarregar de resolver essa questão.

É bem verdade que se não me importo de ser chamado por “ele” ou “ela”, talvez não devesse me importar por ser nomeado de outra maneira. Porém, mesmo para derrubarmos barreiras de todas as ordens, devemos partir de uma base. Anunciar que a letra “e” para o uso de gêneros indefinidos (na origem), de alguma maneira preconiza, igualmente, preconceito com outras condições. O politicamente correto acaba sendo uma prisão.

Nos dias de hoje, ficamos cheios de dedos para conversar com qualquer um. Na dúvida se ofendemos ou não alguém simplesmente porque a denominamos de uma forma prosaica baseada na aparência, tentamos adivinhar-prever-intuir com “quem” falamos. Não deveria ser problema para quem sabe o que sente ou o que é, se erramos sua titulação. Nessa situação, se um gênero alternativo quer brincar com a sua roupa, deve estar preparado para ser chamado por ele, ela, eles ou elas – os dois últimos, no caso dos que se sentem mais do que um…

Quando bem novo, pele lisa, rosto feminino, cabelo cumprido, gostava de parecer andrógino. David Bowie era meu ídolo. Ney Matogrosso, com Secos & Molhados, surgiam com ímpeto e, mesmo sendo bastante atraído por mulheres, decidi me abster de sexo. Era moderno? Não! Somente, a penas duras, fiz o que quis para experimentar – ou não experimentar – modos e comportamentos que pressupunham papéis diferentes dos que a Sociedade me impunha por ter nascido do gênero masculino, branco (com ascendência indígena) e pobre. Deveria me ater às essas condições?

Tanto quanto não fazia questão de casar porque a minha companheira estava grávida, sabendo que a aliança já estava sendo carregada em seu ventre, igualmente casar não indicaria uma relação permanente se não quisesse continuá-la. Contratos sociais dão segurança para quem os carrega, mas não são definitivos para indicar condições permanentes. Sejamos chamados de uma forma ou de outra, devemos viver acima das injunções feitas por outros e navegarmos acima da linha d’água que os afogam.

Participam:  Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari